Os caminhos das criadoras do teatro latino e ibero-americano

28/08/2024

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Dramaturgas e diretoras dialogam em contextos tão singulares quanto semelhantes  (foto: Paola Vera)

Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Lançando mão de códigos obscuros para driblar a censura, mas suficientemente claros para serem decifrados pelo público, como já descreveu o crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000), a escritora Hilda Hilst (1930-2004) deixou como legado oito peças. Todas elas escritas no momento mais sombrio da ditadura brasileira. Entre os textos, O rato no muro (1967) foi encenado pela primeira vez em 1968, por alunos da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP), sob direção de Terezinha Aguiar. No ano seguinte, a peça seria levada ao Festival de Teatro Universitário da Colômbia. No palco, o rato em questão é o único personagem entre dez religiosas enclausuradas capaz de ultrapassar o muro da opressão. Quando encenada em outro idioma, O rato no muro foi igualmente compreendida pelo público colombiano, que também sofria as violências de um regime totalitário. Hilda Hilst, considerada à época “uma espécie de unicórnio na dramaturgia brasileira”, nas palavras do filósofo e crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), faria parte de um levante de mulheres na dramaturgia brasileira, na década de 1960.     

Num período em que as lutas feministas também ganhavam espaço na política e nas artes, as dramaturgas brasileiras saltaram o muro. A partir daquele momento, não estariam mais restritas aos palcos ou à plateia. Mesmo assim, nas universidades ainda persistiria, pelas próximas décadas, o apagamento dos nomes e obras dessas pioneiras. Pesquisadora, professora e autora de Um teatro da mulher (Perspectiva), Elza Cunha de Vincenzo  jogaria luz sobre a memória das criadoras do teatro brasileiro nesse livro lançado em 1992. Nele, Vincenzo demonstrou que, “por razões e causas tanto históricas quanto sociais e culturais”, um significativo número de escritoras da mesma geração – Renata Pallottini (1931-2021), Hilda Hilst, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro (1946-2016), Isabel Câmara (1940-2006), Maria Adelaide Amaral, Carolina Maria de Jesus (1914-1977), entre outras –, voltava-se para o teatro e passava a ser acompanhada pela crítica e pelo público, no fim dos anos 1960 em diante.  

Autoras que abriram portas para que gerações posteriores ocupassem um espaço de escrita e expressão que já foi, majoritariamente, masculino. Diretora, dramaturga e educadora teatral, Solange Dias faz parte da geração de estudantes da década de 1980, quando iniciou sua formação em artes cênicas. Depois da graduação, buscou novos conhecimentos na Universidade de São Paulo (USP), onde encontrou, por fim, mestras que iriam lhe apresentar dramaturgas que se tornariam referências. “Eu bati na porta da Renata Pallottini que, na época, estava trabalhando em produção dramatúrgica. Também fiquei por um ano com Elza Cunha de Vincenzo, uma pesquisadora incrível. Tudo isso numa época em que a gente não falava da mulherada. Por exemplo, a dramaturgia de Hilda Hilst, eu descobri nessa época. Aliás, todas as outras dramaturgas. Porque, quando se fala em dramaturgia, você vai se lembrar sempre dos dramaturgos, e acaba se esquecendo desse grupo de mulheres que abriram espaço para a gente. Depois, nós abrimos um pouquinho mais. E hoje, as mulheres já escancaram a porta”, observa Dias. 

REALIDADES CERCANAS 
A presença expressiva de mulheres em posições de direção e criação teatral na cena latina e ibero-americana segue atravessada por mudanças nas últimas décadas. Não mais cerradas em seus territórios, encontram-se em constante troca e diálogo por meio de um crescente número de festivais, como o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, que acontece neste mês, na cidade de Santos, litoral sul de São Paulo. Realizado a cada dois anos pelo Sesc São Paulo, o MIRADA reúne espetáculos e propõe diálogos entre criadoras e criadores a respeito das suas produções e dos desafios que permeiam o trabalho no teatro.  

