Por Bibiana Graeff
Em 2024, no Brasil, as mais diversas instâncias dedicadas de alguma forma à Gerontologia parecem estar com os olhos voltados a uma temática: o cuidado. Talvez pelo fato de o governo federal ter lançado no ano passado um grupo de trabalho interministerial para elaborar uma política nacional de cuidados[1]. Ou ainda, mais recentemente, pelo Brasil ter aderido à Aliança Global pelo Cuidado, iniciativa do Instituto Nacional das Mulheres do México em parceria com a ONU Mulheres[2].
A preocupação com a questão dos cuidados tangencia muitas áreas como a saúde, a assistência social, a previdência, os direitos humanos, a educação ou a cultura. O enfrentamento dos desafios em matéria de cuidados requer que sejam considerados múltiplos fatores além das questões etárias, a exemplo das questões de gênero, de raça e da diversidade funcional. Mas não há dúvidas de que se trata de um tema gerontológico, no sentido de que cada etapa da vida demanda cuidados específicos, e que todas as pessoas necessitam de cuidados e deveriam ser também cuidadoras em algum momento, de alguma forma. Como diria Leonardo Boff, o cuidado é inerente à natureza humana[3].
A promoção de uma cultura de cuidados é uma das melhores formas de se prevenir situações de violência. A ausência de cuidados indispensáveis de que necessita uma pessoa já é, em si, uma forma de negligência, que se consubstancia em uma forma de violência, uma vez que esta pode ser produzida não só por ações, mas também por omissões.
Em um país que envelhece a passos largos, com tantas desigualdades socioeconômicas e considerável diversidade cultural, múltiplos e complexos são os desafios para a concepção e para a efetivação de políticas de cuidados. Se estas políticas devem se estabelecer em todos os níveis federativos, devem sobretudo ser implementadas em nível local, e por que não, comunitário[4]. No Brasil, como em outros países latino-americanos, o protagonismo das famílias em relação aos cuidados ainda é preponderante em comparação à atuação do Estado ou de empresas privadas[5]. Mas para a garantia dos cuidados ao longo da vida, não somente é preciso garantir apoios às famílias, como também é necessária a formulação de novas alternativas, frente às radicais modificações na estrutura familiar das últimas décadas, com a queda das taxas de fecundidade, além da maior indisponibilidade daquelas que ainda hoje majoritariamente assumem os encargos de cuidar: as mulheres. Inseridas no mercado de trabalho, exercem muitas vezes dupla ou tripla jornada, entre o trabalho formal e os cuidados em casa.
Na política de desenvolvimento das sociedades industrializadas e urbanizadas, sempre houve maior interesse na assistência materno-infantil[6] e dirigida aos jovens do que nos cuidados dirigidos às pessoas idosas, uma vez que estes não eram encarados como investimentos[7]. Se hoje existe amplo reconhecimento científico de que os cuidados em relação às pessoas idosas são, além de um dever moral e jurídico, também um investimento em termos econômicos para toda a sociedade, não se percebe ainda, no Brasil, um verdadeiro despertar de consciência política, dos gestores públicos e legisladores em relação a isso. Profissões dedicadas aos cuidados das pessoas idosas como os cuidadores de pessoas idosas ou à gestão da atenção ao envelhecimento como os gerontólogos ainda lutam por reconhecimento e pela regulamentação de sua atividade profissional. Tampouco observa-se nas carreiras médicas um maior interesse em relação à geriatria; apesar do acelerado envelhecimento populacional, ainda se formam mais pediatras do que geriatras[8].
Pensar em “cuidado” (do latim cogitare-cogitatur) remete a prestar atenção, cogitar, estar interessado, com atitude de preocupação em relação a algo ou a alguém[9]. Outra origem etimológica do latim é o termo cura ou sua versão mais antiga mera, significando a preocupação, o desvelo, no contexto das relações amorosas ou de amizade[10]. A palavra cuidado é polissêmica, podendo ser empregada em um sentido mais amplo, atitudinal, ou em um sentido mais estrito, em relação a apoios específicos ou ainda em relação a uma atenção ao agir em função de algum eventual perigo ou risco pontual.
