A arte de ensinar e aprender no ofício de cinco artistas de diferentes áreas, linguagens e origens
Por Luna D’Alama
Leia a edição de julho/23 da Revista E na íntegra
É comum ouvir que uma criança está “fazendo arte” ou que nos perguntem se é preciso que “desenhem” quando não entendemos algo. Percebemos nessas expressões uma conotação pejorativa atribuída ao fazer artístico, mesmo que seja inconsciente ou não intencional. Para a arte-educadora Ana Mae Barbosa, porém, a arte possibilita a organização e a expressão mentais, pois, por meio de experiências com diferentes linguagens e técnicas, nos “contaminamos”, ou seja, abrimos nossos processos cognitivos e exercitamos a criatividade.
Professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Anhembi Morumbi, Ana Mae gosta de citar a visão do poeta e crítico de arte britânico Herbert Read (1893-1968), que acreditava na arte como um esforço humano para entrar em compasso com os ritmos constantes da vida. “Para mim, a arte teve diferentes significados ao longo do tempo. Já simbolizou encantamento e empatia. Hoje serve de consolo e proteção para que eu não me sinta vítima da vida”, conta a arte-educadora, que se formou com Paulo Freire (1921-1997), é mestre em arte-educação pela Universidade Estadual do Sul de Connecticut e doutora em educação humanística pela Universidade de Boston, ambas nos Estados Unidos.
A pesquisadora de 87 anos, que já escreveu e organizou diversos livros sobre o tema, como Ensino da arte: memória e história (Perspectiva, 2011) e Abordagem triangular do ensino das artes e culturas visuais (Cortez, 2012), diz que não acredita no ensino da arte como transmissão de conhecimento, mas sim como promoção e provocação de experiências. “A recepção nesse processo, inclusive, é diferente em cada um de nós, e em cada momento da vida”, defende a professora. Sem hierarquias, o método da abordagem triangular – proposta de ensino de arte para crianças, sistematizada por Ana Mae há 30 anos – baseia-se em três eixos principais: a apreciação (leitura) das imagens, a contextualização das obras e a produção artística.
A arte-educadora acredita, ainda, no uso de espaços diversificados para trabalhar as artes visuais, na reutilização de materiais e em diferentes meios e formatos para olhar as imagens. Para além de escolas e espaços institucionais de ensino, a arte pode ser desenvolvida na educação não formal, que se faz presente em lugares de encontro, de convivência, e nos esforços de muitos profissionais que realizam projetos artísticos e ações socioeducativas.
A seguir, você vai conhecer cinco artistas, de diferentes áreas, origens e linguagens, que compartilham aprendizados obtidos ao longo da carreira. Quais inspirações e motivações os levam a disseminar técnicas familiares e ancestrais? Neste mês de férias, eles integram a programação do FestA! – Festival de Aprender [Leia mais em Aprender é uma festa!], ação do Sesc São Paulo que oferece cursos, oficinas, bate-papos, feiras, demonstrações e vivências no universo das artes visuais e das tecnologias.
Taygoara Schiavinoto | escultura
Natural de Ribeirão Preto (SP), o educador e artista visual Taygoara Schiavinoto concentra suas pesquisas na cultura popular brasileira, na produção afro-brasileira e afrodiaspórica e em manifestações não tradicionais de arte. Seu primeiro contato com o universo artístico ocorreu ainda na infância, na oficina de joias do pai, que era ourives. Ao longo do tempo, compreendeu o potencial do ateliê como um lugar de formação e desenvolvimento constantes. “O pensamento sobre a educação atravessa toda a minha trajetória, antes mesmo de eu chegar ao ensino formal. O trabalho do educador, que é um eterno estudante, caracteriza-se por uma permanente busca por pesquisa e experiência. Desde o planejamento da aula até a classe em si, o profissional percorre diversos espaços, tanto teóricos quanto práticos. Na relação com os alunos, negociam-se vontades, limites e pontos de convergência”, considera Schiavinoto.
Foi na graduação em artes visuais – escultura pela Universidade de São Paulo (USP) que o então estudante descobriu seu interesse pela madeira como matéria-prima de suas obras. Mas foi no dia a dia, em seu próprio ateliê, que Taygoara pôde aprimorar esses conhecimentos, observar artesãos mais experientes e trocar experiências com os colegas. “Essa vivência foi fundamental para o desenvolvimento do que aprendi e do que ensino atualmente”, relembra.
