Por Maria Júlia Lledó
COLABOROU: Carime Fernandes Elmor
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Enquanto atores e atrizes parecem conversar no palco, despretensiosamente, a personagem Graça está sentada na plateia. Os espectadores só descobrem que ela também faz parte da cena quando alguém do elenco a convida a participar do experimento que vai começar. Imigrante brasileira, Graça acredita refugiar-se dos efeitos da extrema-direita num território acolhedor que logo se mostrará opressor. Borrando as linhas que poderiam delimitar teatro e cinema, realidade e ficção, ator e personagem, a encenadora e diretora carioca Christiane Jatahy ainda coloca o espectador como peça fundamental de sua dramaturgia. A cada um da plateia é proposto o exercício de acompanhar diferentes pontos de vista dessa história que não deixará ninguém sair ileso.
Apresentado pela primeira vez no Brasil no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, o espetáculo A hora do lobo – um debate com o filme Dogville de Lars von Trier, com a Cia. Vértice de Teatro, dá continuidade às pesquisas de Jatahy, que já foi premiada com um Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2022, pela sua trajetória artística. Artista associada do Odeón- -Théatre de l’Europe e de outras instituições culturais europeias, a diretora costuma trazer à arena questões políticas e sociais que atravessam a contemporaneidade no Brasil e no mundo.
Primeira parte da Trilogia do Horror, A hora do lobo reúne um elenco suíço-franco-brasileiro num debate sobre o filme Dogville (2003). Será que é possível deter esse lobo dentro do homem, que é capaz das piores atrocidades ao ver outro ser indefeso? “A gente vive num mundo – e eu acho que a gente sempre viveu – de horrores que não param de acontecer. Uma quantidade de guerras, de violências, de extremismos, de intolerância em todos os sentidos. Para mim essa é uma questão premente: a gente tem que olhar o outro. Por isso que essa peça [A hora do lobo] discute a questão da aceitação, por isso que eu fiz muitos trabalhos que discutem sobre o que é estar em situação de refúgio”, conta Jatahy, que se prepara para estrear, em março deste ano, no Odeón-Théatre de l’Europe, em Paris, sua versão de Hamlet encabeçada por personagens femininas.
A minha família tinha um hábito muito rico: a gente assistia a peças de teatro, muitas vezes às mesmas peças. Em seguida, minha mãe e minhas tias escreviam os textos e, depois, a gente ensaiava, construía cenários, figurinos e tal. A gente fez isso com Pluft, o fantasminha [espetáculo infantil escrito por Maria Clara Machado (1921-2001)] e com outras peças. Fazíamos uma versão que a gente apresentava nas nossas festas de aniversário. Havia um processo de criação, de coletividade. Primeiro eram eles [os mais velhos] que faziam, e a gente [as crianças] via e participava. Eu acho que o primeiro enamoramento [pelo teatro] e a primeira descoberta veio disso, que foi muito importante para mim.
Comecei a fazer cursos livres de teatro e, no colégio no Rio de Janeiro, tinha um curso de teatro extracurricular. Eu pensava em ser atriz naquele momento. Logo depois entrei na faculdade, escolhi fazer jornalismo e também faculdade de teatro, além de dar aulas. Saí de casa muito cedo e as aulas eram o meu sustento. Aos 20 anos, comecei a dar aula para adolescentes de 12 e 13 anos no colégio Souza Leão. Como professora, sempre tinha isso de fazer uma peça no final do ano, então, eu comecei a dirigir. Foi aí que essas duas coisas [dirigir e atuar] começaram a caminhar juntas até o momento em que, num curso no Parque Lage, optei por estar do lado de fora, e não mais em cena. Aliás, a primeira turma de teatro no Parque Lage foi a de 1994 e a gente montou Sonhos de uma noite de verão [obra do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616)], depois, comecei meus processos de trilogia com histórias escritas originalmente para adultos e que se transformaram, no decorrer do tempo, em histórias infantis. A principal delas foi Alice no País das maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898).
