Criança é a cria que cria

29/05/2020

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Por Luiza de Toledo*

As crianças brincam entre o céu e a terra desde que o mundo é mundo. Brincar é a forma como a criança é e está no mundo. Nele ela age por meio da brincadeira, o conhecendo e transformando. É, ela própria, a brincadeira em essência, encarnada, personificada. Há quem afirme que as palavras criança, criação e criatividade venham da mesma raiz, tenham a mesma etimologia. A criança é surgimento, ela é cria. A criança é a cria que cria. Ela cria ativamente. Está sempre atuante no mundo, empregando sua imaginação, utilizando e alimentando sua criatividade. 

E de que brincam as crianças? As crianças brincam de transformar o mundo. Transformam farinha em massinha, areia em bolo, tecido em capa de herói, bonecxs em amigxs, transformam-se em professorxs, engenheirxs, mágicxs e bichos. E no meio de todas estas transformações vão  se transformando elas mesmas. 

E com que brincam as crianças? Brincam com pedrinhas, bolas, miçangas. Com árvores, mares e montanhas. Com as mãos, os pés e o corpo todo. Também com palavras, músicas e histórias. Brincam com tudo – objetos e pensamentos, reais e imaginados, próximos ou distantes, pequenos ou grandes. 

Entre o céu e a terra, tudo que existe é ‘brincável’, ‘brincante’, ‘brinquedo’ para uma criança. O mundo todo está ali pronto, acessível ao jogo. Todos seus componentes e elementos estão disponíveis ao olhar transformador de uma criança. Os elementos da natureza – terra, água, fogo e ar – se movimentam, se desenfadam, se ‘metamorfoseam’ em brincos, folias e festa. Mesmo nos cenários mais áridos, enquadrados e fechados as crianças são capazes de momentos de recreação, passeando com a natureza. Isto porque, mesmo afastados do mundo natural carregam dentro de si seus elementos.

Terra, água, fogo e ar, todos os elementos são vivenciados pela criança em seu brincar. 

Ela os produz, experimenta, mistura, usando sua imaginação, num devaneio sem limites.  

Começando pelo elemento terra, que remete a firmeza e solidez e, ao mesmo tempo, acolhimento e fecundação. Sua firmeza e acolhimento trazem confiança para criança correr e pular – de maneira livre ou ritmada, criando jogos e sons. 

Brincar com a terra é brincar de construir, produzir. Com lama, argila, areia e pedrinhas são preparadas comidas suculentas, bolos deliciosos, ou então castelos altos e cidades extensas. Mas também é brincar de acolher e gerar. Ao cavar um buraco no chão tem-se um ninho para uma semente, o berço para uma nova vida que a criança acompanha com encantamento. 

Além disso, é curioso ver de perto os pequenos habitantes da terra dos vasos de plantas, ou no quintal – os insetos e minhocas. Sem medo de se sujar as crianças chegam bem perto do chão fazendo suas experiências. 

Este elemento é o que dá nome ao planeta em que vivemos, porém, a Terra é, na verdade, composta em sua maior parte por outro elemento, a água, e o mesmo acontece com os seres humanos. Quanto mais novo é o indivíduo mais água possui em sua composição. As crianças, por vezes, parecem até meio úmidas. Vale dizer, também, que estão mais próximas do momento da vida no qual existir era boiar nas águas do ventre de suas mães: “Água que faz crescer as crianças”. 

Talvez por isso, o enorme prazer demonstrado por elas ao fazer brincar este elemento em todos seus estados físicos – líquido, gasoso e sólido – com bolas de sabão, barquinhos, tintas e aquarelas, se jogando em piscinas e rios, brincando com vapor do banho, tocando e experimentando o gelo que derrete, acompanhando as nuvens que se formam no céu ou a chuva que cai na terra. 

Outro elemento que pode proporcionar muito prazer é o fogo. Visto como perigoso é mantido longe do alcance das crianças. Porém sob supervisão de um adulto as encanta com a dança das labaredas de uma fogueira ou da chama de uma vela. 

O Fogo é energia, calor, transformação. Cozinhar é uma deliciosa forma de brincar com este elemento – transformar ingredientes em biscoitos através de uma fonte de calor externa e depois digeri-los com o calor interno. E falando em calor produzido pelo próprio corpo, quanto prazer pode trazer uma massagem carinhosa e acolhedora. 

Sem falar na capacidade do fogo de produzir energia e claridade. Observar e contar estrelas também são formas das crianças brincarem com o fogo. Mesmo de muito longe encantam com sua luz. Igualmente encantadoras são as brincadeiras com luz e sombra que podem aquecer a imaginação das crianças por uma noite inteira.  

Chegando ao último elemento, podemos afirmar o quão aprazível é passar o tempo brincando de ser vento. Soprar, abanar, correr, dançar, balançar são formas de brincar de ser o elemento ar. 

Cataventos, pipas, barangandãos, bexigas, bolas, balões, paraquedas e aviões de papel cruzam o céu. Também as ondas sonoras das músicas preferidas chegam aos ouvidos pelo ar enfeitando todo o ambiente. O tempo voa e quando se vê, a criança virou passarinho. 

Entre insetos e estrelas, nuvens e pássaros as crianças brincam. Brincam porque é assim que elas são. Brincam com a natureza porque elas próprias são natureza. Como pequenos alquimistas misturam matéria e devaneio, objetos e imaginação, recriando o mundo a sua volta. 

E, assim como a vida é compreendida em nossa sociedade como direito fundamental, inalienável, inviolável, o direito ao brincar também o é. Isto porque, como já dito, a criança existe brincando e brinca existindo, estando ela em períodos de abundância ou retraimento. Brincar, para uma criança, é natural, é natureza, é redundância, assim como dizer que a ‘a água é molhada’, ou ‘o fogo é quente’, ou ainda, ‘o vento sopra’ e ‘a terra é firme’. Cabe a nós adultos cuidar desta existência garantindo, ao menos, o mínimo necessário para que este ser brincador continue, naturalmente, apenas sendo. 

* Luiza de Toledo é educadora de atividades infantojuvenis do Sesc 24 de Maio

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