Os cuidados podem ser transitórios, permanentes ou de longa duração. Todo ser humano necessita de cuidados transitórios e de cuidados permanentes. No contexto atual de transição demográfica e epidemiológica, com envelhecimento populacional e predomínio de doenças crônicas sobre as doenças infecciosas, há um aumento da demanda em termos de cuidados de longa duração.
Os cuidados podem ser prestados pela própria pessoa (autocuidado), ou por outrem. Quando prestados por outras pessoas, pode se tratar de profissionais (cuidado formal) ou simplesmente de pessoas próximas, familiares, vizinhos ou amigos (cuidado informal). Fala-se, assim, em rede formal e rede informal de suporte social. Os cuidados podem ser diretos (como alimentar um bebê ou cuidar de uma pessoa doente) ou indiretos (como cozinhar ou limpar a casa)[11]. Em relação às pessoas idosas com diferentes graus de dependência funcional, fala-se em apoios para as atividades básicas da vida diária (como se alimentar ou tomar banho) ou para as atividades instrumentais da vida diária (como preparar o alimento ou ir ao banco).
Os cuidados também podem e devem ser compreendidos numa perspectiva jurídica. Em relação à pessoa idosa, a Constituição Federal (CF) de 1988 estabeleceu que é dever da família, da sociedade e do Estado “amparar as pessoas idosas”. Este amparo é mais amplo do que o cuidado no sentido estrito dos apoios para a realização de atividades básicas ou instrumentais da vida diária. Este amparo pode ser equiparado a um cuidado num sentido ampliado, relacionando-se, inclusive, com a adoção pelo Estado de leis que reconheçam os direitos das pessoas idosas. A CF ainda determina que “os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares” (art. 230, § 1º); a legislação brasileira favorece aqui o princípio do aging in place, ou seja, o envelhecimento em comunidade[12]. Uma implementação de programas de amparo preferencialmente nos lares das pessoas idosas permite que estas possam receber os apoios necessários para permanecer vivendo em seu próprio ambiente, conforme seu desejo, pelo maior tempo possível[13]. Pode-se, assim, evitar institucionalizações precoces e indesejadas. A pessoa idosa pode, assim, permanecer em casa, inserida em um bairro, em uma comunidade, nos quais possui vínculos, identidade, história, memórias afetivas e redes de apoio.
Duas outras importantes leis brasileiras voltadas aos direitos da pessoa idosa se referem à palavra cuidados ou ao termo cuidador(es). A lei que estabelece a política nacional do idoso (lei no 8.842, de 4 de janeiro de 1994) dispõe que a área de assistência social deve estimular a criação de “centros de cuidados diurnos” e “atendimentos domiciliares”, entre outros (art. 10, I, b). Já o Estatuto da pessoa idosa (EPI, lei no 10.741, de 1 de outubro de 2003) prevê que os serviços de saúde devem prestar “orientação a cuidadores familiares e grupos de autoajuda” (art. 18). Dentre as obrigações das “entidades de atendimento à pessoa idosa” (a exemplo das instituições de longa permanência para idosos), foi estabelecido o dever de “proporcionar cuidados à saúde, conforme a necessidade da pessoa idosa” (EPI, art. 50, VIII). No crime de discriminar, desdenhar, humilhar ou menosprezar a pessoa idosa, foi estabelecido um aumento da pena se “a vítima se encontrar sob os cuidados ou responsabilidade do agente” (EPI, art. 96, § 2o). O Estatuto da Pessoa Idosa também introduziu um tipo de crime relacionado aos maus-tratos, que significa: “Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado” (EPI, art. 99). Assim, a omissão ou a negligência em relação a cuidados indispensáveis de que necessita uma pessoa idosa são consideradas um crime.
Por fim, vale também destacar que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos das Pessoas Idosas[14] (CIDHPI), de 2015 – assinada mas ainda não ratificada pelo Brasil – deu grande destaque aos cuidados. Desse modo, “bem-estar e cuidado”, bem como a “responsabilidade do Estado e a participação da comunidade e da família […] em seu cuidado e atenção” foram erigidos em princípios gerais aplicados à Convenção (art. 3, f), o que significa que todas as normas estabelecidas por este instrumento internacional devem ser interpretadas à luz desses valores. Foi o primeiro tratado internacional a reconhecer o direito a cuidados integrais, incluindo-se expressamente os cuidados paliativos, enquanto direito humano (art. 6). Os cuidados paliativos são definidos como:
A atenção e o cuidado ativo, integral e interdisciplinar de pacientes cuja enfermidade não responde a um tratamento curativo ou que sofrem dores evitáveis, a fim de melhorar sua qualidade de vida até o fim de seus dias. Implicam uma atenção primordial ao controle da dor, de outros sintomas e dos problemas sociais, psicológicos e espirituais do idoso. Abrangem o paciente, seu entorno e sua família. Afirmam a vida e consideram a morte como um processo normal; não a aceleram nem a retardam. (CIDHPI, art. 2).
