“Eu achei que era amor, mas era poder”
Por Chica Portugal
Liguei mais uma vez para minha amiga desabafando sobre o relacionamento. De novo tínhamos terminado. Estávamos na etapa da “Explosão” do Ciclo de Violência. Discutimos por conta de ciúmes. Acusada como a louca que criava histórias e a responsável pela agressividade dele que, naquela noite, dirigia perigosamente e aos gritos ameaçava acabar com tudo já que não tínhamos paz na vida. Eu era a culpada. Saí do carro quase em movimento temendo pela minha integridade. Já passava da meia noite e chorava copiosamente no meio da avenida. Não era a primeira vez. Já tinha sido abandonada na cafeteria, no parque, na balada… sempre seguidos a longos dias de tratamento de silêncio… Quantas vezes chamada de louca, neurótica, insegura. Rompimentos cruéis próximo às datas especiais como véspera de Dia dos Namorados, Aniversários, festas de final de ano. A primeira vez que terminamos fiquei tão sem chão, que a vida perdeu totalmente o sentido. Como se um pedaço meu tivesse sido brutalmente arrancado. Foi quando comecei a ter consciência do que era dependência emocional. Mas como um hamster, eu seguia na roda giratória. Ele era minha pinga, e eu uma adicta. O encontro doentio – de uma empata e um narcisista – repleto de abuso e manipulação, e do famoso “morde-assopra”. Próxima etapa do ciclo de violência: Fase da Lua de Mel. Depois da explosão vinham os momentos felizes, os presentes de desculpas, a fase boa de reconciliação. Afinal, ele era bom, quando não era mau. Ele dizia que ia mudar. E eu iludida pelo passado difícil dele, acreditava! Fazíamos planos, projetos, mas que nunca eram de fato concretizados. Logo, a frustração, a ansiedade, a descrença, o “gaslighting”, e a sensação de insuficiência. Com medo de perder, acabava ultrapassando meus próprios limites para manter a relação. Daí, vinham as cobranças, as alterações repentinas de humor, o “pisar em ovos”, e a Fase de Tensão do ciclo de violência começava. Naquela trama emocional, justificava para mim mesma que ele estava numa fase ruim, e que naturalmente iria explodir perto da pessoa que ele mais amava. Eu me via como o seu porto-seguro. Ele precisava de mim. Eu era importante. O que me fazia de certa forma suportar a fase da explosão, e então, e o ciclo recomeçava.
Era uma prisão com grades emocionais. E eu estava presa.
Relatos como este foram comuns durante a minha pesquisa iniciada em 2018 sobre relacionamentos abusivos com o Projeto À Meia Luz, que aborda a violência contra a mulher através de várias frentes artísticas.
Entrevistei mais de uma centena de mulheres cis e trans de várias regiões do Brasil, e apesar das diferenças socioeconômicas, as histórias e o ciclo da violência se repetiam com outros nomes.
Ao saber de experiências como essas, muitos se perguntam – isto quando não acusam a vítima – o porquê dela se manter numa relação tão insalubre. E logo proferem as frases “Mulher de malandro” “Essa aí, gosta mesmo é de apanhar”. Entenda: uma vítima antes de sofrer agressão física, já amargou a violência emocional e psicológica. Fragilizada, muitas vezes dependente não só emocionalmente, mas financeiramente e não consegue
pedir ajuda. Está isolada de seus amigos e familiares que – de tanto vê-la voltando para o abusador – desistem de ajudar – ou ainda, quando a própria vítima se afasta por vergonha.
Importante enxergarmos o padrão do Ciclo de Abuso, e darmos nomes. É essencial políticas públicas que promovam informação e proteção com serviços especializados a essas vítimas.
Segundo o Instituto Patrícia Galvão, 60% das mulheres conhecem ao menos uma vítima e 36% declararam já terem elas mesmas sofrido alguma forma de violência doméstica. A violência sutil é muito difícil de ser identificada, mas acarreta estragos gigantescos na autoestima, saúde e vida de uma pessoa.
Numa roda de amigas, não é difícil ouvir relatos de abusos vividos com seus parceiros amorosos. Foi através de uma dessas conversas de autoanálise, choro e café, que Nanna de Castro e eu iniciamos a pesquisa para o espetáculo “Cartas da Prisão”. Resolvemos como fio condutor um fato real extremo para levarmos à reflexão dos porquês de nos mantermos em relações tóxicas.
