Corporalidades amarelas em diálogo: histórias, identidades e desafios

22/10/2022

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Um momento de diálogo e partilha entre pessoas com vivências e trajetórias profissionais diferentes, idades, gêneros, orientações sexuais, ancestralidades e referências diversas, cujos corpos carregam processos históricos e individuais e que se encontram, com suas diferenças e pluralidades, para refletir sobre os desafios que se impõem à geração da qual fazem parte, em busca de trazer para mais perto o sempre desejado futuro melhor. Com essa reflexão, a pesquisadora e arte-educadora Aline Hasegawa iniciou o trabalho de mediação no bate-papo “Diáspora Japonesa no Brasil e corporalidades amarelas”, realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro na noite de 7 de outubro.

De forma presencial (no Campus da Unesp em Registro) e com transmissão ao vivo pelos canais do Sesc Registro e da TV Unesp no YouTube, o evento integrou a programação especial que o Sesc Registro vem realizando para celebrar os 100 anos de histórias do prédio onde a unidade está instalada. O conjunto arquitetônico é conhecido como KKKK, em referência ao nome da companhia japonesa que ergueu a edificação no ano de 1922, com o objetivo de apoiar a colônia nipônica que se formava na região do Vale do Ribeira, no início do século 20.

O bate-papo reuniu descendentes de imigrantes japoneses, que compartilharam com o público suas histórias, memórias e percepções sobre o passado de suas famílias e comunidades, “as dores e flores” que sentem e cultivam no presente e o futuro melhor que almejam e estão ajudando a construir. São eles: o DJ, radialista, pesquisador musical e curador de projetos culturais Paulo Sakae Tahira (DJ Paulão); a atriz e apresentadora Bruna Aiiso; e o cantor, compositor e produtor musical Victor Kinjo.

Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

Minoria modelo

Muitos temas foram abordados ao longo da conversa, mas a importância de tratar o fenômeno da imigração japonesa como diáspora foi destacada logo no início pela mediadora Aline Hasegawa. Para ela, trata-se de “frisar não somente as articulações e desafios contemporâneos que cada experiência traz, mas também de evidenciar os contornos histórico-políticos da chegada, permanência e sustentação dos discursos imigratórios”. E ressaltou que, “a despeito do esforço em se relacionar ao mito da minoria modelo”, que envolve principalmente a comunidade japonesa hegemônica no Brasil, os corpos amarelos ainda não são reconhecidos em sua plenitude humana. “Ainda somos exóticos, estrangeiros e, muitas vezes, assexualizados”.

Aline Hasegawa | Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

A atriz Bruna Aiiso também comentou sobre a visão que paira em relação aos imigrantes nipônicos e seus descendentes. “Mesmo estando na sexta geração aqui no Brasil, as pessoas não nos veem como brasileiros”. Ao se referir à área em que trabalha, o audiovisual brasileiro, a atriz reforçou que falta oportunidade de trabalho aos artistas asiáticos nesse mercado e também citou o mito da ‘minoria modelo’ ao relacionar rótulos e “caixinhas” em que os descendentes asiáticos são frequentemente categorizados, impedindo assim que artistas nipônicos sejam escalados para determinados papeis, por exemplo. “As japonesas são muito ‘certinhas’, ou ainda, não existe mendigo asiático, alcoólatra asiático e por aí vai. E quem aqui nunca ouviu a máxima de que, pra entrar numa universidade, basta ‘matar’ um japonês?”, questionou Bruna.

Bruna Aiiso | Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

Mesmo que alguns rótulos sejam considerados “positivos”, Bruna Aiiso e Aline Hasegawa consideram tudo uma forma de opressão. “A gente fica sempre atravessada pelas expectativas dos outros. Então, quando nos comportamos de uma maneira desviante, se o nosso desejo também se desvia do que é a norma, somos questionados porque estamos saindo da ‘caixinha’. Então, de maneira alguma é positivo ser rotulado”.