Para o artista, o Brasil tem uma rica tradição na escultura em madeira, que por muito tempo foi desvalorizada. “Esses escultores-artesãos, que muitas vezes estiveram às margens, produziram e ainda produzem obras de imenso impacto na arte contemporânea. Minha principal motivação, ao ensinar e praticar o que sei, é destacar e reconhecer profissionais que vieram antes de mim, entendendo sua importância e contribuição para o cenário artístico do país”, revela. Para o escultor, que ministra uma oficina de figas em madeira no Sesc Carmo, no dia 12/7, incorporar esse grupo de escultores em seus cursos o inspira e impulsiona. “Sigo os passos de outros educadores e artistas que também se empenham em valorizar esses indivíduos talentosos da história da arte brasileira, trabalhando juntos para romper barreiras e garantir o merecido reconhecimento de suas obras”, finaliza.
Cida Ivanov | cerâmica
A ceramista Maria Aparecida Ivanov vem de uma família de italianos e russos que se uniu na Vila Prudente, bairro da zona leste da capital paulista. Seu avô materno era músico, enquanto o paterno esculpia peças fundidas em alumínio. Há três décadas, ela se mudou para São Sebastião (SP), no litoral norte, pois desejava criar as duas filhas com mais qualidade de vida. Aos 60 anos, decidiu retornar à universidade para concluir o curso de pedagogia que havia interrompido anos atrás.
Em 2001, Cida fez um curso de cerâmica em que conheceu a professora Adélia Barsotti. “Foi naquele momento, vendo aquela senhora forte, que decidi assumir a responsabilidade de multiplicar esse saber-fazer caiçara, imerso em histórias indígenas e afro-brasileiras”, conta a artista, que também encontrou na manipulação do barro uma prática terapêutica contra a ansiedade.
A partir daquele momento, Cida mergulhou no universo da cerâmica utilitária da região, para compreender a importância dessa técnica. Descobriu que, no século 19, utensílios feitos no local eram enviados em canoas para o Rio de Janeiro e para o Porto de Santos, a fim de abastecer a Coroa portuguesa. Além disso, serviam de moeda de troca com moradores de Ilhabela (SP).
Em 1906, cem paneleiras queimavam suas peças na Rua do Fogo, onde ficavam os fornos de São Sebastião. Em 2001, porém, só havia Dona Adélia, que já enfrentava dificuldades para obter matéria-prima havia mais de meio século. “Nos últimos 22 anos, sou eu a mantenedora dessa arte. Compro o barro de uma olaria em Paraibuna (SP), e meu forno é a gás. Ensino a ‘lida’, como dizia Dona Adélia, a crianças, adolescentes, adultos e idosos. Ver os olhos deles brilhando não tem preço, é algo que me completa. Por meio da oralidade e da prática, consigo mensurar a importância histórica e cultural do meu trabalho. Perpetuar e multiplicar esse conhecimento é parte da minha construção como ser humano”, diz Cida, que desde 2005 também desenvolve oficinas em escolas municipais e projetos na área de saúde mental, em Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) da cidade. Entre 11 e 14/7, ela ministra uma oficina e um curso de cerâmica identitária no Sesc Bertioga.
Pedro Karaí Ruvixa | música
Artista indígena das etnias Xucuru-Kariri, de Palmeira dos Índios (AL), Pedro Karaí Ruvixa se dedica à musicoterapia nativa e à confecção de instrumentos sonoros como o maracá. Para ele, transmitir saberes ancestrais é uma maneira de valorizar a cultura de seus povos. “Esse é um legado dos meus antepassados, que utilizam o maracá há milênios, como uma ferramenta de conexão com o sagrado, a natureza e os astros. Passar esse conhecimento adiante, portanto, é uma honra e uma forma de ser a continuação deles”, acredita.
Ruvixa explica que o maracá é usado pelos Xucuru-Kariri e por outras etnias em rituais de cura e de passagem, rezas, cantos, danças, lutas e até em brincadeiras infantis. “Faz parte das nossas tradições e da nossa resistência”, resume. O artista também toca diferentes tipos de flautas nativas, flauta doce, violão e tambor. Autodidata, ele conta que foi inspirado por sua ancestralidade: “O espírito toca a flauta, e a flauta toca o espírito. Sou um guardião das flautas nativas. Não toco músicas prontas, mas melodias que vêm do meu coração”.