Eu começo mesmo a pensar na relação dos dispositivos cinematográficos e na relação do jogo do ponto de vista do espectador quando eu ainda não estava usando a projeção nem a câmera em cena. A primeira peça que fiz, logo depois do Parque Lage, é um texto espanhol que se chama Carícias, em 2001, composto por várias cenas – uma puxava a outra. Os espectadores se sentavam em arquibancadas móveis e pantográficas, como se eles fossem a câmera. Essas arquibancadas iam mudando de lugar, subindo e descendo, criando o zoom in e o zoom out, e as cenas iam acontecendo em diferentes lugares. Um pouco como se eu tivesse colocado o espectador sentado atrás da câmera. Só vou colocar a projeção, assumidamente, em 2011, com Júlia. O espaço, o uso do dispositivo cinematográfico, o lugar que o espectador ocupa e a história que a gente está contando, tudo isso é parte do que eu chamo de dramaturgia.
A gente sabe que uma pedra jogada aqui pode chegar lá do outro lado do mundo como reverberação. O teatro tem isso.
Foto: Leo Aversa
Penso muito sobre como trazer frações da vida para a cena. Como é que a gente pensa a cena como realmente colada com o que está acontecendo agora. Como é que essa realidade de hoje se dá também nas relações da cena, portanto, não só na temática. Para isso, a questão da realidade e da ficção também tem a ver com a forma como os atores estão atuando. Não é só porque eu estou usando material da realidade, mas também como é que os atores estão lidando com a ficção como jogo de cena. Aí vejo dois momentos: um deles é quando eu crio ficção a partir da realidade. Seja por causa de uma história pessoal minha ou dos atores. O segundo momento vem depois, quando eu faço o caminho inverso: quando eu pego textos que são ficções preexistentes, inclusive clássicos, e enxerto neles realidade. É como se eu pegasse um estilingue: a pedra que o estilingue está puxando é a realidade e o alvo onde essa pedra vai é a ficção.
O teatro surge como esse lugar para refletir o que somos em todas as nossas subjetividades, com as nossas maravilhas e os nossos horrores. No fim das contas, pensar “Se isso sou eu, como é que eu reconheço o outro, que na verdade é alguém semelhante, ainda que possa estar em situações extremamente diferentes? A gente vive num mundo – e eu acho que a gente sempre viveu – de horrores que não param de acontecer. Uma quantidade de guerras, de violências, de extremismos, de intolerância em todos os sentidos. Para mim essa é uma questão premente: a gente tem que olhar
o outro. Por isso que essa peça [A hora do lobo] discute a questão da aceitação, por isso que eu fiz muitos trabalhos que discutem sobre o que é estar em situação de refúgio. O que são essas estruturas sociais que a gente não consegue transformar?
A arte ajuda na elaboração disso tudo [que vivemos]. Agora, o teatro tem uma diferença: porque ele só existe naquele momento. Não é sobre transformar o outro, mas se você consegue sair [do teatro] com algumas perguntas. Porque se você é afetado, você pode afetar quem está perto de você, e assim por diante. Uma imagem que eu adoro é a da pedra jogada no lago, que vai provocando circunferências. A gente sabe que uma pedra jogada aqui pode chegar lá do outro lado do mundo como reverberação. O teatro tem isso.
Meu trabalho é sempre atravessado pela realidade brasileira, até porque o Brasil está sempre em mim, e tudo o que acontece aqui me toca e me afeta de uma maneira muito profunda. E porque eu também sinto, como artista internacional e com o espaço que eu tenho, uma responsabilidade de falar sobre as coisas que estão acontecendo aqui. Eu acho que é muito importante ter um trabalho que fala muito sobre nós, e apesar de ter sido um trabalho construído fora do Brasil, ele sempre foi pensado a partir da realidade brasileira.
Penso muito sobre a questão das fronteiras, não só as fronteiras geográficas, mas também a fronteira entre realidade e ficção, cinema e teatro, o agora e o passado, ator e personagem. Também é muito importante para mim a relação entre a cena e o público. O público é, realmente, parte constituinte da minha obra. Ele afeta a obra, transforma a obra, por isso, para mim, ele nunca é só um espectador.
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