Com o intuito de ampliar a voz de artistas nipo-descendentes e abrir espaço para reafirmarem suas brasilidades, a atriz criou o projeto Live Brasileiros, em que entrevistou mais de 90 artistas com ascendência asiática. E ao ouvir suas histórias, Bruna identificou nelas muitos elementos de sua própria história. “Aí a ficha caiu: entendi que a gente não é branca! Nesse momento entendi também porque a gente passa por certas situações e também que não estou sozinha nessa condição”.

Comunidade múltipla e diversa

O músico e compositor Victor Kinjo ressaltou que a comunidade japonesa no Brasil é múltipla e diversa e que existem várias intersecções marcando a vida dos descendentes asiáticos, como a questão de ser mulher ou não, ser LGBT ou não, ser mestiço, ser ou não descendente do povo de Okinawa (ilha no extremo sul do arquipélago japonês que, até o final do século 19, foi um reino independente). “E cada pessoa cultiva uma relação com essa ancestralidade, ou não cultiva. Em alguns momentos a gente abraça, em outros a gente nega essas relações, enfim, nossa vida é uma loucura e muito marcada mesmo por essa crise de identidade”.

Para ele, as teorias contemporâneas estão mostrando que as diversas identidades não são excludentes e que binarismos do tipo ‘ou você é japonês ou é brasileiro’, ‘ou você é gay ou é hetero”, ‘ou você é homem ou é mulher’, foram questionados pela própria realidade, porque as pessoas são diferentes e diversas e não cabem mais dentro desses rótulos.

Sobre a condição de ser nipo-brasileiro atualmente, o músico definiu como uma “dor” e também uma “flor”. Afinal, continuou, “quando a gente começa a se envolver com a raiz nipônica, e não só com essa, mas com todas nossas raízes, muitas coisas florescem”. Ele confessou que seu desejo era de que, neste ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna, o Bicentenário da Independência e passados mais de 100 anos da imigração japonesa, houvesse realmente uma reflexão sobre o Brasil e suas brasilidades. E os corpos amarelos que vivem aqui, pelo fato de estarem marcados pela racialização, se olham no espelho e dizem: “Também queremos entrar nessa antropofagia!”.

Paulo Sakae Tahira (DJ Paulão) contextualizou a realidade vivida pelos primeiros imigrantes no Brasil, as adversidades e desafios que tiveram de enfrentar e as conquistas que alcançaram ao longo do século. Apontou a complexidade de aspectos que envolveram a comunidade japonesa no início da colonização, como os relacionados à identidade, gênero, raça e à própria relação com outras comunidades que também habitavam essa nova terra. Ele enfatizou como a questão da identidade permeia sua trajetória. Filho de um nissei com uma descendente de portugueses e de espanhóis, o pesquisador mostrou que, pelos seus traços físicos, dava para perceber que não descende só de japoneses, portugueses e espanhóis. “Há outras misturas envolvidas”, ressaltou. E citou outro aspecto dessa “mestiçagem”: com o pai budista e a mãe católica, acabou participando de ambos os rituais de fé, o que considera que tornou a sua religiosidade um pouco “confusa”.

DJ Paulão | Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

Depois de relatar seu trabalho como radialista, curador de projetos e pesquisador da música brasileira nas suas vertentes mais diversas, DJ Paulão contou que desde a infância tem uma vivência com a cultura negra, mas que, ao mesmo tempo, a criação nipônica sempre o marcou e, ultimamente, tem lhe trazido muitos questionamentos. “Inclusive acho que a tradução disso é o meu kimono: um kimono com panos africanos, eu acho que isso explica muita coisa”. E diz que por mais que tenha uma forte relação com a cultura negra, a ascendência japonesa é algo que respeita muito e que guia sua família. “É uma marca que a gente traz no rosto, mas que, até certo ponto, não é contemplada na sua totalidade”.

