São vastos e plurais os conhecimentos que atravessam séculos e permanecem em diferentes fazeres na sociedade contemporânea
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Leia a edição de JULHO/24 da Revista E na íntegra
Nas palavras do pensador e escritor Ailton Krenak, os mais velhos têm “a habilitação de quem passou por várias etapas da experiência de viver” e, por isso, “são os contadores de histórias, os que ensinam as medicinas, a arte, os fundamentos de tudo que é relevante para ter uma boa vida”, escreveu em Futuro ancestral (Companhia das Letras, 2022). No livro, Krenak descortina os olhos de não indígenas para as tecnologias ancestrais no intuito que estas sejam reconhecidas pelas novas gerações. Saberes como a leitura do céu ou a colheita dos olhos do buriti para extração da fibra que servirá para a criação de cestas e outros objetos, dentre tantos outros. A tecnologia da produção, fio por fio, da lã para a confecção de mantas e roupas, ou da preparação de um escalda-pés para o cuidado com a saúde. Conhecimentos que atravessaram milhares de anos e que, assim como as estrelas, brilham no firmamento do século 21.
Diferentemente da ideia popular que associa tecnologia às inovações no campo digital, o significado de tecnologia nada mais é do que um conjunto de técnicas e processos que, segundo a antropóloga e linguista Ivânia dos Santos Neves, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), parte da observação da natureza. “Vejo a tecnologia como a produção de conhecimento a partir da observação, a partir de experimentações, erros, e de métodos. Isso fez com que o homem chegasse às suas primeiras tecnologias do saber. Vai muito além do que hoje a gente pensa em relação ao eletrônico”, explica.
CORPOS CELESTES
Pesquisadora há mais de 25 anos de saberes e cosmologias das sociedades amazônicas, Neves estuda os céus indígenas desde 1998. “O céu visto pelos indígenas sempre foi algo que chamou muita atenção dos europeus na colonização. Os povos originários sempre tiveram uma precisão ao identificar as estrelas, o Sol e a Lua, as fases da Lua, os planetas – não com esses nomes, mas tinham essa tecnologia. Eles sabiam o momento em que tal constelação, por exemplo, a constelação da Ema, ia aparecer”, conta.
Se no ocidente identificam-se os desenhos das constelações pelos pontos formados pelas estrelas, para muitas sociedades indígenas o desenho não é delineado pelos corpos celestes, mas pelos espaços escuros – são eles que criam uma forma. Também são muitos os sentidos para os fenômenos astronômicos: uma estrela cadente, por exemplo, pode indicar uma indígena que resolveu fugir de um casamento ou alguém que virou “encantado”. O céu tampouco está a anos-luz de distância desses povos. Para os Mbyá-Guarani e os Tembé, o braço visível da Via Láctea (aquela mancha esbranquiçada) é Tapirapé, o Caminho da Anta.
Estamos mais próximos que distantes do firmamento, segundo as cosmologias dos povos originários, porque o céu é uma extensão do caminho da floresta. “Ele é uma colcha de retalhos quando a gente pensa que as sociedades humanas olharam para o céu e lhes deram distintas denominações, com configurações também diferentes. Na concepção Mbyá-Guarani, lá onde estão as Três Marias, na constelação de Órion, de uma forma geral, está localizado o homem velho dos Mbyá-Guarani, e nessa mesma região do céu, para os Tembé, está a constelação do Jabuti”, destaca a antropóloga.
Contrariando a perspectiva de que esses conhecimentos astronômicos ancestrais estão ultrapassados, Neves aponta que ferramentas de orientação, como o GPS – Sistema de Posicionamento Global criado pelo exército estadunidense na segunda metade do século 20 –, já se provaram ineficientes na floresta. “Eu já vivi essa experiência com alguns indígenas na qual eles mostraram como o GPS é uma tecnologia que não dá conta quando você se perde dentro da floresta. Mas, se você souber ler os movimentos do Sol durante o dia, você consegue sair. Quem conhece o céu se orienta e não se perde na floresta”, conta a antropóloga que estará na programação do FestA! – Festival de Aprender, ação realizada pelo Sesc São Paulo [leia boxe Festival de aprender], no bate-papo Da Terra ao Céu: Astronomia Ancestral, junto ao astrônomo Rundsthen Vasques de Nader.
