Discoteca Básica Sentimental #7

08/02/2019

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Vinicius de Moraes dizia que a música brasileira é uma enorme planície, com alguns morros e pouquíssimas montanhas. Caymmi visita Tom é a materialização da geografia lírica elaborada pelo poeta — a quem eu me recuso terminantemente, pronto para a briga, a chamar de “poetinha”. Lançado em 1964, fatídico ano do golpe de Estado que instaurou a ditadura militar no Brasil, o álbum flagra Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom, recém-chegado de sua primeira temporada nos Estados Unidos. Ele voltara ao país em meados de 1963. Já era um nome de proporções continentais, com sucessos gravados por uma infinidade de intérpretes nacionais e com o alto desempenho internacional de composições como Desafinado, na leitura dos jazzistas Charlie Byrd e Stan Getz, Garota de Ipanema, nas vozes de Astrud e João Gilberto (registro no qual Getz também se manifestava ao saxofone), e a edição do álbum solo de estreia em território americano, The Composer of “Desafinado” Plays.

No entanto, nenhuma gravadora brasileira tivera, digamos, a iluminação, o senso de oportunidade, o tino comercial ou quaisquer outras motivações, de propor a feitura de um disco autoral daquele talento que se destacava (“Fazer sucesso no Brasil é ofensa pessoal”, afirmaria Jobim nas décadas seguintes), assunto resolvido pelo produtor Aloysio de Oliveira e o selo fonográfico Elenco, notório pelo incrível time de artistas e pelas capas de design moderníssimo e elegante de seus lançamentos.

Neste álbum, quem vem dar as boas-vindas ao amigo e maestro soberano é o inefável Dorival Caymmi, um negro, nas palavras do fascinado Albert Camus, que compõe e escreve todos os sambas que o país canta. Durante sua estada no Brasil, em 1949, o filósofo, romancista e dramaturgo franco-argelino testemunhou uma aparição de Caymmi no Rio, emissão de baixo cantante e violão em punho: “São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido”, descreve.

Capa do LP Caymmi Visita Tom | Foto: Reprodução

A admiração mútua era a tônica da relação dos protagonistas do registro desde muito antes daquela visita. Na contracapa do fenomenal Chega de Saudade, de 1959, por exemplo, há um texto de apresentação de autoria de Jobim. Ele discorre sobre a excelência do jovem João Gilberto, o “baiano bossa nova”, e acrescenta à defesa um post scriptum crucial: “PS: Caymmi também acha”.

O repertório do disco é um assombro: de Saudade da Bahia e …Das Rosas, clássicos de Caymmi, a Inútil Paisagem e Só Tinha de Ser com Você, ambas de Jobim e Oliveira, a Berimbau, de Baden Powell e Vinicius, entre outras. Isso sem contar a ficha técnica, na qual se leem os nomes de Nana (voz), Dori (violão), Danilo (flauta), Stella (voz) — filhos e esposa, respectivamente, de Caymmi –, Sérgio Barroso (baixo), Dom Um Romão e Edison Machado, dois dos maiores estilistas da bateria ocidental. O fato de obras de arte como Caymmi visita Tom terem sido cometidas em território nacional (aliás, onde mais poderiam ter sido?) é exemplar de uma magnitude esperançosa. Sob essa perspectiva, o Brasil é infinitamente maior do que a sua tragédia cotidiana, algo distinto de todo lamaçal perpétuo. Na enormidade da planície, há elevações gigantescas em que a beleza e a glória são as imperatrizes. Avante, portanto.

Contracapa do LP Caymmi Visita Tom | Foto: Reprodução
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