Celebrar para existir

16/05/2022

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Por Jackson Cruz Magalhães*

“No queremos um barrio, queremos todo el planeta […]. No tenemos que pedir permisso a nadie[…], queremos ser siempre y em cualquier lado. No queremos espacios delimitados, supuestamente libres, em los que poder socializarnos como gays, lesbianas o trans, ya sean estos bares, barrios, pueblos o uma isla entera. Queremos todo el planeta”.

Não queremos um bairro, queremos o planeta inteiro […]. Não temos que pedir permissão a ninguém […], queremos ser nós mesmos sempre e em todos os lugares. Não queremos espaços delimitados, supostamente livres, nos quais possamos conviver como gays, lésbicas ou trans, mesmo que sejam bares, bairros, vilas, ou mesmo uma ilha inteira. Queremos o planeta inteiro”.

Bort Bord (tradução nossa)

No campo das lutas pelos direitos de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, as datas celebrativas nos trazem uma amplitude de ensinamentos. Celebrar para nunca esquecer; celebrar para visibilizar; celebrar como grito; celebrar uma luta que ainda não foi vencida, mas que, pouco a pouco, nos traz avanços e nos abre um mundo de possibilidades em cada esquina, em cada encruzilhada ocupada.

Antes de seguir, peço licença para me apresentar. Peço licença aos meus ancestrais e a todas as pessoas que lutaram bravamente, antes de mim, para que eu ocupasse, hoje, este espaço, mesmo sabendo que ainda estamos aquém do que deveríamos. Celebrar é, também, lembrar dessas pessoas que doaram as suas vidas, transformando-se em sementes que foram e continuam sendo multiplicadas mundo afora. Eu sou uma dessas sementes! E, como diz o Don L, na música Primavera: “eu que sou de guerra, dei o sangue na missão de regar a terra; se eu tombar, vão ser milhões para multiplicar”. Quando um de nós se vai, nascem muitos outros.

Eu me chamo Jackson Magalhães, também conhecido como Jack, e tenho 33 anos. Resido em São Paulo há quatro anos, atualmente na zona leste, e venho do interior da Bahia, lugar em que passei a minha infância, adolescência e parte da juventude entre a cidade e o quilombo que mainha, minhas tias e meus tios nasceram e foram criadas e criados. Ser remanescente quilombola e ter vivenciado este espaço de memórias tão vivas e ancestrais em seus aspectos geográfico, afetivo e como símbolo de resistência, transgressão e comunhão entre os meus e as minhas, foram e são pilares que orientam o meu papel no mundo e revelam as minhas potências até os dias de hoje. Também sou biólogo, mestre em Ciências, agente de Educação Ambiental no Sesc Itaquera – localizado na zona leste de São Paulo – e homem trans¹. Deixo, propositalmente, a demarcação da minha transmasculinidade por último, pois antes e ao mesmo tempo em que sou uma pessoa trans, também sou muitas outras coisas, que coexistem no mesmo espaço-tempo dentro de mim.

Lembro-me que a primeira vez em que percebi a minha existência enquanto possibilidade – nada semelhante ao modo como a cisgeneridade² me lia – ocorreu quando conheci pessoas e grupos LGBTQIA+³. Nestas encruzilhadas, eu entendi que os nossos corpos e as nossas histórias de vida carregavam muito mais do que as cicatrizes oriundas de um apagamento histórico: a resistência, a beleza da reinvenção, a potência, a diversidade, e o desejo de deixar, para aqueles que vierem depois de nós, um mundo em que a pluralidade seja exaltada, tal qual os nossos ancestrais sonharam. Celebrar, além de manter acesas as lutas que nos trouxeram até aqui, é reforçar que seguiremos ocupando espaços e reivindicando a liberdade de sermos quem somos.

Nessas encruzilhadas, eu, os meus irmãos e as minhas irmãs temos sido provocados e provocadas a trilharmos caminhos de reinvenção, de apropriação de possibilidades, de movimentos e de subversão. Tal qual Exú – senhor das encruzilhadas – a nossa posição no mundo nos convoca a sermos a “boca que tudo engole e cospe o que engoliu de forma transformada”, como já diria Luiz Rufino, na obra Pedagogia das Encruzilhadas. Temos ocupado espaços que, talvez outrora, não tenham sido pensados para nós, e mesmo que ainda sejamos poucos nestes lugares, ainda seremos muitos e muitas. Nossos corpos trazem possibilidades de transformação de um mundo que talvez ainda não tenha experimentado a nossa potência. E esse é um dos motivos pelos quais precisamos celebrar.

É importante chamar à atenção para o fato de que a celebração que trago não deve ser reduzida a um dia, 17 de maio (Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia), assim como 29 de janeiro (Dia da Visibilidade Trans), 28 de junho (Dia Internacional do Orgulho LGBTIA+), 29 de agosto (Dia da Visibilidade Lésbica), e outras datas que representam um marco nas nossas lutas, devem ter a duração de 365 dias. 365 dias de visibilidade; 365 dias sendo notados e notadas por instituições e organizações; 365 dias com nossos direitos, inclusive os mais básicos, sendo assegurados; 365 dias de combate às opressões; 365 dias de celebração e reflexão sobre a importância da representatividade; 365 dias de luta contra as estatísticas que colocam o Brasil, por anos consecutivos, no topo da lista dos países que mais matam pessoas trans e travestis no mundo; 365 de ocupação das encruzas e da soma de forças para a criação de caminhos opostos aos que as estatísticas mostram: caminhos de vida, dignidade e acesso.

Celebrar é existir e permitir existir!

*Jackson é biólogo, mestre em Ciências, agente de Educação Ambiental no Sesc São Paulo, remanescente quilombola e transmasculino.

Jackson Cruz Magalhães

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1 Um dos significados utilizados para definir uma pessoa transexual é a inconformidade com o gênero atribuído ao nascimento (na verdade, antes mesmo do nascimento da pessoa). Eu me defino como um corpo que desestabiliza o cis-tema, a partir do momento em que não reproduzo a sua norma. Me defino como um homem cuja força ou “masculinidade” não se restringe aos símbolos que o patriarcado elegeu como legítimos e aos seus instrumentos de dominação impostos à sociedade. Sou um homem, portanto tenho corpo de homem; genitália de homem; força de homem; voz de homem – ainda que os símbolos associados a mim sejam negados diariamente.

2 Pessoas cis são compreendidas como aquelas cuja identidade se encaixa com o gênero a elas atribuídas. A cisgeneridade, na minha visão, também compreende um instrumento de dominação binário, que associa corpo e performatividade de gênero às categorias homem e mulher, seguindo estereótipos e símbolos. Pessoas trans desestabilizam esse “script”, que define as nossas identidades antes mesmo de nascermos.  

3 L – lésbicas; G – gays; B – bissexuais; T – transexuais; Q – Queer; I – Intersexuais; A – Assexuais. Para cada letra que compõe a sigla, há um universo de significados e reivindicações. Apesar de reunir múltiplas identidades e orientações sexuais, cada movimento possui lutas, avanços, reivindicações específicas, interseccionando-se em alguns pontos.

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