Com o crescente movimento de inclusão digital nas aldeias, há uma preocupação que os novos não se interessem pelas tecnologias ancestrais. Pensando nisso, a pesquisadora conta que Célia Tembé, liderança do povo Tembé, no Pará, montou uma espécie de aldeia alternativa, um núcleo só com os membros de sua família, e criou a regra de que crianças de até 10 anos só falariam a língua tenetehara (a língua dos Tembé), e que todas conheceriam as constelações. “Quão significativo é para uma criança olhar e saber onde está o Cruzeiro do Sul, mas também saber que aquilo ali é o bico de uma garça? Isso é pluralidade. Há uma diferença grande entre ‘ter’ uma relação com o universo e ‘ser’ parte do universo. O [Ailton] Krenak tem uma fala bonita em que diz que o rio é seu avô. Então, na grande maioria das cosmologias indígenas, o que a gente vai observar é que as estrelas são parte daquilo que esses povos são. Não existe ruptura”, sintetiza.
PELOS OLHOS
Ainda pouco conhecido pelos turistas que viajam para os Lençóis Maranhenses, o artesanato do município de Barreirinhas (MA) preserva um conhecimento cujas raízes indígenas e quilombolas encontram-se em saberes e fazeres locais. Abundante na região, o buriti é uma palmeira de até 30 metros de altura, batizado por povos originários como “árvore da vida”. Dele aproveita-se tudo: folhas, talos, frutos e sementes que servirão tanto para a alimentação quanto para a arte, gerando renda e autonomia para centenas de famílias. Entre algumas iniciativas que dão vazão a esse saber está a Cooperativa de Artesãs dos Lençóis Maranhenses – Artecoop [que também irá compor a programação do FestA!].
Assim como outros povos que no passado habitaram a região, pela prática do manejo sustentável – extração em consonância com a preservação de um recurso natural – ainda hoje retira-se o olho do buriti, parte da folha mais nova que fica no centro da palmeira, localizada no alto. “Há todo um conhecimento, desde o plantio até a colheita, e da quantidade de olhos que se pode tirar a cada lua etc. As artesãs têm muito respeito por esse manejo para garantir que esse olho nasça de novo e que essa palmeira continue viva”, conta Camila Pinheiro, idealizadora do projeto MÃOS – Movimento de Artesãs e Ofícios, que trabalha com o mapeamento e difusão de saberes e fazeres ancestrais. Com a fibra vegetal do buriti, mais de 30 mulheres da Artecoop trançam bolsas, chapéus, caminhos de mesa, jogos americanos, sandálias, objetos de decoração, entre outras peças. O trançado da fibra também é um legado indígena transmitido de geração a geração, nas comunidades locais, pela oralidade.
E quando a fibra é desfiada, chega-se ao linho, a parte mais nobre da folha. Esse linho pode ser tingido com corantes naturais – a partir de folhas, cascas, sementes –, e seus fios, levados para secar à sombra para, então, serem organizados em novelos. “Parece um fio de algodão porque não é rígido. É uma palha bem maleável”, explica Pinheiro. Das mãos que colhem, fiam e traçam um saber ancestral faz-se um movimento que hoje, no “deserto brasileiro”, como é conhecida a região, fomenta o trabalho dessas e de outras centenas de artesãs de Barreirinhas que se encarregam de ensinar às mais jovens técnicas que se mantêm perenes.
FIO A FIO
E mesmo quando o conhecimento ancestral aparta-se em tempo e geografia, a oralidade é capaz de preservá-lo e mantê-lo presente. Esse é o caso do trabalho realizado pelas fiandeiras do Mãostiqueiras [que também irá compor a programação do FestA!], negócio social desenvolvido em Campos do Jordão, município paulista na Serra da Mantiqueira. A ideia de criar essa iniciativa é da administradora Juliana Müller, quando descobriu que a maior parte dos criadores de ovelhas da região fazia a tosquia anual de seus animais e jogava toda a lã fora. “São mais de mil ovelhas no entorno da cidade, ou seja, três a cinco quilos de lã por ovelha, um total de três toneladas de lã, por ano, desperdiçadas. Essa quantidade de matéria-prima com tanto valor histórico e cultural, somada à possibilidade de geração de renda para as pessoas daqui, motivou a criação do Mãostisqueiras”, explica Müller.