Após passar a adolescência ouvindo esse instrumento de sopro – criado pelos hominídeos no Neolítico, com a intenção de imitar o som dos pássaros –, Ruvixa começou a tocá-lo em 2017, quando conheceu um luthier peruano em um festival de música. “Ele fez uma flauta para mim, inspirada no modelo Siyotanka, usado pelo povo Lakota, originário da América do Norte. Segundo histórias antigas, esse instrumento surgiu em um período de muitas guerras e lutas dos povos nativos contra invasores, e veio para promover a paz”, destaca.
O artista admite que gosta de meditar ao som da flauta. “Também busco levar bem-estar às pessoas com a musicoterapia nativa, em vivências sensoriais coletivas, como a que será realizada no Sesc Consolação, no dia 16/7. De acordo com Ruvixa, a vibração desses sons ancestrais é capaz de promover a conexão consigo e com o ambiente. “São formas de reduzir o estresse e a ansiedade, ao menos por um instante, como um bom vento que sopra levando tudo o que pesa e deixando boas sensações”, define.
Cynthia Mariah | joalheria e moda
Com quase 20 anos de carreira, a designer de joias, estilista e pesquisadora Cynthia Mariah começou a criar acessórios em 2004, para uso próprio. Nascida na zona sul de São Paulo, em uma família de artesãos, ela buscava adornos corporais que a representassem, mas, em poucos meses, já estava produzindo também para parentes e amigos, sob encomenda. “Tinha como propósito confeccionar peças únicas e exclusivas, e, conforme aumentava o entendimento sobre a minha negritude, meu trabalho passou a carregar características culturais, identitárias e ancestrais”, conta.
A artista explica que sua criação em joalheria é pensada sob uma perspectiva que enaltece estéticas, técnicas e tecnologias pretas. Por isso, ela trabalha com elementos diversos (naturais, industriais, reciclados e ressignificados), que transmitem conhecimentos, características e legados africanos e afrodiaspóricos. “Ministro aulas desde 2012 e proponho um resgate de saberes e fazeres manuais. Busco, ainda, democratizar o ensino de modas decoloniais e afrocosmopolitas, pois esse segmento ainda tem uma dominação branca e bastante elitista. Proponho trocas coletivas, respeito ao tempo e às especificidades dos meus alunos, pois somos todos importantes e detentores de conhecimentos”, afirma a professora, que apresenta suas coleções nas passarelas da Casa de Criadores, plataforma dedicada à moda e à arte brasileiras.
Cynthia Mariah começou a entender melhor seu trabalho em 2014, quando participou de uma oficina sobre joalheria africana no Sesc Belenzinho. Três anos depois, fez outra oficina, dessa vez no Sesc Itaquera, que a ensinou a lidar com metais e amadurecer um design autoral. Ela também estudou sobre “joias de crioulas”, enormes peças de ouro que adornavam mulheres negras escravizadas durante o Brasil colonial, especialmente na Bahia, como forma de demonstrar o poder de seus senhores. “Minhas joias hoje transitam entre passado, presente e futuro, trazendo a ancestralidade e o afrofuturismo para uma realidade afrocosmopolita”, analisa a artista, que conduz, neste mês, uma vivência de joalheria afrodiaspórica no Sesc Belenzinho, entre os dias 7 e 9/7, e residência artística de ateliê de moda no Sesc Bom Retiro, entre 11 e 15/7.
Allan Moreira | eletrônica e instalações
Graduado em engenharia da computação, apaixonado por tecnologia e com experiência em eletrônica e desenvolvimento de softwares há quase 30 anos, Allan Moreira é cofundador do Estúdio Hacker e dá aulas de eletrônica analógica e digital, programação e microcontroladores. Atua também em diversos projetos sociais voltados à educação de novas tecnologias para crianças, adultos e professores. Ele recorda que sua experiência em sala de aula começou em 1998, quando recebeu um convite do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) para ministrar cursos de curta duração na área.
Moreira também trabalhou por muitos anos com desenvolvimento de projetos eletrônicos voltados à segurança e automação industrial, participando de todas as etapas – desde o protótipo até a implantação. “Esse processo me fez vivenciar constantemente a espiral da aprendizagem: imaginar, criar, testar, prototipar, refletir, recriar e compartilhar.” Segundo o engenheiro, a tecnologia tem evoluído muito – e rapidamente – nas últimas décadas, e hoje está presente de forma onipresente em nosso cotidiano. “Por isso, desenvolver, saber integrar e fazer o melhor uso de soluções que melhorem a nossa vida, ou contribuam para toda a comunidade, é o que me motiva a colaborar para que mais pessoas se apropriem desses conhecimentos”, afirma.
