Contemplativa #2

01/02/2018

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Improvisação 6 do CD Diálogos Interiores (Selo Sesc)

video-arte por Edu Varallo

O disco traz um íntimo diálogo entre dois músicos imersos no mundo dos sons. Com um violoncelo (Dimos Goudaroulis) e um pequeno set de percussão (Eduardo Contrera), o duo A Arte do Instante apresenta composições criadas a partir da improvisação livre, partindo do silêncio para criar, em conjunto, uma música instantânea, que toma forma enquanto desaparece, mas que permanece viva neste registro.


“Nosso encontro ocorreu num momento de maturidade de nossas trajetórias musicais, entre as quais descobrimos grande afinidade — temos os dois vivência e uma ligação muito forte com o jazz e a improvisação, mas também com a música erudita e contemporânea e com várias músicas do mundo; esse trabalho é para nós como que uma síntese única dos vários ‘mundos’ que nossa prática musical abrange. Assim, em memórias, fragmentos e reminiscências transformadas em discurso pessoal, toda a música que vivemos faz-se presente nessa que chamamos de a Arte do Instante.”

Dimos Goudaroulis e Eduardo Contrera


Improvisação 6 (2014)

Olhe para a capa e contracapa desse CD. Nelas estão duas pinturas de Mark Rothko nas quais as cores puras, como mundos solitários, parecem gerar as formas por si mesmas através da força primal do gesto. Há como que o registro de uma busca, de um agon, um combate ao mesmo tempo intelectual e emocional, que busca exprimir o inexprimível: o vir a ser da forma.

A escolha de Rothko não é casual. Esse CD registra dezoito improvisações que revelam a mesma luta para captar o momento vivo do surgimento da forma musical em sua criação. São improvisos a dois, sem temas pré-concebidos, capazes de levar os ouvintes em uma viagem sonora na qual embarcamos quase sem sentir. Tudo aqui é verdadeiramente improvisação livre, tudo criado e tocado no ato. Sem regravação, edição, correção ou interferência. Do jeito mais puro e espontâneo — uma arte do instante.

Yellow and Blue (Yellow, Blue and Orange), 1955 e Light Red over Black, 1957 — obras de Mark Rothko / ®Rothko, Mark/AUTVIS, Brasil, 2015 / Akg-Images/Latinstock dasda

E isso não é algo que aconteça de repente. Há oito anos Dimos Goudaroulis e Eduardo Contrera realizam esse trabalho de forma contínua. Jamais tiveram preocupação comercial com o duo, fazendo música para si mesmos e poucas vezes mostrando-a publicamente. Esta pode ter sido uma das chaves para a construção livre do trabalho.

Sem prazos, só tinham (e ainda tem) um acordo tácito: nunca combinar nada antes de tocarem juntos, nunca trabalhar exercícios, ideias ou qualquer outra coisa pré-concebida. Desde o começo do duo eles perseguem uma arte rigorosa e disciplinada para com o improviso. Uma arte que começa no silêncio interior, que é quase sua matéria-prima bruta. A música deles não fica aprisionada em nenhuma exigência ou dogma. A linguagem que praticam é contemporânea ao incluir tudo que os rodeia, de forma orgânica, e sempre com uma postura camerística: sonoridades instigantes, cuidado absoluto com os timbres e cores do som, desenvolvimento e rigor formais — uma música de câmara improvisada.

Diálogos Interiores também têm uma importante dimensão espiritual. Ouvindo-se de um jeito quase religioso, profundo, mergulhados no mundo do som, despindo-se de clichês, Dimos e Eduardo alcançam um estágio original da prática musical: a música em sua essência, em seu estado primal. A improvisação equivale ao frágil vôo da borboleta — curto, imprevisível, mas de grande beleza e plasticidade — um gesto de resistência num mundo como o nosso, que nos molda para valorizar as grandes obras escritas.

Desse modo estão presentes aqui a música barroca que Dimos toca com grande propriedade, as lições de seus professores e a figura de seu modelo nesse campo, o grande violoncelista Anner Bylsma; a lembrança do aprendizado dos ritmos do candomblé de Eduardo; os mestres de ambos no jazz: Charles Mingus, Thelonious Monk, Steve Lacy, Don Cherry e tantos outros… Na improvisação livre propriamente dita, os dois reverenciam a memória de Derek Bailey.

Mas além de todas essas influências e encontros, há também a forte presença da música contemporânea, com a qual a estética do duo tem muitos pontos em comum. Ligeti, Schnittke, Scelsi, Lachenmann… e a respeito disso, uma história curiosa: ainda adolescente, Eduardo ouviu uma peça para percussão solo que revelou um mundo novo para ele, e que influiu em sua decisão de tornar-se percussionista; era “King of Denmark” de Morton Feldman — esse mesmo Morton Feldman que compôs “Rothko Chapel” em homenagem ao pintor. E voltamos assim ao nosso começo, como uma forma musical em que um ciclo se completa. A viagem, sempre diferente, pode começar novamente.

Dimos Goudaroulis — foto: Laura Rosenthal
Eduardo Contreras — foto: Laura Rosenthal

Dimos e Eduardo registraram 90 improvisações no Estúdio Cachuera durante três dias. As 18 finais que estão no CD constituem dois blocos de 9 faixas cada, simétricas, em espelho, com pausas diferentes entre si. E Improvisação 6 é uma das mais abstratas, que brinca com percussão, sons e vozes. Dimos toca pizzicati embaixo do cavalete e percute o corpo do cello. A percussão de Eduardo é frenética.

trecho do texto de João Marcos Coelho (jornalista e crítico musical), extraído do livreto que faz parte do CD Diálogos Interiores

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