Voltadas ao público adulto, montagens circenses contemporâneas repercutem questões de gênero, racismo, corpos PLURAIS e meio ambiente
Por Luna D’Alama
Leia a edição de junho/23 da Revista E na íntegra
Vestida de gorila, a artista Rafaela Azevedo tem lotado teatros no Rio de Janeiro desde novembro de 2022, com sua versão da Monga (ou Konga, para os cariocas). No monólogo King Kong Fran, uma palhaça nada convencional subverte o padrão feminino imposto ao longo de séculos, falando sobre sexualidade, assédio e outros temas tabus. “Faço uma inversão com o público: trato todos os homens como se fossem mulheres, enquanto eu sou o ‘macho da história’. Gero constrangimento na plateia masculina, mas as mulheres riem, aplaudem e se sentem finalmente vingadas”, conta.
Até os anos 1990, segundo Rafaela, as mulheres não costumavam ser palhaças. Só havia dois lugares para elas no circo: a idealização ou o medo. O papel da perfeição ficava com a equilibrista ou a contorcionista, enquanto o da aberração pertencia à mulher barbada. “Me inspirei na teoria King Kong, da escritora francesa Virginie Despentes. Ela diz que somos ensinadas a não confrontar, a perdoar sempre, a assumir que a culpa é nossa. Mas a mulher tem poder e deve reagir. Ela escreve, e eu atuo, para as que não estão no ‘mercado de boas moças’”, explica a artista, que, neste mês, apresenta-se na programação do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo [Leia mais em Bravo, bravo!].
A discussão de gênero é o foco do espetáculo protagonizado por Rafaela, que também tem a participação de outras 15 pessoas, quase todas mulheres – com exceção do codiretor e codramaturgo Pedro Brício, “a cota masculina”. “Ao fim do show, faço um bate-papo com o público, e os homens dizem que sentem medo de mim durante uma hora. Eu respondo que é isso que nós, mulheres, vivemos o tempo todo. Peço, então, para que enxerguem nossa realidade e virem nossos aliados”, afirma.
Assim como Rafaela, artistas de circo têm levado aos picadeiros, palcos e praças temas sensíveis da atualidade, utilizando-se da diversidade e da ludicidade dessa linguagem artística para promover reflexões e mudanças de comportamento, com foco no público adulto. São montagens que abordam discussões da pauta contemporânea, como o papel da mulher na sociedade, a diversidade de corpos, a luta antirracista e temáticas ambientais e de sustentabilidade.
No trabalho da artista catarinense Emeli Barossi, por exemplo, estão em pauta a acessibilidade e o capacitismo. Com a perna direita menor e mais fina, e calçando num pé um sapato tamanho 35 e no outro, 30 – por conta de uma malformação congênita chamada hemimelia fibular – ela apresenta o espetáculo solo Circo de los Pies, da La Luna Cia. de Teatro. Sua palhaça Asmeline (nome que surgiu da ideia de “As Emelis”, ou seja, das múltiplas figuras que habitam seu corpo) leva ao picadeiro os palhaços Pezão e Pezinho, cada um com seu nariz vermelho. O primeiro é caracterizado como forte, elegante e multi-instrumentista, enquanto o segundo é pequeno, corajoso, revolucionário e com aptidão para a mágica.
“Quis criar algo a partir da minha assimetria, que trouxesse o corpo como ferramenta. Sempre tive essa relação de pessoalizar as pernas, mas não enxergava a diferença como potência – agora sim. A acessibilidade também faz parte da dramaturgia: a voz da audiodescrição conversa comigo. É como se fosse um raio-X que me olha de fora e vai narrando as cenas, não só para o público surdo. Isso ocorre de forma poética, mais preocupada em trazer sensações do que descrever”, detalha. Além disso, as intérpretes de Libras são guias que também interagem com Asmeline.
Quem vê Emeli no palco não imagina que, desde seu nascimento, a jovem já passou por 13 cirurgias para alongar a perna direita em 13 centímetros, o que a tornou a primeira pessoa no Brasil a concluir esse tratamento. “Digo que meu lado esquerdo é a ‘mãe’, a base, a parte madura, que cuida da outra. Já o Pezinho não tem o mesmo ritmo, vive em outro tempo. É como um ser de espírito livre, que não quer crescer, e minhas cicatrizes viram suas tatuagens e piercings. O circo é um lugar onde me sinto bem, onde tenho coragem para fazer o que, no dia a dia, tenho medo. Acredito que devemos ocupar os espaços que são nossos por direito”, avalia. Ao final do espetáculo, Asmeline, Pezão e Pezinho fazem um número em tecido acrobático, no qual seus pés finalmente conseguem voar.
