EMBARQUE NOS ROTEIROS DE CINCO LIVROS CONTEMPORÂNEOS,
FAÇA UMA VIAGEM PELO TEMPO-ESPAÇO E SURPREENDA-SE
POR LUNA D’ALAMA
Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra
São Paulo é uma cidade lírica, culturalmente efervescente e que já serviu de inspiração, tema central ou cenário para inúmeras histórias da literatura. Prosas, poesias, quadrinhos e outras linguagens artísticas homenageiam a capital paulista em toda a sua complexidade e caos urbano. Que tal visitar lugares da metrópole presentes em cinco obras literárias contemporâneas? Embarque nesses roteiros (narrativos e geográficos), viaje pelo tempo-espaço e surpreenda-se. Boa leitura!
INFANTOJUVENIL
REFÚGIO NO CENTRO
Lançado em 1993, o romance O último mamífero do Martinelli, de Marcos Rey (1925-1999), conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Conto, em 1994. Nessa envolvente narrativa de ação e mistério, ambientada no período da ditatura civil-militar, o protagonista é um perseguido político que encontra abrigo no Edifício Martinelli, no centro de São Paulo. Considerado o primeiro arranha-céu da cidade, o prédio projetado pelo empresário italiano Giuseppe Martinelli (1870-1946) aparece, na história, fechado para reforma. O personagem invasor, então, torna-se uma espécie de arqueólogo urbano a vasculhar o edifício. Entre uma máquina de escrever, placas antigas, um piano e um bilhete, o homem passa o tempo inventando histórias e recriando a própria vida. Aos poucos, passado e presente, ficção e realidade se misturam. Após o falecimento do autor (cujo nome de batismo era Edmundo Donato), suas cinzas foram espalhadas pela capital paulista, que se consagrou como cenário de seus contos e romances. Rey, que também trabalhou como roteirista, redator publicitário e cronista, captou e recriou a atmosfera da metrópole e de seus personagens, incluindo a aristocracia, a classe média e a vida noturna. O mistério do 5 estrelas (1981), O rapto do garoto de ouro (1982), Sozinha no mundo (1984), O diabo no porta-malas (1995) e O menino que adivinhava (2000) são outros de seus sucessos.
O último mamífero do Martinelli, de Marcos Rey. Ilustrações: Rogério Soud
Global Editora – 9ª edição, 2014, 103 páginas.
Suponho que toda grande cidade, pelo menos no mundo ocidental, ostente um edifício antigo, de gloriosa memória, que já tenha sido o mais alto, o de metro quadrado mais caro ou o indicador de um novo índice de progresso. Nas artes e em quase tudo, o moderno ambicioso, desafiante, criado para impressionar, é o que mais depressa envelhece. Portanto, esses marcos arquitetônicos sempre acabam por se transformar em trambolhos urbanos, dinossauros enjanelados. Temos um edifício assim, aqui, em São Paulo, construído no final dos anos vinte, o Martinelli, então o mais alto da cidade, do país e da América do Sul, que foi, durante décadas, com seus 25 andares, o ápice do orgulho dos paulistanos. Éramos o maior centro industrial da América Latina, apregoavam os bondes em letras vermelhas, tínhamos o café, o corso chique da Avenida Paulista nos carnavais e o Martinelli, um autêntico arranha-céu, segundo a denominação daquela época de transição que trocava a influência tradicional, europeia, pela norte-americana, de remessa recente, embalada em filmes e discos. (p. 11)
HQ
VIVA ADONIRAN
Desenhista de histórias em quadrinhos no mercado estadunidense desde a década de 1990, o brasileiro Roger Cruz já colaborou com a Marvel e a DC Comics até lançar obras do gênero em português. Em Quaisqualigundum, vencedora do prêmio HQMIX em 2015, quatro contos se baseiam em letras do cantor e compositor paulista Adoniran Barbosa (1912-1982), considerado um dos maiores sambistas do país e famoso por entoar bairros paulistanos como o Bixiga e o Jaçanã. O título da obra vem de um verso da canção Saudosa Maloca, um dos clássicos de Adoniran, que também fez sucesso com Trem das onze e Tiro ao Álvaro, entre outros. As histórias Maloca, A saga de Ernesto, Mané e Marinez, e Cipolla e Bracholas misturam drama e comédia ao mostrar o cotidiano de personagens na maior cidade da América do Sul, em constante transformação. A narrativa é dinâmica, quase cinematográfica, e as ilustrações são assinadas por Davi Calil, que usou a técnica tradicional de aquarela e guache, com um desenho estilizado e cores contrastantes. Escrito com a linguagem popular da época (“fumo”, “vortemo”, “nóis num vai”, “ansim”), o livro tem prefácio de Sidney Gusman, da Mauricio de Sousa Produções, e as orelhas são de autoria do rapper Emicida. Ganhou a versão em inglês Quais.
Quaisqualigundum, de Roger Cruz e Davi Calil (ilustrador)
Dead Hamster, 2014, 99 páginas.
A saga de Ernesto
“A vida é uma gangorra”, como já foi dito.