“Dentre as facetas das relações abusivas, sempre me intrigou as mulheres que se correspondem com criminosos sexuais confessos na prisão. É comum que assassinos recebam centenas de cartas de amor de mulheres que os conhecem apenas pelo noticiário. É como se o abuso fosse não apenas aceito, perdoado, mas acolhido. Não quero e não posso julgar estas mulheres, apenas convidar o público a partir desta situação extrema e refletir sobre nossa conivência com a violência e o desrespeito não apenas no nível pessoal, mas social”, Nanna de Castro, dramaturga do espetáculo.
O espetáculo com direção sensível de Bruno Kottÿ teve uma primeira versão on-line durante a pandemia, e em agosto de 2022 ganhou os palcos no Sesc Santo André. Durante a temporada foram realizadas rodas de conversas, e promovido um debate com especialistas. Estiveram presentes na mesa Luciana Temer – advogada e Presidente do Instituto Liberta; Sérgio Barbosa – filósofo e coordenador pedagógico do Grupo Despertar; Natália Marques – psicóloga e palestrante; além da equipe do espetáculo Cartas da Prisão.
Cada profissional falou sobre a violência de gênero a partir das suas especialidades e referências, realizando paralelos das situações que as personagens vivenciam no espetáculo como: abuso psicológico, co- dependência emocional, amor-próprio; criança ferida, rejeição versus aceitação e a romantização tóxica das relações no contexto social e histórico.
“Desde crianças não nos dão definições claras sobre amor e violência, aprendemos que amor e violência podem coexistir ou pior que violência é sinônimo/prova de amor! Escutamos desde a infância que estamos apanhando “por amor”, que se alguém nos trata mal é “amor disfarçado” e assim migramos para nossas relações na vida adulta e se somos mulheres isso se torna ainda mais intenso e perigoso, pois aprendemos, também desde tenra infância que é uma relação amorosa/ser “escolhida” por um homem é o que nos torna sujeito, nos dá “um lugar no mundo” (o de namorada, esposa), tanto que se diz “marido e mulher”, como se o lugar de esposa ocupado a partir dali fosse o que nos tornasse mulher, efetivamente.
No espetáculo “Cartas na prisão”, foi mostrado de maneira extremamente sensível como a violência pode estar presente na vida de tantas mulheres, de tantos tipos e realidades de vida diferentes. Mesmo tão diferentes, somos atravessadas por essa socialização que nos faz acreditar que precisamos de um relacionamento mesmo que violento para não ficar só e isso gera profundos prejuízos na vida das mulheres. Então que possamos, também assim como Rita, “tirar as vendas”, soltar as amarras, falar, gritar, escutar o grito das mulheres, quebrar com as repetições. Que possamos, como fizemos neste bate-papo tão precioso, em coletivo nos fortalecer!”
Natalia Marques
“É preciso desconstruir essa tradição e crença machista. Para isso é necessário pavimentar a cultura da equidade, da justiça e da paz. O papel de todos nós é provocar a reflexão sobre as ideias, os comportamentos que alimentam e sustentam o machismo na sociedade. Quando digo a sociedade, estou dizendo desconstruir nas instituições sociais e nas empresas. O machismo não pode mais destruir sonhos e a vida de milhões de mulheres. O machismo pode ser sutil, mas seu efeito na mulher desfaz suas convicções, e retira dela a autonomia. Se você estiver se sentindo dominada, reprimida ou dependente de um homem, infelizmente você está sob a dominação masculina. E se você homem, prática esse machismo, você pode se livrar dele, questionando suas próprias atitudes, não aceitando mais piadas que desvalorizam a mulher, e muito menos, ficando calado diante de qualquer situação de violência contra a mulher. Não seja cúmplice da violência.”
Sergio Barbosa
“A peça fala de violências que mulheres sofrem e que, muitas vezes, nem reconhecem como violência, graças a naturalização social desses comportamentos. Falar sobre isso é fundamental para mudar essa realidade.”
Luciana Temer
Confira o debate que aconteceu no Sesc Santo André no dia 20/08/2022
Conheça aqui a cartilha do Projeto À Meia Luz, sobre relacionamento abusivo.
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