Se havia ali a oportunidade de uso de uma valiosa fibra têxtil, também havia a oportunidade de beneficiamento da lã e produção a partir de técnicas tradicionais familiares e regionais. O caminho foi, então, resgatar tecnologias ancestrais que pudessem ser utilizadas pela comunidade de artesãs. “Existe uma forma industrial, altamente avançada, que foi desenvolvida ao longo do tempo, mas existe também a possibilidade de resgatar e reintroduzir os saberes e fazeres ancestrais aqui em nossa região. Algo que esteve presente na Serra da Mantiqueira, há décadas, e que havia se perdido. A gente buscou esse conhecimento em outras regiões, como Cunha e Amparo, porque aqui não tinha equipamento e as pessoas se lembravam, apenas, de partes dos processos”, recorda a administradora.
EXISTE UMA FORMA INDUSTRIAL, ALTAMENTE AVANÇADA, QUE FOI DESENVOLVIDA AO LONGO DO TEMPO, MAS EXISTE TAMBÉM A POSSIBILIDADE DE RESGATAR E REINTRODUZIR OS SABERES E FAZERES ANCESTRAIS AQUI EM NOSSA REGIÃO.
JULIANA MÜLLER, IDEALIZADORA DO MÃOSTIQUEIRAS
Formado por mais de 50 artesãs na Serra da Mantiqueira (Campos de Jordão- SP), o Mãostiqueiras faz todo o processo tradicional de beneficiamento da lã: na imagem, o processo de cardar, ou seja, pentear a lã para que todas as fibras fiquem na mesma direção. Foto: Juliana Porto Gonçalves
Hoje, um ciclo que começa com os produtores de ovelhas, segue para as mãos das artesãs que irão lavar e secar a lã para abrir suas fibras, cardar – pentear para que todas as fibras fiquem na mesma direção –, e assim fazerem o fio num fuso ou numa roca. “O que a gente faz hoje é uma coisa que não se sabe nem de quando é a tecnologia. Imagine que uma ovelha foi domesticada oito mil anos a.C, então a gente está falando de dez mil anos atrás. Já o fio de lã começa a ser produzido por volta de quatro mil anos a.C., a partir da criação dos fusos, que precedem a roca, tecnologia que usamos hoje e que é uma invenção medieval, de mil a 1.200 d.C.”, contextualiza Juliana Müller.
Ao olhar para esses saltos da história, a administradora reforça a importância dos jovens também se envolverem nesse resgate e valorização de processos e técnicas ancestrais. “Hoje a gente tem várias filhas, netas e sobrinhas das artesãs que fazem parte da iniciativa. São mais de 50 mulheres trabalhando no Mãostiqueiras. Isso faz com que a gente fique mais tranquila, porque existe essa salvaguarda. Sabemos que esses saberes estão assegurados”, celebra.
PLANTA DO PÉ
Filha de Oxum, a pedagoga, doula e fitoterapeuta Edite Neves conta que em seus ofícios sempre foi movida pelas águas. “Quantas mulheres se cuidavam a partir da água porque a água tem a sua própria tecnologia de acalanto e cura. Então, muitas mulheres, quando iam ao rio, estavam ali no seu processo de cura, ou para se banhar, para lavar as crianças ou para lavar suas roupas, enquanto o rio corria”, descreve. Idealizadora do Coletivo Ciranda Acolhedora [que também irá compor a programação do FestA!], Neves realiza diferentes ações a partir de conhecimentos ancestrais indígenas e quilombolas. Entre algumas das práticas realizadas está o escalda-pés, que remonta à Idade Antiga e que é conhecido pelos seus benefícios à saúde e pela promoção de bem-estar.
Banhados por águas, sais e ervas, esses saberes chegaram à fitoterapeuta por histórias contadas pelos mais velhos. “Minha mãe sempre falou dos tratos e dos cuidados que vinham pelas ervas, mas ela era uma mulher que buscava as ervas pela cozinha. Minha avó também veio dessa perspectiva. Então, elas se tratavam com o que estava ali na proximidade da mão. Era aquele ‘mato que come’, hoje conhecido como PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) que elas iam experimentando. E eu acho que essa é para mim a grande tecnologia: experimentar algo e saber como aquilo reage no seu corpo. Aí você tem uma devolutiva, porque você prestou atenção no seu corpo”, constata.
Do lugar de nutrição para o lugar de cuidado, as ervas tornaram-se objeto de estudo da fitoterapeuta em casa, no terreiro de religiões de matriz africana e na Terra Indígena Piaçaguera, no município de Peruíbe (SP), com a anciã Catarina Nimbopyruá. “A gente não pode usar qualquer erva com qualquer pessoa porque cada pessoa tem as próprias ervas que mudam sua energia”, explica Neves que, antes de ofertar o escalda-pés, faz uma anamnese com quem o vai receber. “Para a criança, a gente sempre usa rosa branca, que equaliza a energia. Já uma pessoa colérica, a gente não vai ofertar elementos quentes, como gengibre e canela, mas ervas tranquilizadoras, a exemplo da camomila, que acolhe muito bem”, explica.