O cofundador do Estúdio Hacker conta que sua maior satisfação é ver um saber – anteriormente restrito a engenheiros – chegar a artistas, estudantes e entusiastas, que podem dar vida a suas criações. “Ao ensinar, também identifico lacunas que preciso evoluir como professor, ser humano, pai e amigo. Como dizia Paulo Freire: ‘Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender’”, cita. Neste mês, ele estará no Sesc Pompeia, entre os dias 9 e 16/7, com o curso Cidades desobedientes: ecologia do impossível, por meio do qual pretende desenvolver a criação coletiva de instalações artísticas, eletrônicas e tecnologias da articulação. Além do Estúdio Hacker, o curso conta com a participação de Victor Guerra e do Núcleo de Jovens Políticos do Fundão, grupo da comunidade de M’Boi Mirim, no extremo sul da capital paulista.
De 7 a 16 de julho, Sesc São Paulo oferece mais de 500 atividades artísticas na sexta edição do FestA! – Festival de Aprender
Pintura, escultura, marcenaria, artesanato, arte digital. Criação de mandalas, instrumentos musicais, brinquedos, peças têxteis e obras audiovisuais. Tudo isso – e muito mais – está presente na programação da sexta edição do FestA! – Festival de Aprender, que o Sesc São Paulo realiza de 7 a 16 de julho em todas as unidades do estado. São mais de 500 atividades em artes e tecnologias, todas gratuitas e voltadas para diversos públicos – 59 delas tendo como foco as crianças, neste mês de férias.
Para celebrar os processos de aprendizado e de experimentação, o FestA! traz cursos, oficinas, bate-papos, vivências, feiras, demonstrações, instalações visuais e exibição de filmes, entre outras ações. O objetivo é dar visibilidade a diferentes saberes e oferecer possibilidades para as pessoas aprenderem e experimentarem novas técnicas. Entre as feiras, que ocorrem em nove unidades, há exposições de artesanato, saberes tradicionais, esculturas, jogos, universo geek, artes gráficas e publicações de editoras independentes.
“O Festival de Aprender é a expressão de um tempo de festa para nós. Com ele, celebramos toda a diversidade de fazeres e de aprendizados que ocupam, ao longo de todo o ano, a grade de cursos e oficinas em tecnologias e artes visuais nas unidades do Sesc São Paulo”, ressalta Juliana Braga de Mattos, gerente de Artes Visuais e Tecnologia no Sesc São Paulo.
Confira alguns destaques da programação:
AVENIDA PAULISTA
Brincando de fazer brinquedo: produção artesanal de miriti
Oficina para público demonstração de técnicas sustentáveis de manuseio do talo da palmeira do miriti, como corte, lixagem e pintura, e valorização da cultura paraense. Com Valdeli Costa, da Associação Arte Miriti de Abaetetuba (PA).
Dias 14 e 15/7, sexta e sábado, das 11h às 13h e das 14h30 às 16h30.
24 DE MAIO
Festival jogatório
Feira que promove a aproximação do público com a produção brasileira de jogos, de diversas linguagens e plataformas. Em 35 mesas, criadores de games digitais, analógicos e desenvolvedores mostram seus trabalhos, além de promoverem um pequeno campeonato.
Dia 8/7, sábado, das 11h às 19h, e dia 9/7, domingo, das 11h às 16h.
BERTIOGA
Rabeca de lata
Oficina com Mestre Pedro Caetano, que conta a história da rabeca e do ritmo fandango, além de ensinar crianças e adultos a criarem uma versão em lata do instrumento – tradicionalmente feito em madeira. De sonoridade única, a rabeca é confeccionada artesanalmente por caiçaras do litoral norte de São Paulo.
Dia 8/7, sábado, das 10h às 13h.
JUNDIAÍ
Feira de saberes tradicionais
Encontro de artesãos, que demonstram técnicas e compartilham seus saberes, além de exibir suas criações ao público.
Dias 8 e 9/7, sábado e domingo.
SESC DIGITAL
Curso EAD Abordagem Triangular e o Ensino de Arte na Educação Infantil, com Ana Mae Barbosa e convidados
Em seis videoaulas e no material de apoio, que inclui dicas de atividades, é possível encontrar elementos que possibilitam a fundamentação teórica e prática na construção de experiências artístico-educativas com crianças de 3 a 5 anos. Conteúdo voltado para professores e famílias.
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