Para ele, é importante discutir essas questões das corporalidades amarelas em um evento como o realizado pelo Sesc Registro e a Unesp Registro, não só como um ponto de reflexão sobre as heranças

e as características nipônicas, mas também como um espaço que traga luz à necessidade de todas as pessoas se realizarem em plenitude. “Como nos dias de hoje a discussão de gênero e de raça melhorou muito, teve um salto qualitativo muito grande, acho que a questão amarela também tem que ser contemplada de alguma maneira nessa discussão”.

Victor Kinjo | Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

Antes do encerramento, o músico Victor Kinjo presenteou o público com sua arte, tocando instrumentos de origem japonesa que herdou da avó, que morava no Vale do Ribeira, e cantando:

“Abre caminho pelo mundo, abrir caminho pela vida, se parar por um segundo, divinal é o céu e a terra. Abrir o coração da gente, corpo, condição e a mente, a semente do presente, ser pintor, cantor, valente. Peço licença minha sinhô e meu senhora, pai, minha mãe das doces águas, vô e avó peço sua benção. Eu vim de longe, vim de um reino do passado, pra plantar feijão, quiabo, milho, couve, amor, amora”. (Permissão, Victor Kinjo).

Parceria

O coordenador de programação do Sesc Registro, Jefferson Alves, agradeceu a parceria com a Unesp Registro para a realização do bate-papo “Diáspora japonesa no Brasil e corporalidades amarelas”, e resgatou um pouco da história do prédio da unidade, construção centenária que continua testemunhando muitas histórias vinculadas a comunidades e paisagens do Vale do Ribeira. Até chegar aos dias atuais, o conjunto arquitetônico passou por diversas fases, ocupações e funções, foi tombado como patrimônio histórico e depois restaurado. “Ao longo de todo esse período, muitas histórias foram construídas em seu entorno e o Sesc São Paulo, por meio da unidade de Registro, assumiu o complexo em 2016 e agora faz parte desse patrimônio histórico, tornando-o um centro cultural e esportivo, sem catracas, sem muros e aberto a toda população do território”.

Marcelo Ferraz e Jefferson Alves | Bate-papo realizado pelo Sesc Registro em parceria com a Unesp Registro, no dia 07/10/22. Foto: Bruna Quevedo.

Representando a Unesp Registro, por meio da Comissão Permanente de Extensão Universitária e Cultura (CPEUC) e o Comitê de Ação Cultural (CAC), o professor Marcelo Vieira Ferraz falou da satisfação da instituição em sediar o evento. “Para nós, o encontro é muito especial pois, além de colocar a Unesp no calendário das comemorações do centenário do KKKK, marca a primeira parceria entre a Unesp e o Sesc Registro, instituição que é sinônimo de cultura, lazer e qualidade de vida para todos os cidadãos do Vale do Ribeira”. Ele lembrou que o Sesc e a Unesp têm, em suas trajetórias, um lugar-comum: o prédio do KKKK. “Por muitos anos, a Unesp esteve presente naquele lindo edifício. Por lá, como no passado, estiveram pessoas que sonharam com o futuro melhor para suas famílias e para o Brasil. E agora o Sesc traz de volta esse mesmo espírito de juventude, fé e esperança em um país melhor. No espaço atual, o Sesc é a síntese da cultura de nossa região, pois o nosso prédio centenário permanece vivo, diverso, eclético e multicultural”.

Integrante do Comitê de Ação Cultural (CAC) da Unesp e organizadora do evento, a professora Maria Cândida de Godoy Gasparoto disse que o bate-papo superou todas as expectativas. “Os participantes da mesa cativaram o público com suas histórias de vida e, de uma forma leve, trataram com profundidade de temas relevantes para nossa comunidade”. Ela espera que a parceria com o Sesc se fortaleça e possibilite a realização de mais debates no interior da escola. “É fundamental que a universidade pública ofereça espaços para que seus alunos possam pensar e crescer para além da questão técnica e profissional”.


A atividade teve transmissão ao vivo e está disponível na íntegra no canal do YouTube do Sesc Registro. Assista:

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