Contemplativa #1

29/08/2017

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Scriptio (2013)

Flo Menezes nomeia como escritura a dimensão da elaboração presente no processo criativo. Vejamos como ele estabelece, na introdução da partitura, a ligação entre este conceito e o título de sua obra:

A essência de toda escritura, no sentido etimológico da palavra latina scriptura, é a processualidade, a elaboração dos dados estruturais e estruturantes que coabita o espaço da criação com os afetos, cujo amálgama determina a essência mesma da música: uma espécie de matemática dos afetos1. A toda escritura — seja ela mais ou menos distanciada da notação — subsiste portanto uma ação de escrever, o percurso de toda elaboração. É a este sentido originário, à raiz da ação de escrever, que se refere o título desta obra: Scriptio = ação de escrever, ou — com um neologismo em português — escrição. (Grifos no original.)

Scriptio refere-se, portanto, à ação de escrever, atividade que participa de ofícios tão díspares quanto os do compositor, do escritor, do dramaturgo, ou mesmo do orador, no momento em que concebe seu discurso. Mas não apenas estes, porque o que define o escrever não é propriamente a notação, mas o processo de elaboração — escreve quem estabelece os elementos de um discurso e os desdobra, relaciona, modula, modela, diferencia e vincula, contrasta e aproxima. O termo poderia então se referir a qualquer obra? Em certa medida sim, pois se trata de uma dimensão essencial, transversal a toda criação. No entanto, aqui Flo Menezes quis colocar em foco a especificidade da decisão que ocorre na relação do compositor com o papel (ou com a tela do computador), o complexo e rico processo de imaginar o som — em suas múltiplas articulações, das mais locais às mais globais — e traduzir esta imagem sonora em signos que serão, por sua vez, interpretados por um instrumentista. O compositor não apenas se expressa pela partitura, mas também, dialeticamente, se forma por meio dela — aprende ao escrever sua própria obra.

Nesta peça, portanto, Flo confere uma maior liberdade a uma mão densamente educada pelo pensamento estruturador que tanto pratica em suas composições, e com isso amplia a importância do detalhe da manipulação do material a cada momento. Trata-se de deixar o lápis guiar o ouvido imaginário, acompanhar a si mesmo enquanto cria sem ditar as regras a partir de uma onipotente consciência do todo, deixar-se surpreender por si mesmo a imergir no fragmento, no momento. Curioso exercício de autoalteridade é este de escrever: é descobrir a peça que se escreveria, escrevendo-a, e passado este limiar já se é outra pessoa, aquela que escreveu este fragmento de música e não mais quem a precedeu.

[…]

Prossigo na visão especular com a poesia. Assim como a proximidade sonora ou imagética (melopeia fanopeia, no dizer de Ezra Pound) de duas palavras poderá suscitar inusitadas associações de ideias (logopeia) que articulem um poema, sutis mas marcantes, transformações pontuais no som — no timbre, no modo como o arco incide nas cordas, na articulação etc. — permitem conexões a princípio inesperadas, mas totalmente motivadas. O som é complexo por si e, ao ressaltar este dado, o compositor pode ativar a partir de cada elemento sonoro as bifurcações que conduzem à totalidade dos processos de uma obra. Cada palavra soma-se cumulativamente num campo semântico em expansão e densificação permanentes. É também a isso que me refiro quando traço a analogia de Scriptio com textos poéticos de longo fôlego. Como a Divina Comédia de Dante, os Cantos de Pound ou, mais próximo de nós, as Galáxias de Haroldo de Campos: o fluxo do discurso é a um só tempo vigoroso e flexível e a todo momento qualquer um de seus termos pode ser retomado.

O ouvinte apreende os elementos à medida que eles aparecem e estabelece as conexões em tempo real. Alguns perfis afirmam-se, como melodias cantáveis mesmo, e certas notas polarizadas (sobretudo por aparecerem prolongadas e em posição de destaque) fixam balizas na memória, permitindo funcionalizar as aproximações e afastamentos. A primeira nota, um Si agudo prolongado sobre o qual se realiza um trinado com a nota Dó, estabelece um primeiro lócus, ao qual se retornará algumas vezes — desdobrando-se inicialmente na nota Mi, décima segunda abaixo. Mais adiante, o Mi bemol agudo de característica morfológica similar à do Si estabelecerá um novo centro polar.

Similar baliza harmônica só será estabilizada pela nota Sol grave (correspondente à quarta corda solta do violino): é somente quando o violino percorre todo o seu registro e atinge seu ponto mais grave que se anuncia o perfil principal. Este evento articulador (e mesmo gerador) da estrutura, plenamente enunciado com o ataque isolado e prolongado do Sol grave, remete diretamente à peça orquestral Formazioni, de Luciano Berio, obra referencial para Flo Menezes, em que a principal estrutura é enunciada pelos metais, aproximadamente no meio da peça, e por acaso iniciando com a mesma nota Sol.

Quando o Si do início retornar, funcionará como anúncio de que a dobra escritural pós-perfil, com seus desenvolvimentos paganinianos que levarão ao termo Scriptio, está por vir. Na conclusão da obra, o Si demarca ainda uma última aparição do perfil principal, cujo processo final o reverte em sua constituições rítmicas e dinâmicas. Ele é, então, sucedido pelo Sol grave, prolongado, tocado pelo violinista em alternância a trechos do próprio perfil por ele escolhidos e memorizados, enquanto deixa o palco. A obra ritualiza tanto a entrada em cena quanto a saída do músico, em que a mescla entre gesto teatral e escuta espacial pervade a escuta, o que remete a outras obras de Flo Menezes (como A dialética da praialabORAtorioLa novità del suono, entre outras), concorrendo para se criar uma atmosfera profundamente solene. Aqui também o compositor parece operar numa chave afirmativa, de acumulação semântica. Como se ressignificasse um monumento — o violino –, reverenciando-lhe a história e somando-se a ela, sem perdas.

trecho do texto de Mauricio Ayer, extraído do livreto que faz parte do DVD Boulez +


Manuscritos da partitura da obra Scriptio_Flo Menezes
  1. Matemática dos afetos é o título de um tratado de (re)composição lançado por Flo Menezes em 2013, pela Edusp e Fapesp. A expressão proposta à guisa de definição da composição musical. ↩︎
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