A CIDHPI considera o “descuido” como uma das formas de negligência (art. 2), e trata dos “cuidados de longo prazo”, definindo a pessoa idosa que necessita desse tipo de cuidado[15], bem como os seus direitos específicos, apoiando-se em vários princípios ainda não expressamente reconhecidos em nossa legislação, como a consideração da perspectiva de gênero (art. 12[16]).
Se cuidar é claramente estabelecido como uma obrigação, ser cuidado é um direito (e não algo que se pode impor à pessoa idosa). Nesse sentido, a Convenção prevê expressamente que se deve assegurar que: “o início e término dos serviços de cuidado de longo prazo estejam sujeitos à manifestação da vontade livre e expressa do idoso” (art. 12, a). Com efeito, o respeito à autonomia e à vontade da pessoa idosa é um dos aspectos mais importantes em relação aos cuidados. O desrespeito a estes aspectos, transmuta o cuidado, mesmo que bem intencionado, em uma forma de abuso e violência[17]. Aliás, é essa perspectiva de cuidar do respeito à autonomia e à vontade da pessoa que conduz à obrigação de que os Estados devam adotar mecanismos que asseguram o registro antecipado da manifestação de vontade a respeito dos tratamentos e cuidados futuros a serem recebidos por uma pessoa (art. 11). No Brasil, temos hoje as diretivas antecipadas de vontade, mas é um dispositivo ainda frágil, em termos jurídicos, por não ser estabelecido por lei, e sim por uma simples resolução[18]. Também em relação ao respeito à autonomia nos cuidados, é fundamental que se leve em consideração nas atividades de lazer, esporte e recreação propostas “os interesses e as necessidades” das pessoas idosas, especialmente para as que recebem cuidados de longo prazo (CIDHPI, art. 22).
Bibiana Graeff
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito Ambiental pelas Universités de Paris 1 – Panthéon Sorbonne e de Paris 2, Panthéon-Assas (2003) e doutorado em Direito pela Université de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), em regime de co-tutela. É professora adjunta da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Leciona, entre outras disciplinas na graduação em Gerontologia da EACH: “Direitos Humanos e Envelhecimento”, atuando igualmente nas áreas do Direito Ambiental e do Direito Internacional Público. É membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da EACH/USP (Linha de Pesquisa: Gestão Gerontológica). É membro do Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Direito da USP (área de concentração: Direitos Humanos). Lidera o grupo de pesquisa: “Direitos Humanos, Envelhecimento e Velhice”. Atualmente, é vice-coordenadora do Curso de Bacharelado em Gerontologia (EACH/USP). Desde 2015, é responsável pelo convênio de Cooperação entre a EACH/USP e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para atividades de estágio dos estudantes de Gerontologia nesta instituição.
Este texto faz parte da Campanha de Conscientização da Violência contra Pessoa Idosa, realizada de 11 a 16 de junho pelo Sesc São Paulo. Em 2024, as ações têm como tema “Cuidado em Comunidade”, com diversas atividades em unidades de todo o estado. Acompanhe a programação pelo site: sescsp.org.br/contraviolencia
[1] Cf. Decreto Presidencial no 11.460, de 30 de março de 2023. In: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.460-de-30-de-marco-de-2023-474117782. Acesso em 21 de março de 2024.
[2] Cf. https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/29/brasil-adere-a-iniciativa-global-que-valoriza-atividades-de-cuidado-mais-exercidas-por-mulheres.ghtml. Acesso em 5 de abril de 2024.
[3] Boff, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópoles: Vozes, 1999.