“Às vezes, você está por cima, às vezes, está por baixo.”
Ernesto mal percebeu quando a gangorra começou a descer novamente.
Horas atrás, estava no Clube do Camburão, no torneio secreto de jogadores de dominó.
Disputava a partida final da categoria Seniores contra Genésio, um odiado rival que limpara seus bolsos em ocasiões anteriores.
Mas, desta vez, Ernesto apresentava uma confiança incomum, como se tivesse nas mãos um jogo perfeito, imbatível.
– Eu sei o que tô fazendo, Durval. Fica quieto e não me zica!
– Genésio já é nove vezes campeão.
– Só do Ernesto, já ganhou quatro vezes.
– 45 minutos já.
– Vixe! Isso é qui é jogo de nervos.
– Vou passar o mês tomando sol com a patroa em Porto de Galinhas com o seu dinheiro, meu príncipe. Rá, rá, rá!
– Vai sonhando, Genésio! Cê não vai tê galinha dispois qui eu deitá a úrtima pedra! Espera só pra vê.
– Cê ainda sente falta da motoca? Fiz um bom dinheirinho com ela, sabia?
– Humpf, calaboca e joga logo, sujeito!
(p. 33-34)
NÃO FICÇÃO
SANTA RITA DE SAMPA
A primeira autobiografia da cantora e compositora Rita Lee (1947-2023) foi lançada sete anos antes de sua morte. Escrito em parceria com o jornalista Guilherme Samora, fã e grande conhecedor do legado cultural da artista, o livro passa por diferentes momentos da vida pessoal e musical de Rita. Atravessa sua infância, juventude, casamento, maternidade, trabalhos com Os Mutantes e em carreira solo. Também narra traumas, a prisão em 1976, mudanças de casa, canções de sucesso e viagens – além, é claro, de situar lugares e bairros da cidade de São Paulo (como Vila Mariana, Paraíso, Higienópolis e Pompeia), onde Rita nasceu, estudou e morou, ao lado do marido, Roberto de Carvalho, até o fim da vida. Segundo Samora, com seus tropeços e glórias, “do primeiro disco voador ao último porre, Rita é consistente. Corajosa. Sem culpa nenhuma. Tanto que, ao ler o livro, várias vezes temos a sensação de estar diante de uma bio não autorizada, tamanha a honestidade nas histórias”. A autobiografada participou ativamente da produção da obra: escolheu fotos, criou legendas, fez a capa, pensou na contracapa e nas orelhas. “Sua essência está nessas páginas.”
Rita Lee: Uma Autobiografia, de Rita Lee (com o jornalista Guilherme Samora)
Editora Globo, 2016, 296 páginas.
Lembro que a única loja de discos atualizada em São Paulo era a Hi‑Fi, na rua Augusta. Esperei horas na fila para comprar o primeiro LP dos Rolling Stones. O planetário do Ibirapuera era o must semanal, e depois da sessão, uma banana‑split na lanchonete ao lado. Conhecia Sampa de ponta a ponta, do Museu do Ipiranga à Galeria Metrópole, da Augusta a Interlagos, do Bixiga à praça da Sé. Lembro quando construíram o Conjunto Nacional, das escadarias elegantes do Cine Metro, dos lampiões do Teatro Municipal, da sempre emocionante travessia do viaduto do Chá, da vista no topo do Banco do Estado, do chiquê do edifício Martinelli, das arcadas românticas da faculdade do largo de São Francisco. Lembro até do observatório astronômico no lugar onde hoje fica o Masp. Nessas andações, descobri a Casa dos Artistas na “suspeita” rua Major Sertório, centrão de São Paulo, um brechó de circo e teatro, a butique perfeita para os Mutantes. (p. 67)
POESIA
QUEBRADA EM VERSOS
Dividida em cinco volumes, cada um deles dedicado a uma região da cidade de São Paulo (Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro), a coletânea poética Espelhos da Quebrada apresenta artistas locais que compartilham suas vivências, emoções e rimas. Na edição dedicada à Zona Leste, os poetas Paulo Carvalho, Viviane Santiago, Kamila com K, MC Leandro, Maré, Stephany Santos e Nego Blues dão à luz o sonho de muitos escritores independentes e periféricos. Eles integram grupos como o Coletivo Samba do Zé, o Slam da Guilhermina, o Sarau do Movimento Aliança da Praça (MAP), a Okupação Cultural Coragem e o Movimento Cultural Ermelino Matarazzo. Nesse projeto, iniciado em 2021 via lei de incentivo Aldir Blanc, os autores propõem uma viagem pela metrópole por meio do transporte público e de vozes que um dia já foram marginalizadas, celebrando a potência e a ancestralidade de suas escritas.
Espelhos da Quebrada: Zona Leste, de vários autores
Juliana Correia/Grandir Produções – 2022, 93 páginas.
6H00
Cheguei no ponto
Tô com medo
Esqueci como é viver sem medo
Tem aquele ditado né,
Um dia depois do outro
De onde eu vim não tem isso não
A gente sempre precisa pensar no amanhã
Na mistura, no bilhete, no boleto
Sempre tem alguma coisa amanhã
Eu tenho medo
E se amanhã não chegar?
