Por Renan Quinalha
60 ANOS DE 64 é um ciclo que pretende marcar os 60 anos do golpe civil-militar que, em 1964, deu início a uma ditadura que se arrastou até 1985 em nosso país. O inventário das violências de Estado deste período é bastante expressivo. Não foi a ditadura quem inaugurou a prática institucional de torturas, prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados ou execuções sumárias em nosso país. Tais violências, praticadas e amparadas por agências estatais, remontam à época da ocupação do nosso território pela colonização portuguesa.
No entanto, durante a ditadura, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão criado em 2012 com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos, 191 pessoas foram mortas, 210 estão até hoje desaparecidas e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 mortos ou desaparecidos. Além disso, foram inventariados 230 locais de violações de direitos humanos. Mais de 6500 militares foram perseguidos por resistirem à ditadura e 377 agentes públicos foram nominalmente apontados como perpetradores de violações aos direitos humanos.
Há muitos outros dados dignos de nota, mas, a despeito dessas cifras já tão impressionantes, fato é que a Nova República foi fundada mais nas estruturas do que nos escombros da ditadura. Muitas das violências apontadas persistiram e seguem até hoje sendo praticadas. Não são “entulhos autoritários” ou “restos da ditadura”, mas como práticas e discursos renovados cotidianamente por atores políticos sob o nosso regime democrático.
O trabalho de memória sobre a ditadura e a nossa justiça de transição tiveram algumas limitações que até hoje se fazem sentir em nosso país. Nos últimos anos, temos assistido a manifestações na frente de quarteis do Exército clamando por “intervenção militar”, temos visto o elogio a notórios torturadores e mesmo pessoas indo às ruas para pedir por um novo AI-5 (Ato Institucional n. 5), símbolo do estado de exceção e do endurecimento da ditadura. Esse cenário reflete como, durante a transição política e o advento de uma nova Constituição do país em 1988, não foi dada a atenção devida ao tanto de ditadura que persiste nas entranhas da nossa democracia. Exemplo disso é que a historiografia e as políticas oficiais de memória não trataram, como temas da ditadura, as questões de raça, etnia, gênero, identidade de gênero e orientação sexual.
Contudo, nos últimos anos, isso tem mudado. Especialmente a partir dos trabalhos da CNV, algumas dessas temáticas têm merecido maior destaque nos estudos acadêmicos, nas produções culturais e nas políticas públicas. Vale ressaltar, nesse sentido, as muitas bandeiras e faixas que têm sido hasteadas e empunhadas pelos movimentos sociais para assegurar mais igualdade, reconhecimento e justiça.
É preciso ampliar o entendimento sobre a categoria de “vítimas” da ditadura em nosso país. Não foi somente quem “era comunista ou socialista”, quem “pegou em armas”, quem “teve atuação sindical ou estudantil”, que foi perseguido pelo regime autoritário e se tornou um “preso político”. O golpe atingiu esses segmentos politicamente organizados e que resistiram à ditadura, mas ele também se deu contra as diversidades étnico-racial, de gênero e de sexualidade em nosso país.
A ditadura tentou impor um ideal de pátria grande, de nação homogênea, de ausência de conflitos e de divisões. Toda essa ideologia reforçou a marginalização e a exclusão de pessoas negras, indígenas, mulheres e LGBTQIA+, tidas como um “outro” do universal branco, heterossexual e cisgênero. Esse processo legitimou perseguições estatais e todos tipos de violências contra essas comunidades. Tal mudança de lente nos permite enxergar como toda sociedade e, especialmente, seus segmentos mais vulnerabilizados, foram impactos de modo mais amplo e profundo pela ditadura.
Nesse sentido, a proposta deste Ciclo é proporcionar uma abordagem sob essa ótica distinta em relação à memória do golpe. O Ciclo está organizado em quatro encontros, que exploram as linguagens do cinema e da literatura, adotando uma perspectiva interseccional dos marcadores sociais da diferença de raça, etnia, gênero e orientação sexual e identidade de gênero.
Cada encontro será dividido em duas partes: a exibição de um filme com duração de até duas horas, seguida por um bate-papo entre pessoas de referência no ativismo, na pesquisa acadêmica ou na produção literária sobre a temática.
Deixo aqui o convite para que participem e divulguem esta série de eventos cujo propósito maior é contribuir para o fortalecimento a cultura de respeito aos direitos humanos e à democracia em nossos dias.
CLIQUE E CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DO CICLO
*Renan Quinalha é o curador da programação do Ciclo 60 anos de 64 aqui no Sesc Pinheiros. Renan é acadêmico, ativista e pesquisador brasileiro conhecido por seu trabalho em direitos humanos, justiça social e questões de gênero e sexualidade. Com vasta experiência em políticas públicas, Quinalha tem contribuído ativamente para o avanço dos direitos LGBTQ+ e a luta contra a discriminação, através de sua atuação como escritor e palestrante. Publicou os livros “Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão contra a comunidade LGBT”, “Justiça de Transição: contornos do conceito” e co-organizou as obras “Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade” e “História do Movimento LGBT no Brasil”. Seu mais recente livro “Movimento LGBTI+: uma breve história” foi lançado em junho de 2022.
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