[4] GRAEFF, B; BESTETTI, MLT. A Pessoa Idosa na Comunidade. In: FREITAS, EV; PY, L. Tratado de Geriatria e Gerontologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2022, pp. 1324-1330.
[5] Cf. https://revistapesquisa.fapesp.br/economia-do-cuidado/. Acesso em 4 de abril de 2024.
[6] Embora no Brasil apenas 35% das crianças tenha acesso à creche, com significativas diferenças entre a região norte (17,6%) e a região sul (43,3%), notando-se também diferença racial nessas regiões. Cf. https://jornal.usp.br/atualidades/cerca-de-180-mil-criancas-nao-tem-acesso-a-pre-escola-no-brasil/. Acesso em 6 de abril de 2024.
[7] Papaléo Netto, M. Estudo da Velhice: Histórico, Definição do Campo e Termos Básicos. In: FREITAS, EV; PY, L. Tratado de Geriatria e Gerontologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2022, e1-e8.
[8] “Só 10% das escolas médicas no Brasil têm uma disciplina chamada Geriatria […]. Entre os residentes no Brasil, 10% vão para a Pediatria, outros 10% para a Obstetrícia; 0,6% optam por Geriatria”. Cf. Alexandre Kalache. Fala pronunciada no programa Opinião, da TV Cultura, transmitido na quinta-feira dia 28 de março de 2024. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=2NJejJEqvQo&list=PLdnZUpbQ9PflUazzA7KZAMQHaPcQIVuI6. Acesso em 4 de abril de 2024.
[9] Zoboli ELCP. Bioética do cuidar: a ênfase na dimensão relacional. ESTIMA [Internet]. 2003 Mar. 1 [cited 2024 Mar. 21];1(1). Available from: https://www.revistaestima.com.br/estima/article/view/124.
[10] Idem.
[11] Cf. https://revistapesquisa.fapesp.br/economia-do-cuidado/. Acesso em 4 de abril de 2024.
[12] GRAEFF, B; BESTETTI, MLT. Op. cit. 2022.
[13] Também a Convenção Interamericana de Direitos Humanos das Pessoas Idosas de 2015 estabelece que os Estados-Partes devem facilitar o acesso da pessoa idosa a “serviços de cuidados domiciliares que lhes permitam residir em seu próprio domicílio conforme a sua vontade”, aspecto este relacionado à garantia do direito à moradia (art. 24).
[14] Na tradução oficial difundida pela Organização dos Estados Americanos, consta o termo “idosos” ao invés de “pessoas idosas”, uma falha de tradução, aos nossos olhos, uma vez que as versões em espanhol e em inglês referem-se respectivamente a personas mayores e older persons.
[15] A mesma é definida como a: “Pessoa que reside temporária ou permanentemente em um estabelecimento regulado, seja público, privado ou misto, no qual recebe serviços sociossanitários integrais de qualidade, incluindo as residências de longa estadia, que proporcionam esses serviços de atenção por tempo prolongado ao idoso com dependência moderada ou severa que não possa receber cuidados em seu domicílio”, CIDHPI, art. 2.
[16] Este artigo estabelece assim, entre outras disposições, que: “O idoso tem direito a um sistema integral de cuidados que proporcione proteção e promoção da saúde, cobertura de serviços sociais, segurança alimentar e nutricional, água, vestuário e habitação, permitindo que o idoso possa decidir permanecer em seu domicílio e manter sua independência e autonomia. Os Estados Partes deverão formular medidas de apoio às famílias e cuidadores mediante a introdução de serviços para aqueles que realizam atividades de cuidados para com o idoso, levando em conta as necessidades de todas as famílias e outras formas de cuidados, bem como a plena participação do idoso, respeitando sua opinião. Os Estados Partes deverão adotar medidas para desenvolver um sistema integral de cuidados que leve especialmente em conta a perspectiva de gênero e o respeito à dignidade e integridade física e mental do idoso […]”.
[17] Também na Convenção houve preocupação em se estabelecer mecanismos de prevenção de violência em domicílio e em instituições de cuidados de longo prazo, com capacitação e sensibilização de cuidadores formais e informais (art. 9, d, f e g). A capacitação de cuidadores também é estabelecida no artigo 19, o, como uma das medidas relacionadas à garantia do direito à saúde.
[18] Cf. Resolução no 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina.
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