Leia a edição de janeiro/23 da Revista E na íntegra POR MANUELLA FERREIRA
O olhar revolucionário da médica Nise da Silveira, que dignificou o atendimento psiquiátrico no Brasil por meio da arte
Durante os dez meses em que esteve preso no antigo Complexo Presidiário Frei Caneca, no Rio de Janeiro, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) costumava jogar cartas na companhia de uma prisioneira franzina, de fala meiga e expressão acolhedora. Conterrâneos, não se conheciam até serem detidos, em 1936, acusados de subversão pelo governo Getúlio Vargas (1882-1954). Rapidamente se tornaram amigos, e conversavam por longas horas sobre literatura, filosofia e a vida que deixaram do lado de fora das grades. Tocado pela amizade nascida no ambiente hostil, angustiante, o autor imortalizou o encontro fraternal nas páginas da obra póstuma Memórias do Cárcere (1953): “[…] No patamar, abaixo de meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se: Nise da Silveira”.
A amiga seria homenageada por Graciliano Ramos, ainda, ao servir de inspiração para a personagem Caralâmpia, no livro de contos infantis A Terra dos Meninos Pelados (1937). No reino de Tatipirun, Caralâmpia é uma menina criativa, que se transforma em princesa e possui uma extraordinária habilidade: a de compreender o outro – os diferentes, os incomuns e os monstros. É desta forma que a médica psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) não só habitaria a obra do autor de Vidas Secas (1938), como também revolucionaria, para sempre, o campo da saúde mental, ao se tornar referência mundial na luta antimanicomial e na defesa do tratamento humanizado para pacientes com transtornos psíquicos. Radicalmente contrária às intervenções clínicas consideradas violentas, como o confinamento e a eletroconvulsoterapia, Nise foi pioneira ao introduzir, no Brasil, a terapia ocupacional baseada em expressões artísticas – e seu legado segue como uma das mais belas e potentes contribuições para o entendimento do inconsciente humano.
Desafiar e criar
Ao ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 16 anos, Nise da Silveira era a única mulher entre os 157 colegas de turma. Seria, também, uma das primeiras médicas a exercer a profissão no país. Contava com o apoio irrestrito do pai, professor e jornalista, e da mãe, pianista. O ímpeto desbravador se refletiu na atividade final de conclusão de curso, um ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil. Publicado em 1926, o estudo procurava traçar o perfil de mulheres infratoras, investigando temáticas pouco exploradas pela academia na época, como prostituição e alcoolismo feminino. No ano seguinte, em busca de trabalho, muda-se para o Rio de Janeiro com o marido, o médico sanitarista Mário Magalhães (1905-1986). Especializa-se em psiquiatria e, em 1933, passa a atuar no antigo Hospício Nacional de Alienados, em atividade entre 1841 e 1944.
Na instituição, foi denunciada por uma enfermeira ao guardar livros e jornais de teor marxista entre seus pertences – acusação que motivaria sua detenção, desligamento das funções no hospital e posterior clandestinidade. Nise permaneceu presa até 1937. Ao sair da prisão, refugiou-se no interior da Bahia, na companhia do marido e dos gatos que tanto amava. Escondida das autoridades, foi julgada à revelia, absolvida e anistiada. No período de reclusão, entrou em contato com o pensamento do filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) e sua dinâmica dos afetos, tema central de sua obra – e que exerceria enorme influência no trabalho da psiquiatra. Ao retomar o cargo público, em 1944, Nise da Silveira iniciou um serviço pioneiro no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, na zona norte da capital fluminense, atual Instituto Municipal Nise da Silveira.
Curar estigmas
Boicotada pela direção do hospital, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação no setor de almoxarifado – local onde as tarefas de limpeza e manutenção eram realizadas pelos pacientes, aos quais a médica se referia como clientes. Implanta ateliês de pintura, desenho, escultura, colagem e costura. Bem-recebidos pelos internos, os espaços revolucionariam a psiquiatria praticada no Brasil, até aquele momento vinculada a uma visão ortodoxa da saúde mental, e tangenciada por agressões físicas, tortura e maus-tratos frequentes. Integrando a equipe médica precursora, estava a sambista Ivone Lara (1921-2018), que atuou como enfermeira e assistente social por quatro décadas. Foi da artista a ideia de implantar uma sala com instrumentos musicais à disposição dos pacientes – inaugurando, assim, a musicoterapia no país.