Intitulado Cuir – Couro, o espetáculo belga encenado pelo dançarino contemporâneo e professor de ioga Gilles Polet e pelo ginasta Arno Ferrera (que também assina a direção artística) investiga as identidades LGBTQIAPN+ ao discutir a relação entre dois homens e suas questões envolvendo as masculinidades, a virilidade e o poder. O figurino de ambos é inspirado em arreios de couro, como os usados por cavalos – daí o título do espetáculo. Mas a palavra cuir (couro, em francês) também é o termo latino para queer, amplificando os significados do trabalho. Em cena, os artistas manipulam o corpo um do outro, numa luta consensual coreografada por acrobacias.
Outra montagem que, além de cativar esteticamente, sensibiliza para questões socioculturais, é Colibri – Uma Fábula Circense Latino-americana, do coletivo Um Café da Manhã. O trabalho inclui a artista trans Eliara Queiroz e reúne artistas do Brasil, México, Peru e Colômbia. Em pauta, o decolonialismo e as identidades latino-americanas: cada técnica circense é relacionada a diferentes mitos e à história de formação desses povos. “Batizamos de Colibri porque esse pássaro é o único que voa para frente e para trás, numa simbologia de olharmos para o futuro e para o passado ao mesmo tempo”, explica a fundadora do coletivo, Ana Coll.
Ela conta que os 12 artistas em cena são corporalmente distintos. “A estética, porém, não é o que nos motiva, e sim as técnicas e temáticas com que nos expressamos e comunicamos. Sempre dialogamos com esse circo para adultos, embora as crianças compreendam outras camadas que estão ali. Elas interagem de outra maneira, e as reações também ocorrem em momentos diferentes. Buscamos o risco, o surpreendente, o extraordinário”, revela Ana, que no espetáculo realiza números aéreos, de dança e mastro chinês.
Companhias africanas desembarcarão pela primeira vez no Brasil, para a sétima temporada do CIRCOS. Com o espetáculo Yé – Água, o Circus Baobab, da Guiné, trata da desigualdade na distribuição de água potável no planeta, além de tocar em temas sensíveis como violência de gênero, corrupção e desigualdade social. Já a Cia. Afuma, do Togo, apresenta Edukikan – Coração Valente e participa do cortejo de encerramento do festival, no dia 25 de junho, na Avenida Paulista. “Os dois países ficam na África Ocidental e tiveram colonização francesa. No Togo, por exemplo, há uma madeira muito leve e resistente, com a qual esses artistas fazem pernas de pau de até 3,5 metros de altura. Eles vêm de um projeto social e já passaram pela França e Polônia, além de vilarejos em seu país de origem. Aqui, vão dar também uma oficina de pernas de pau, porque as nossas chegam a no máximo 1,20 metro”, compara a produtora executiva e pesquisadora Bel Toledo, especialista em circo há mais de 30 anos.
Bel é também uma das fundadoras do Circo de Ébanos, primeira companhia de artistas circenses negros do país, criada em 2007 como um projeto social para incluir profissionais pretos e pardos (vindos sobretudo das periferias paulistanas). Hoje, a companhia conta com oito artistas, que estreiam neste mês o espetáculo Fio Forte. “Esse trabalho tem uma pegada mais contemporânea e um número aéreo e coletivo multicordas. O nome vem dessa demonstração de força e união entre os integrantes”, explica a produtora, que já foi presidente da Cooperativa Brasileira de Circo e diretora do Picadeiro Circo Escola, em Osasco (SP).
Bel acrescenta que hoje vivemos um momento propício à diversidade, à aceitação de diferentes corpos. Além da multiplicidade na cor da pele, a companhia tem uma musicista gorda. “Antigamente, havia circos de lona com uma balança ao lado do picadeiro, para pesar os artistas, principalmente as mulheres, que também tinham que pintar o cabelo de loiro. Hoje vemos outra realidade, mais plural, mas levamos anos para chegar até aqui”, completa a pesquisadora, que já rodou o Nordeste e países como Portugal e Itália com o Circo de Ébanos.