Dramaturga, diretora e professora, a peruana Mariana de Althaus é uma das convidadas da sétima edição do festival, no qual apresentará dois espetáculos. Historicamente, segundo Althaus, “a participação das mulheres na dramaturgia e na direção nos teatros de Lima melhorou”. No entanto, observa, “não creio que possamos estender essa valorização ao teatro em todas as regiões. Em Lima, aumentou a procura por diretoras e, também, dramaturgas, e algumas desenvolvem uma carreira muito interessante e constante”. A diretora, uma das mais expressivas vozes da sua geração, também destaca que “ainda existe uma maioria masculina nestas áreas, talvez, não por falta de procura ou de oportunidades, mas por uma questão estrutural: numa sociedade tão sexista e patriarcal é ainda mais difícil para as mulheres acreditarem que a sua voz é importante, e decidirem ocupar posições de comando”. 

Ainda que haja um avanço na representatividade feminina nas artes cênicas no Chile, para a diretora e artista Paula Aros Gho, diretora da Escola de Teatro da Universidade Mayor de Santiago do Chile, é preciso haver políticas públicas de fomento. “Acredito que as mulheres que se dedicam à direção e à dramaturgia nas artes cênicas no Chile tiveram um avanço importante nas últimas décadas. Surgiram novas vozes e novos espaços de divulgação. De qualquer forma, é sempre necessário pensar na perspectiva da paridade. Há espaços em que este aspecto nem sequer é considerado. E claramente, estamos diante de um avanço que não tem muito tempo, portanto é necessário gerar políticas que o garantam”, enfatiza a diretora chilena. 

Espetáculo La vida en otros planetas [A vida em outros planetas], que traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de um grupo de professores e alunos, incorporando testemunhos de educadores e atores. (Foto: Maria García Burgos)

NARRATIVAS PRÓPRIAS 
No palco, os enredos de Hilda Hilst valiam-se de simbologias para falar sobre injustiças sociais e de gênero, violências, dogmas da religião, entre outros temas, assim como sua contemporânea Consuelo de Castro. Enquanto Renata Pallottini, também poeta, tratava das dores no cotidiano da mulher, Leilah Assumpção costurava as cicatrizes do feminino. Hoje, mais de meio século depois, dramaturgas e diretoras latinas e ibero-americanas tratam de forma ainda mais evidente esses temas, expondo com profundidade as feridas tocadas pelas gerações passadas. O espírito do tempo se encarregou de afiar a escrita de autoras como as brasileiras Grace Passô e Sílvia Gomez, a peruana Mariana de Althaus, a chilena Paula Aros Gho, para citar algumas de tantas criadoras que partem de questões existenciais, sociais, políticas, econômicas e culturais espinhosas do século 21.  

Apesar das particularidades de cada país, e das interseccionalidades presentes, tanto o Brasil quanto outros territórios latinos e ibero-americanos compartilham afinidades na esteira da produção dramatúrgica assinada por mulheres. Pavimentado por obras cujas temáticas trazem, cada vez mais para perto, os efeitos experimentados por sociedades ameaçadas pela polarização política, pela desinformação, pelo populismo, pelo racismo e pela violência de gênero, o teatro é esse espaço que possibilita a emergência de uma consciência coletiva para uma reflexão do momento atual.     

Ao desenvolver as temáticas de suas obras, a diretora e atriz Grace Passô enfatiza que o teatro precisa pensar sobre a negritude no Brasil. Como na peça escrita por Zora Santos, a O fim é uma outra coisa, que esteve em cartaz no Sesc Avenida Paulista, em abril passado, cuja direção de Passô propõe o teatro como um chão coletivo de questionamentos acerca da colonialidade, mas também de celebração dos saberes da cultura afro-diaspórica. “Não me interessa nenhuma discussão que não se interesse ou que não passe por isso, que não fale sobre a negritude, sobre os povos originários brasileiros, que não pense sobre formação desse país, que não reflita sobre o que é um ‘país’”, disse em entrevista à Revista E, na edição de maio de 2024.  

A peruana Mariana de Althaus também leva ao palco enredos que questionam o status quo de uma sociedade atravessada pelo colonialismo e pelo patriarcado. No MIRADA, ela apresentará dois textos de sua autoria e sob sua direção: Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro] que reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico, e entrelaça natureza e relações sociais; enquanto La vida en otros planetas [A vida em outros planetas] traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de um grupo de professores e alunos. “Acredito que o teatro seja um espaço privilegiado para provocar questionamentos da comunidade. Gostaria que as minhas obras levassem o espectador a questionar o seu papel nas questões políticas e sociais que os afetam, sem deixar de lado a fruição, a celebração da vida e do que nos une. Sem perder o bom-humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas”, acredita. 