“O impacto primeiro [do trabalho de Nise] é de ordem filosófica: a psiquiatria não é apenas um ramo da medicina, mas um saber plural, poético e intenso. Destaco também a importância de sua condenação à lobotomia, a insatisfação com os prontuários e a recuperação das biografias [dos pacientes], o abatimento do muro [que separava o hospital do mundo], o uso da arte como elemento de cura e despotencialização de energia, a recusa da camisa de força [de pano ou química], a presença dos coterapeutas [cães e gatos] e o papel do afeto catalisador”, reflete o escritor Marco Lucchesi, autor de Viagem a Florença: cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi (Rocco, 2003), obra que reúne a correspondência que trocaram ao longo de mais de uma década de amizade. “O trabalho da Dra. Nise é uma das conquistas do pensamento brasileiro. Uma epistemologia do Sul. Por isso mesmo, seu impacto mundo afora, sua invenção profunda e inigualável. A revolução pelo afeto – que belo título! – vem justamente dessa ótica subjetiva profunda”, comenta o escritor.
A beleza do cuidado
A metodologia defendida pela médica resultaria na fundação, em 1952, do Museu de Imagens do Inconsciente, centro de estudo e pesquisa destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. O museu conta com um acervo de mais de 360 mil itens. Em 1956, por sua vez, a médica psiquiatra criou a Casa das Palmeiras, “um pequeno território livre”, como ela caracterizava o espaço destinado a reabilitar antigos pacientes de instituições psiquiátricas.
“Dra. Nise reconhecia as obras de arte criadas pelos pacientes – intituladas prontuários imagéticos – como preciosos documentos que abriram enormes possibilidades para uma compreensão reveladora do universo interior das pessoas portadoras de esquizofrenia”, ressalta a arteterapeuta Isabel da Cunha Viana. Apesar de não considerar os desenhos e pinturas apresentados no museu unicamente como obras de arte, a produção no ateliê revelaria pacientes como artistas plásticos de talento – carinhosamente apelidados pela psiquiatra de camafeus – cuja relevância obteve respaldo de críticos de arte como Mário Pedrosa (1900-1981) e o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). Entre os camafeus, nomes como Emygdio de Barros (1895-1986), Adelina Gomes (1916-1984), Fernando Diniz (1918-1999) e Carlos Pertuis (1910-1977).
Ferreira Gullar, em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo, em outubro de 2016, recordou: “Nise mostrou essas obras a Mário Pedrosa, que se empolgou com o talento de alguns daqueles pacientes e escreveu sobre a extraordinária experiência que ali se realizava. Os demais críticos de arte reagiram: doido não faz arte. Eu, que começava a escrever sobre arte, também me empolguei e passei a visitar o ateliê do Engenho de Dentro. Mas eis que um dia, próximo do Natal, a Dra. Nise pergunta aos seus pacientes o que queriam de presente. Emygdio de Barros, um dos gênios da turma, respondeu: ‘Quero um guarda-chuva’. Ela se surpreendeu e se perguntou: ‘Por que ele quer um guarda-chuva se vive aqui dentro, onde não chove?’. E concluiu: ‘Já sei, ele quer ir embora do hospital’”, escreveu Gullar.
Caminhos da percepção
Continuamente motivada a entender os desenhos feitos por seus pacientes, Nise da Silveira procurou respostas na obra do psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da escola de psicologia analítica. Para isso, ousou escrever ao próprio Jung: junto à correspondência, enviou fotografias com os desenhos circulares pintados em profusão pelos seus pacientes em terapia. A resposta chegaria um mês depois, com a confirmação de que os tais círculos eram, de fato, mandalas – imagens às quais Jung recorre para simbolizar a representação da psique.
Escrita em nome do suíço por sua colaboradora, a psicóloga Aniela Jaffé (1903-1991), a missiva relatava: “O Professor Jung faz diversas perguntas, que reproduzo a seguir: O que significam esses desenhos para os doentes, do ponto de vista de seus sentimentos? O que eles quiseram exprimir por meio dessas mandalas? Será que esses desenhos tiveram alguma influência sobre eles? Ele ainda observou que os desenhos têm uma regularidade notável, rara na produção dos esquizofrênicos, o que demonstra forte tendência do inconsciente para formar uma compensação à situação de caos do consciente. Ele também notou que o número 4 (ou 8 ou 32 etc.) prevalece. Eu, por minha parte, acho que as cores dão ainda mais força expressiva aos desenhos”. Jung convidaria a brasileira, ainda, para duas temporadas de estudos no Instituto Junguiano de Zurique, na Suíça, e foi um grande incentivador de exposições do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente em congressos internacionais de psiquiatria. Gestos que confirmaram a brilhante transformação preconizada por Nise da Silveira já àquela época.