Para a pesquisadora, esse processo de inclusão de corpos e temas diversos na arte está acontecendo em todas as linguagens contemporâneas, quebrando paradigmas. “O circo, em sua origem, pertencia a um universo familiar, muito tradicional, mas há cerca de duas décadas estamos respirando novos ares, ficando mais plurais e transparentes. Nossa narrativa se ampliou. Hoje não precisamos mais bater de porta em porta atrás de trabalho, há uma demanda que vem até nós. Estamos vivendo este momento profícuo para o circo, que só tende a se fortalecer e se expandir em todo o mundo”, finaliza Bel Toledo.
Para adultos e crianças, panorama da produção circense contemporânea compõe a 7ª edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo
Da palhaçaria à acrobacia, do malabarismo às intersecções com a performance e a dança, a sétima edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo é realizada de 16 a 25 de junho, em 13 unidades do Sesc São Paulo. Criado em 2013, e transformado em bianual em 2015, o evento apresenta um panorama diversificado e contemporâneo da produção circense. Um dos destaques deste ano é a quantidade de espetáculos que buscam dialogar com o público adulto – embora a maioria das performances seja destinada a todas as idades.
Neste ano, o CIRCOS apresenta seis estreias e quatro espetáculos inéditos nas Américas, com artistas de 19 países, três continentes e quatro estados brasileiros. No palco, expressiva presença de artistas negros e participação de profissionais não cisgêneros, além de uma diversidade de corpos, origens e estéticas nas criações. Assim, as companhias abrem espaço para trocas e reconhecimentos de referências não hegemônicas dentro desse universo.
“O CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo chega ao marco de dez anos de existência, com uma vocação: ser um lugar de discussão dessa linguagem, de encontros, trocas e conexões. Nesta edição, a curadoria traz ao público um panorama multifacetado das manifestações circenses da contemporaneidade”, afirma Marina Zan, assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.
Um cortejo inédito, nos arredores do Sesc Avenida Paulista, vai encerrar o festival no dia 25/6, às 14h30, com a participação da Cia. Afuma (Togo), dos Pernaltas do Orun, da Trupe Baião de 2 e do Bloco Afro Ilú Obá De Min. Para além das apresentações, o festival também abre espaço para diálogos em atividades formativas, além do lançamento do livro A arte do circo na América do Sul – Trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea, organizado pela professora argentina Julieta Infantino e publicado pelas Edições Sesc São Paulo.
Confira alguns destaques da programação:
VILA MARIANA
Yé – Água
Com Circus Baobab (Guiné). Um quarto da população mundial não tem acesso à água potável. Partindo dessa premissa, artistas disputam uma garrafa de água em acrobacias e coreografias inspiradas em danças tradicionais africanas, hip-hop, krump e técnicas de teatro.
De 16 a 18/6. Sexta, às 20h. Sábado, às 21h. Domingo, às 18h.
CONSOLAÇÃO
23 fragmentos desses últimos dias
Com Instrumento de Ver (Brasil/Brasília e França). Em um número de faquirismo, a dor dos passos sobre cacos de vidro representa as mazelas do Brasil. Somam-se números de contorcionismo, acrobacias, shows aéreos e danças brasileiras.
De 23 a 25/6. Sexta e sábado, às 20h. Domingo, às 14h.
SANTANA
Um domingo
Com Proyecto MIGRA e Galpão de Guevara (Argentina). Para contar a história de uma família aristocrática em decadência, acrobacia, malabarismo e suspensão capilar se mesclam ao teatro e à dança, com elementos de ilusionismo.
Dias 17 e 18/6. Sábado e domingo, às 18h.
GUARULHOS
Construtores
Com Coletivo Vertigem (São Paulo). Com o crescimento das cidades, é comum que elas pareçam sempre em obras. Como seria o dia a dia desses construtores se todas as suas atividades estivessem permeadas pelo circo?
Dias 24 e 25/6. Sábado, às 16h. Domingo, às 14h. GRÁTIS.
SESCTV
Guarany: histórias do circo dos pretos
SESC.DIGITAL
Curso Fundamentos de palhaçaria e comicidade física, com a Cia. La Mínima
EDIÇÕES SESC
Lançamento do livro A arte do circo na América do Sul – Trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea. Bate-papo com a organizadora do livro, Julieta Infantino, e Rafael de Barros.
Dia 23/6, às 14h, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. GRÁTIS.
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