Granada, espetáculo da diretora e dramaturga Paula Aros Gho que está na programação do MIRADA 2024. (foto: Crop Cult Lampa)

Com o espetáculo Granada, releitura do mito grego de Perséfone, contado sob diferentes ângulos, a diretora chilena Paula Aros Gho investiga a origem da violência patriarcal, e parte da luta contra a violência de gênero em manifestações de 2018. “Quando as mobilizações feministas da quarta onda aconteciam com muita força aqui, no Chile, surgiram manifestações de estudantes universitários. Sou professora universitária, portanto, foi algo do cotidiano que vivi”, recorda. Biográficos e contextuais, os temas que inspiram as peças de Gho conversam, ainda, com outras inquietações. “Se olharmos para os temas específicos, podemos encontrar certas semelhanças em termos de questões bastante atávicas para a humanidade. Neste sentido, penso que tenho uma tendência filosófica e poética relativa às questões que coloco em meus trabalhos. De alguma forma, todos esses temas emergem de uma observação do meu contexto pessoal e social”, explica.  

A violência contra a mulher, em Neste mundo louco, nesta noite brilhante, ou a maternidade compulsória e a supremacia do consumo em Mantenha fora do alcance do bebê, da dramaturga Sílvia Gomez, também dialogam com enredos escritos por outras autoras latinas ibero-americanas contemporâneas. Aliás, em agosto passado, Gomez foi a única brasileira convidada a participar da 5ª edição do Punto Caderneta Punto – Encontro Ibero-Americano de Dramaturgia, realizado pela dramaturga Carolina Vivas, em Bogotá, Colômbia.  

No evento, a brasileira ministrou uma oficina, participou de um bate-papo e acompanhou a leitura de sua obra A árvore – em cartaz até 1º de setembro, com Alessandra Negrini, no Centro Cultural São Paulo. Em cena, a história de uma mulher que ganha, da vizinha, um vaso de planta e acaba se vendo presa a uma pequena Mimosa pudica. Entre galhos e folhas, transforma-se aos poucos, expandindo sua consciência e existência para além das paredes do apartamento. A recepção da leitura, segundo Gomez, gerou um sentimento de identificação para outras criadoras presentes no encontro. Entre algumas, uma autora cubana disse, recorda a dramaturga, “somente uma mulher poderia tê-lo escrito”. Afinal, é a partir do corpo de uma mulher, cerceado, preso e solitário, que partem as indagações da protagonista de A árvore.  

(foto: Priscila Prade)

Para a diretora chilena Paula Aros Gho, o teatro realizado por mulheres na América Latina, as artes cênicas ou performáticas, em geral, têm no corpo um ponto de encontro. “Na forma como os corpos são expostos, não apenas como uma corporeidade evidente, mas também em como penso que as corporeidades devem coexistir no mesmo espaço e tempo”, ressalta. “Penso que os milênios, os séculos que se passaram desde a inauguração da cultura ocidental androcêntrica e patriarcal, nos fizeram esconder ou reprimir o corpo de uma forma poderosa. Por isso, acredito que as mulheres falam sempre a partir daí”, conclui a diretora chilena. 

Herdeira de uma geração em que o corpo sofria ainda mais restrições fora e dentro do palco, a diretora e dramaturga Solange Dias também observa que essa nova geração transborda as questões do feminino, especialmente, sua corporeidade. “Ele está muito forte, presente e exacerbado. Não há vergonha de se mostrar onde dói e de escancarar, nesse sentido de afetar mesmo. Antes, talvez, a gente tivesse algum pudor ou usaria de estratagemas, coisas simbólicas. Tanto que eu sigo aprendendo muito com as dramaturgas que oriento hoje. É um círculo que não se fecha nunca”, celebra. 

TODAS NOSOTRAS 
A escrita de si em um determinado contexto social; regimes de opressão; o corpo atravessado pela violência de gênero; a reelaboração da maternidade. Esses são alguns dos temas que convergem em obras teatrais criadas e dirigidas por mulheres no contexto latino e ibero-americano. Características que não apenas saltam aos olhos do público, mas que também abrem espaço para trocas entre espectadores e, principalmente, entre criadoras cênicas.   

Para Sílvia Gomez, essa troca intelectual e dramatúrgica entre países latino e ibero-americanos é essencial para um diálogo e proximidade entre os pares. “No encontro em Bogotá, percebi que temos as nossas questões e especificidades, mas, no fundo, somos todos ibero-americanos, latino-americanos com questões muito parecidas. Não só nos textos de mulheres, mas nos textos dos homens também.  

