Por Rachel Sciré*
“Isso era 1995, lembro como se fosse ontem quando ouvi Racionais pela primeira vez: eu não sabia se tinha tomado um tiro no peito, ou se eles eram a cura para aquele tiro no peito que a gente toma pela vida ser do jeito que é.
Eles falavam de mim, dos meus parentes, dos meus manos, da favela que eu morei, sem me conhecer. Através das músicas eles eram meus amigos, meus irmãos e nunca mais fiquei sozinho, é como se me dissessem:
– Dá cá tua mão, irmão. Eu vou te mostrar o mundo.”
Trecho do espetáculo Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, de Jé Oliveira, que será adaptado para transmissão no #EmCasaComSesc
Da mesma forma que a história da música popular brasileira pode ser dividida em antes e depois do Racionais MC’s, costumo imaginar, em um modo simplista, que é possível separar as pessoas entre aquelas que pararam para escutar os raps do grupo e aquelas que ainda não tiveram esta oportunidade. Isso porque a apreciação da obra do Racionais ultrapassa uma questão de gosto musical ao proporcionar uma rica experiência estética, resultado da elaboração musical e poética dos raps, e também um exercício filosófico para pensar a realidade brasileira.
Assim, logo que o novo coronavírus começou a se disseminar por aqui, foi inevitável lembrar do Racionais. Quem não tem familiaridade com os raps de Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue, talvez não tenha percebido como a pandemia explicitou uma questão presente de maneira central na obra do grupo: o valor da vida humana, em especial daquelas existências que em nossa sociedade são vistas como menos importantes, como a dos negros, a dos pobres, a dos marginais. Basta ouvir com atenção “Homem na Estrada”, “Tô Ouvindo Alguém me Chamar”, “Rapaz Comum”, por exemplo.
A pandemia deu novos contornos à política de morte que vigora por aqui desde os tempos coloniais. As engrenagens se escancararam por meio de declarações e atitudes de alguns governantes e empresários, tão acostumados às transações a ponto de trocar valores humanos por valores monetários. Mas não é eventual a confusão entre humanidade e lucratividade – vide o descaso com os grupos “improdutivos”, como os idosos (aposentados) e os pobres (mão de obra excedente). Ela é parte de um processo social em curso, no qual tudo é transformado em mercadoria, de modo que a vida possa ser medida em dinheiro. Por mais estarrecedoras e incabíveis que sejam metáforas como “CNPJs na UTI”, elas refletem o êxito do sistema vigente até o momento.
Em maior ou menor grau, imagino que todos nos perguntamos em algum instante desta quarentena sobre a chegada da morte para nós mesmos, para quem amamos e para outros mais vulneráveis. É esse peso da finitude que tem sido a nossa grande companhia durante o isolamento. A circunstância de ter a vida cotidiana oprimida pela proximidade da morte pode ser nova para grupos privilegiados da população, mas não é para a maioria das pessoas em nosso país, que enfrentam no dia a dia “mil chances de morrer”, seja pela atuação da polícia, pela miséria, pela doença, enfim, pelas múltiplas formas de violências a que estão submetidas. É justamente essa a tônica do álbum Sobrevivendo no Inferno (1997), do Racionais, que formaliza a experiência de se viver nas periferias de São Paulo no final da década de 1990, quando além de todas as desigualdades sociais, a violência urbana explodia, com o crescimento no número de homicídios individuais e de chacinas (alguns distritos da capital paulista apresentavam taxas de 100 homicídios por 100 mil habitantes).
“Tudo lá amontoado, só polícia de Estado, sem asfalto,
muito barro, pouco sarro, só catarro/
Qual é o trato, onde é que eu paro / Como é que eu saro?”
(Trecho de Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens)
Em seus raps, o Racionais mostra como era fácil morrer em São Paulo, caso você fosse negro e pobre. Ao elaborar esta condição no pungente espetáculo Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, peça tributária à obra do Racionais MC’s, o ator, diretor e dramaturgo Jé Oliveira, do Coletivo Negro, afirma que a vida poderia ser “vista como a construção do cadáver”, em “uma espécie de reversão simbólica do ato de existir”. O narrador da peça diz: “as pessoas morrem de muitos modos, mas alguns modos são moldes das mortes de alguns só…”.
Basta acompanhar as estatísticas da pandemia no Brasil para reconhecer como, ainda, para essas pessoas, “a morte se mostra fácil, de esquina, cotidiana, objetiva, é mato”, para usar as palavras do protagonista. De acordo com matéria do jornal O Estado de S.Paulo, publicada em 4/5/2020, em São Paulo, o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos. Mesmo que o instante da morte (crucial para qualquer indivíduo) nos aproxime, não há igualdade possível perto de quem precisa sobreviver diariamente ao racismo e às injustiças sociais, que resultam em insegurança alimentar, falta de moradia adequada e de saneamento básico, desemprego ou informalidade, acesso restrito ao sistema de Saúde…
A pandemia evidenciou como em nossa sociedade algumas vidas parecem não ter “tanto valor”. Essa constatação está presente no rap “Diário de um Detento”, que narra o massacre na Casa de Detenção do Carandiru. Isso, quando estamos na iminência de ver se repetir um genocídio possivelmente maior que o de 1992, conforme alertou o Conselho Nacional de Justiça, sobre o risco de uma “tragédia humanitária sem proporções” com a chegada do coronavírus nas prisões do país. Se a dignidade de qualquer vida humana não parece ser o bastante para se sensibilizar, vale lembrar que mais de 50% das pessoas presas no Brasil cumprem pena por crime sem violência ou grave ameaça.
Apesar de ter versado sobre a morte, Racionais abriu trilhas em direção às possibilidades de vida, caminho que Jé Oliveira também percorre em sua peça-show, que é também um manifesto de re-existência. Ao honrar os mortos, organizar o ódio para o revide, recuperar a sabedoria das performances cotidianas nas periferias e nas musicalidades negras, seus raps são uma injeção de força vital – axé. Trata-se de uma poética de cura, de reencantamento, de redescoberta de potências no cotidiano. Racionais cantou a morte para promover a vida, fez a alma voltar ao corpo de quem se enxergava como alvo em um cotidiano suicida. Se quisermos de fato encaminhar alguma transformação no mundo pós-pandemia, temos muito a aprender com eles.
Para que essa inspiração nos contagie, fica o convite para assistir a adaptação de Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, nesta sexta (22/5), às 21h30, no YouTube do Sesc São Paulo, como parte da programação do #EmCasaComSesc. A apresentação, tão necessária, também é uma forma de celebrar os 50 anos de Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown, recém completados em abril, e de reverenciar o talento de Jé Oliveira, exemplo “vivão” de como a poesia dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” pode se multiplicar e florescer.
*Rachel Sciré pesquisou as figuras de marginalidade nos raps do Racionais MC´s e nos sambas-malandros de Germano Mathias em sua dissertação de mestrado. É jornalista, editora web do Sesc Vila Mariana e mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
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