E se amanhã chegar hoje?
É tanta coisa
É tipo você olhando a esquina
Do ponto de ônibus da rua deserta
Às 6h da manhã
Lá na esquina você espera vir
o ônibus
Mas às vezes ele não vem
Às vezes ele já veio
E muitas vezes ele vem cheio de
gente dentro
É tanta coisa pra sentir medo
Esqueci de como é
viver sem medo
Acho que nunca aprendi
(Paulo Carvalho, p. 15-17)
ICAMIABAS
todas as mulheres da minha família eram poetas
poetas de periferia
guerreiras de ponta de esquina
uma a uma engoliram suas palavras, e
ficaram mudas
assim morreram
todas
por isso, grito
escrevo o que te aflige
toma um gole de Montilla
me engolir a seco
é indigesto
(Viviane Santiago, p. 25)
DE MULHER PRA MULHER
se o teu feminismo não alcança a mulher de quebrada, então
é só demagogia
o feminismo nasce de uma guria
jogada ao chão
pisada e molestada
abandonada por tantas vezes
que não resta nenhuma opção
senão a defesa
se seu feminismo não nos dá as mãos, segue reto
militância de Patrícia
não cabe
em beco de favela
ou nas vielas da periferia
(Viviane Santiago, p. 31)
ESTAÇÃO FINAL
escrevo meus passos
por onde ando, os caminhos
que traço
batalho
pelas ruas da selva de pedra
e de quebra me vejo perdida
nos espaços
da terra da periferia
ao quente do asfalto
se não existe amor em SP
então
como podemos chamar o que faço?
metrôs lotados,
ruas alagadas
vielas…
e eu vi nelas
reflexos espelhados
artistas perdidos
e desacreditados
a nossa arte sendo apagada
e substituída
meu coração agora é um muro pintado
de cinza, vazio
é a selva são paulo
fazendo jus ao seu próprio legado
carregando a nossa arte na mochila,
junto ao corpo
pra que eles não roubem
pra que ela não morra
pra que considerem justa toda forma
de expressar
do cantar ao pintar
do rimar ao recitar…
de mãos dadas com essa cidade
“representatividade”
eles disseram
quando nos viram recitando
mas poucos me viram
ilhada
em meio ao alagamento dos meus
olhos
cansada
sentada no chão do trem lotado em
meio às lágrimas…
mais uma conexão
da linha turquesa até a safira
desculpa aí, se esbarrei em
alguém na fila
nem olhei pra trás, mas hoje eu vejo
que ando perdida pelas linhas coloridas de Essi Pê
com bilhete na mão, sem mais inspiração pra escrever, pois bem
seco as lágrimas
pra viver meu destino final
“Estação São Miguel Paulista,
desembarque pelo lado
direito do trem”
(Maré, p. 59-61)
FICÇÃO
PECADO CAPITAL
Publicado pela primeira vez no ano 2000, o romance Capão Pecado marcou época e se tornou uma das maiores obras da literatura marginal brasileira. Projetou o nome do autor Ferréz na cena nacional contemporânea, com mais de 100 mil exemplares vendidos. O livro é ambientado no distrito do Capão Redondo, na Zona Sul da capital paulista, e conta a história do adolescente Rael, que se esforça para arrumar um bom emprego e sair do ambiente violento onde cresceu. Seu destino, porém, muda quando o rapaz se apaixona por Paula, namorada de um amigo. Na trama, tudo está por um fio, a vida vale pouco e o futuro fica mais para a frente – muitas vezes, tão para a frente que pode ser tarde demais. A força da obra, e sua capacidade de provocar reflexões ainda hoje, está em narrar uma sociedade extremamente desigual, em que o machismo e a crueldade ditam as regras. O posfácio é assinado pelo escritor pernambucano Marcelino Freire, que reside em São Paulo.
Capão Pecado, de Ferréz
Companhia das Letras – 6ª edição, 2020, 144 páginas.
(…) não entendia o nome do lugar. Capão Redondo era um nome muito estranho, e o que lhe tinham explicado era que o nome vinha de um artefato indígena, pois os índios faziam um cestão de palha que tinha o nome de capão, e vendo essa área de longe se tinha a impressão de ser uma cesta. Colocaram o nome de Capão Redondo, ou seja, “uma grande cesta redonda”. (p. 28-29)
Notas do autor à atual edição:
E numa tarde fui a um amigo e o preparei para ficar com os originais do que eu tinha escrito, com medo de morrer antes de terminar o livro. Aos poucos a vida criminal foi chegando, eu estava entrando no clima do bairro. Entre terminar de ler um velho romance do Hesse e descarregar uma carga roubada, entre escrever mais um capítulo e ir com os manos ver uma situação, entre testemunhar os meus próximos se matando sem nem arranhar a superfície do sistema, as palavras foram crescendo, e era nítido quem iria ganhar. A literatura é egoísta demais para ser dividida com o crime. (p. 14)
A EDIÇÃO DE NOVEMBRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de NOVEMBRO/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.