Ao dedicar-se a uma pesquisa contínua e permanente das propriedades curativas de uma infinidade de ervas, Edite Neves observa que é possível integrar o conhecimento científico às tecnologias ancestrais. “Nessas pesquisas, vou buscando um pouco esse cunho científico sem abandonar a ancestralidade, que também está no ritual de abrir e fechar uma roda, no ritual de uma escuta afetiva desses três corpos – físico, emocional e espiritual – para se fazer um escalda-pés. Esse é um espaço onde só a água, pela água, já relaxa. A água quente, então, relaxa e amolece. E a água quente com uma erva, relaxa, amolece e produz um outro espaço de acolhimento e cura”, finaliza.
Na 7ª edição do FestA!, unidades do Sesc São Paulo na capital, interior e litoral reúnem diversas atividades sobre conhecimentos milenares em fazeres artísticos
Partindo da ideia inspiradora “O futuro é ancestral”, a sétima edição do FestA! – Festival de Aprender, realizado pelo Sesc São Paulo, celebra a ancestralidade em saberes e fazeres aproximando o público de outras cosmovisões, práticas e percursos criativos. Ao todo, 41 unidades do Sesc – capital, interior e litoral do estado de São Paulo –, realizam mais de 400 ações, como vivências, bate-papos, oficinas e cursos, numa programação que acontece entre 5 e 14 de julho.
“Nessa edição do FestA!, o Sesc São Paulo oferece uma programação com atividades diversas que miram a importância de saberes e fazeres ancestrais e plurais, com o intuito de aproximar o público de outras cosmovisões, práticas e percursos criativos. Dessa forma, esperamos valorizar os variados repertórios culturais presentes no campo expandido das artes visuais e manuais”, afirma Juliana Braga, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc.
Confira alguns destaques da programação:
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Arte e ancestralidade indígena: tradições, experimentações e resistências
DEBATE Com Edgar Kanaykõ e Moara Tupinambá.
Neste encontro, o fotógrafo Edgar Kanaykõ, da Terra Indígena Xakriabá (MG), e a artista visual Moara Tupinambá, vice-presidente da associação multiétnica Wyka Kwara, apresentam as suas trajetórias, trabalhos e debatem a relação entre arte e ancestralidade em suas produções artísticas.
Dia 10/7, quarta, das 19h às 21h.
AVENIDA PAULISTA
Renda Renascença: técnicas têxteis e cantos de trabalho
OFICINA Com Rendeiras da Aldeia (Carapicuíba – SP).
Rendar, cantar e difundir a tradição da Renda Renascença. Esses são os propósitos do grupo Rendeiras da Aldeia que, enquanto rendam, cantam saberes trazidos de seus lugares de origem, preservados e compartilhados. Nessa oficina, os participantes conhecerão uma das técnicas têxteis mais tradicionais, a renda renascença, enquanto aprendem os Cantos de Trabalho, canções entoadas durante todo o processo de feitura da renda.
De 5 a 7/7, sexta a domingo, das 11h às 13h.
CAMPO LIMPO
21
INTERVENÇÃO
Por Jair Guilherme Filho, artista, pesquisador e percussionista.
Em um processo aberto, a escultura 21 será reordenada. Criada por Jair Guilherme Filho, ela é composta por 250 peças de cerâmica que serão lixadas uma a uma, tratadas, queimadas em temperaturas ainda mais altas que no primeiro processo, e novamente pintadas. A madeira virará ferro tratado com corrosão e tratado novamente para evitar que a corrosão continue. A base de madeira agora será o solo. É a reordenação para uma “nova obra”.
Dia 5/7, sexta, das 10h às 18h.
CAMPINAS
Arpilleria: Escrevendo histórias coletivas
OFICINA Com Coletivo de Artesãs do Movimento de Atingidos por Barragens.
O bordado também é história, política e resistência. As linhas que traçam as lutas e denúncias das mulheres atingidas por barragens no país se entrelaçam com as lutas e denúncias das mulheres chilenas que, no período da ditadura militar de Pinochet (1973-1990), burlaram a repressão por meio do bordado, como forma de comunicação com outras mulheres.
Dias 13 e 14/7, terça, às 10h30.
Informações em sescsp.org.br/festa
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