Exposição celebra a contribuição da psiquiatra Nise da Silveira para o campo da saúde mental
Em cartaz no Sesc Belenzinho, a mostra Nise da Silveira: A Revolução pelo afeto propõe uma imersão na vida e na obra da médica a partir de três eixos. No primeiro, Contexto, dor & afeto, são levantadas questões do debate sobre loucura e normalidade. No segundo recorte, Ser mulher, ser revolucionária, o foco é a trajetória pioneira e combativa de Nise. Já em Engenho de Dentro: inconsciente e território, terceiro eixo do projeto, são expostas algumas das obras criadas pelos pacientes acompanhados pela médica ao longo de sua atuação no antigo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, atual Instituto Municipal Nise da Silveira, onde trabalhou entre 1944 e 1975.
Fazem parte da mostra trabalhos de quatro dos camafeus de Nise da Silveira: Adelina Gomes, Emygdio de Barros, Carlos Pertrius e Fernando Diniz, artistas reconhecidos pela crítica especializada e que eram bastante próximos à médica. Junto aos camafeus, estão, também, produções de artistas contemporâneos, como Lygia Clark (1920-1988) e Carlos Vergara. A exposição conta ainda com quatro pinturas de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) e três obras de Ubirajara Ferreira Braga, todas do acervo do Museu Osório César, parte do Complexo Hospitalar do Juquery e um dos símbolos da arteterapia no país. A curadoria da mostra é do Estúdio M’Baraká, com consultoria do psiquiatra Vitor Pordeus e do museólogo Eurípedes Júnior.
BELENZINHO
Nise da Silveira: A Revolução pelo Afeto
Até 26/3, de terça a sábado,
das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. Livre. Grátis. Saiba mais:
sescsp.org.br/belenzinho
Conheça alguns documentários que abordam saúde mental no projeto Delicadezas da Alma, realizado pelo Sesc TV:
Direção: Helvécio Ratton | Brasil, 1979, 23 minutos.
O documentário, dirigido por Helvécio Ratton em 1979, mostra o cotidiano dos pacientes internados no Hospital Colônia de Barbacena (MG). Marco histórico para o movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, o filme denuncia as condições degradantes dos internos e reflete sobre a função social das instituições psiquiátricas no país. 14 anos.
Hestórias da Psicanálise – Leitores de Freud
Direção: Francisco Capoulade | Brasil, 2013, 95 minutos.
Realizado pelo psicanalista e documentarista Francisco Capoulade, o documentário trata das origens da psicanálise e da apropriação brasileira da obra de seu fundador, Sigmund Freud. Elaborado a partir de entrevistas com leitores de Freud espalhados por cidades brasileiras e europeias, o filme aborda temas como história, tradução, cultura e linguagem. 10 anos.
Epidemia das cores
Direção: Mário Saretta | Brasil, 2016, 70 minutos.
O documentário narra a rotina dos participantes e coordenadores da Oficina de Criatividade ministrada no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. As atividades no local contam com a participação de ex-internos e moradores. 10 anos.
Direção: Daniela Arbex e Armando Mendz | Brasil, 2021, 90 minutos
Uma obra histórica sobre o Centro Hospitalar Psiquiátrico Barbacena, criado em 1903, onde mais de 60 mil pessoas morreram. 14 anos
A EDIÇÃO DE JANEIRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
No mês em que acontece o Sesc Verão 2023, discutimos a relação entre as tecnologias e a prática físico-esportiva. A reportagem principal desta edição defende que usar o tempo livre para atividades que não movimentam o corpo favorece o sedentarismo, além de elevar o risco de doenças crônicas. No entanto, o texto também aponta que, quando utilizado de maneira equilibrada, o tempo em frente às telas pode motivar a prática de atividades físicas, por meio do uso de aplicativos e aparelhos que medem frequência cardíaca, gasto calórico, qualidade do sono, entre outros indicadores.
Além disso, a Revista E de janeiro/23 traz outros conteúdos: uma reportagem que percorre os caminhos de gestação de uma obra literária, desde o surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores; uma entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que conta sobre sua relação com a literatura brasileira, seu processo criativo e revela de que forma os antepassados guiam sua escrita; um depoimento com a cantora e compositora Ellen Oléria sobre música, teatro e afrofuturismo; um passeio visual por imagens que celebram o universo feminino indígena no universo das artes visuais; um perfil da médica Nise da Silveira (1905-1999), pioneira na humanização do atendimento psiquiátrico por meio da arte; um encontro com o jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, que fala sobre popularização de podcasts e luta antirracista no Brasil; um roteiro nostálgico pelas miudezas arquitetônicas de São Paulo, em celebração aos 469 anos da capital paulista; um conto inédito da escritora Natalia Timerman; e dois artigos que discutem a relação entre envelhecimento e inclusão digital.
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