A dramaturga brasileira também conta que se identificou com o texto de outras autoras latino-americanas presentes. “Por exemplo, o texto de Mariana de Althaus, que criou uma história sobre uma sereia chola (nome dado à mulher indígena peruana). Ela estava na beira do mar e não conseguia voltar. A população ficou chocada por se tratar de uma sereia que não correspondia à imagem mítica. Foi muito interessante ver como Mariana se apropriou do mito e trouxe a questão do racismo no país”, exemplifica.  

A partir de uma diversidade de narrativas e contextos, a dramaturgia salta fronteiras geográficas e alimenta-se de diferentes pontos de vista, segundo Silvia Gómez. “Eu sinto que temos muito em comum, dramaturgas latinas e ibero-americanas: essa capacidade de abrir ventanas para que a gente possa vislumbrar outras formas de contar histórias. Lendo essas mulheres, me aproximo mais delas, me entendo como mulher, como mulher latino-americana e como mulher latino ibero-americana brasileira em um imenso território cercado por pessoas que falam castelhano, mas que ao mesmo tempo abraçam as mesmas questões, que transparecem no palco e na escrita. Porque o teatro também é a elaboração dos impactos do tempo. Então, essas escritas revelam muita identificação”, arremata.  

para ver no Sesc
FRICÇÕES TEATRAIS
A sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas ocupa o Sesc Santos e outros locais da cidade e região com 33 espetáculos de 10 países


Como um grande território para trocas e diálogos, o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas chega à sua sétima edição com o objetivo de apresentar experiências cênicas dos países da América Latina, Portugal e Espanha, favorecendo diálogos entre seus criadores e apresentando ao público suas produções. De 5 a 15 de setembro, estão programados 33 espetáculos de 10 países, reunindo múltiplas linguagens em teatro, dança, performance e teatro de rua para todas as idades, no Sesc Santos e outros locais da cidade e região.

Nesta edição, o Peru será o país homenageado, e o festival propõe uma reflexão sobre questões indígenas, decoloniais, relações com a natureza, gênero e identidades, migrações e diversidade de corpos, temáticas presentes nas montagens. Do Brasil, apresentam-se um total de 13 trabalhos dos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Na programação haverá, ainda, atividades formativas e um encontro de programadores internacionais e nacionais de festivais cênicos espalhados pelo mundo.

De acordo com o Diretor Regional do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, “compreender o pertencimento ancestral enriquece a pesquisa nas artes performáticas, ampliando visões e criando novos contextos”. Dessa forma, complementa, “essa percepção pode superar supostas hierarquias entre povos e permitir novas aproximações simbólicas. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas estimula essas confluências por meio de eixos sobre o sonho, a floresta e a esperança, incentivando trocas culturais entre os países convidados”.

Confira alguns destaques:
PERU
¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista [Onde estão as feministas? Conferência performática de uma falsa ativista]
Com Liliana Albornoz Muñoz
A partir de uma perspectiva pessoal e crítica, a performer discute o feminismo e de que forma ele se mantém como força transformadora para a sociedade.
Dias 12 e 13/9. Quinta e sexta, 21h. Local: Centro Espanhol de Santos.

COLÔMBIA
Historia de una oveja [História de uma ovelha]
Com Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes
Uma migração forçada é contada pela história fabular de uma ovelha que testemunha a expulsão dos habitantes de seu município e é compelida a vagar pelo país.
Dias 10 e 11/9. Terça e quarta, 21h. Local: Teatro Brás Cubas.

BRASIL
Azira’i
Com Zahy Tentehar (RJ)
A atriz narra sua relação com a mãe, primeira mulher pajé de sua reserva indígena, que deixou à filha o legado espiritual e as frustrações do processo de aculturamento.
Dia 15/9. Domingo, 17h e 20h. Local: Teatro Guarany.

CHILE / PORTUGAL
G.O.L.P.
Com Teatro Experimental do Porto e Teatro La María
Com tons de absurdo, o espetáculo imagina um Portugal comunista supostamente perfeito e um Chile democrático em crise, numa reflexão sobre regimes ditatoriais.
Dias 10 e 11/9. Terça e quarta, 20h. Local: Sesc Santos (Ginásio).

Programação completa em: sescsp.org.br/mirada

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