Foto: Mayara Neves
*Por Solange Miranda
Quando uma educadora negra entra em um espaço de educação ela nunca está sozinha. São muitas outras mulheres negras representadas por esta imagem que simboliza a intelectualidade num espaço antes negado às suas ancestrais por gerações.
Ao falar de educadoras/es negros eu poderia me ater aos fatos históricos na nossa construção enquanto sociedade que deixaram muitos dos meus ancestrais fora da escola, assim como tantos outros acessos que lhes foram negados. No entanto, eu escolhi o lugar do anúncio inspirada pelo grande educador Paulo Freire para este momento de troca com todas as educadoras/es negros ou não, mas que atuam principalmente na educação de crianças pequenas.
Como é ser uma professora negra em um espaço de educação?
Ao longo da minha vida como educadora trabalhando na educação infantil, esta construção foi sendo permeada, atravessada por diversos significados e tudo isso começa quando a escola, que é este lugar de tantos cuidados, se mostrou também como um espaço para minha formação enquanto mulher negra e professora negra que sou.
Ingressei na educação infantil em 2002, num CEI (Centro de Educação Infantil) indireto da rede Municipal de São Paulo, onde permaneci por seis anos. Neste período, decidi me especializar e fiz pedagogia, durante a graduação surgiu o desejo de atuar na rede municipal de ensino. Em 2011, ingresso como Professora de Educação Infantil e, em 2012, chego à Escola Municipal de Educação Infantil Guia Lopes, atualmente EMEI Nelson Mandela, onde atuei como coordenadora designada por dois anos e atualmente sigo como professora.
Foi estudando sobre a história da luta dos povos africanos escravizados que pude compreender questões que ainda não havia acessado durante a minha trajetória escolar, nem na trajetória acadêmica durante minha formação inicial, e estes conhecimentos foram fundamentais para ser quem sou atualmente. O cuidado e o compromisso desta escola com a formação continuada das professoras e todas as outras equipes me possibilitaram abrir portas para me reconhecer negra, e este processo se deu também com o trabalho no dia a dia com as crianças. Hoje, me reconheço e me apresento ao mundo como mulher negra especialista em educação de crianças pequenas. Isso me fortaleceu e me fortalece para falar desta posição.
“Prô, seu cabelo é lindo!”
Eu estava com meu grupo na sala de convivência acompanhando as crianças durante uma proposta de registro, como de costume, me sentei ao lado de uma das crianças e não demorou muito ela começou a fazer carinho no meu cabelo. Neste momento, olho para ela, retribuindo o carinho com um sorriso, ela me surpreende dizendo: “Prô, seu cabelo é lindo!”. No meio de tanta emoção, olho para ela, agradeço e digo que o cabelo dela também é lindo!
Quando ouvi isso a primeira vez pude entender o significado da minha presença, o significado da minha imagem para as crianças negras e não negras de toda a escola e, ao longo do tempo, eu percebi que essa importância estava para além das crianças, uma roupa, um acessório ou simplesmente andar pela escola com meu cabelo crespo solto foi se estruturando como parte de mim e parte da minha ação docente.
A escola é este lugar que acolhe as crianças, suas diversas infâncias e se atém aos cuidados para garantia dos direitos visando o seu desenvolvimento integral, cuidando dos aspectos físicos, emocionais e sociais. Para ampliarmos nossas ações no que tange os cuidados com a integralidade das crianças, construir uma relação de confiança e parceria com as famílias é algo que nos fortalece na garantia destes direitos, é um investimento que deve ser feito pelo reconhecimento da importância e da potência dessas relações para o cuidado e a educação das crianças.
Nessa perspectiva as educadoras/es como pessoas que cuidam também tem de ser cuidados e se tratando de educadoras/res negros, esse cuidado é fundamental para construímos e impactarmos as relações partindo do núcleo que é a escola, reverberando e atravessando a comunidade educativa e toda a sociedade.
A minha experiência numa escola que optou por cuidar das relações me dá segurança para dizer que este é sim um papel da escola. Esta escola colocou as crianças no centro destes cuidados, mas não abandonou suas educadoras/es. Essa revolução começa com o investimento na formação continuada de todas as equipes da escola, independentemente dos cargos que ocupam, reconhecendo e dando subsídios para todos os adultos atuarem como educadores. Essa ação se torna um marco para a construção de uma comunidade educadora pautada no respeito e na construção de uma educação que foge da reprodução de opressões existentes na sociedade, representadas na escola por meio da hierarquização dos cargos e funções.
“A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”
Nelson Mandela
Como estão as educadoras e educadores negros da sua escola? As suas sugestões e projetos tem apoio da gestão e dos parceiros de trabalho?
Não é incomum ver trabalhos solitários diante das temáticas que se pautam na cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Muitas vezes, a falta de apoio desencoraja professoras/es a realizar esses trabalhos que têm respaldos de Leis como a Lei 10.639/03 e a 11.645/08 para estarem no currículo das escolas e não deveriam de forma alguma se tornar pautas exclusivas das professoras/es negros, pelo contrário, abordar essa pauta na escola é dever de todos.
Pensar o cuidado com as educadoras/es sobretudo as educadoras/es negros é atuar na perspectiva do respeito às diversidades, conhecer a nossa história e como ela nos trouxe até aqui. Reconhecer como as relações são pautadas na herança histórica do racismo é um passo importante para transformar essas relações, garantir o investimento e o cuidado necessários para esse processo de desconstrução e construção tão importantes para evoluirmos enquanto sociedade.
Os cuidados com as educadoras/es negros dentro dos espaços de educação se mostra como um chamado urgente para romper a lógica estabelecida por meio do racismo presente no nosso país. Precisamos reconhecer que as escolas não são espaços neutros ou a parte dessa lógica imposta por diversos meios. Esta realidade ainda impede de avançarmos nas pautas raciais dentro e fora destes espaços de construção dos conhecimentos tão potentes no que tange às possibilidades de transformações capazes de influenciar as posturas e escolhas dos indivíduos.
“É preciso uma aldeia para se educar uma criança”
Durante uma formação com a pedagoga Clélia Rosa na escola, ela citou este provérbio africano e, desde então, ele passou a fazer muito sentido na minha trajetória. Acredito que na educação não se constrói nada sozinho e se tratando da educação das crianças pequenas a construção de uma aldeia, uma comunidade com um único objetivo, é fundamental.
Em tempos de pandemia, pensar o cuidado com as educadoras/es é pensar em acolher as frustrações diante de tantos desafios que se deram a partir das mudanças que impactaram nossas práticas. Reconhecer os desejos e os esforços que nos levaram a nos reinventar para estarmos com as crianças, alimentamos os laços, as relações e estarmos juntas e juntos mesmo que por meio virtual. Tantas transformações e investimentos nos colocaram novamente como pares insubstituíveis para a educação das crianças e esse espera-se que seja o legado dessa experiência tão desafiadora para todos nós.
Eu entendi que a palavra autocuidado passou a fazer mais sentido nesta nova realidade e senti que precisava encontrar equilíbrio nessa nova configuração, o cuidado com o corpo, com a pele, com a qualidade do sono. E, para isso, eu criei alguns hábitos que me puxam para o chão da minha casa e me proporcionam a paz necessária para passar por todas essas adversidades. Além da terapia, que eu já faço há alguns anos e me levou a um outro patamar na compreensão de tantas coisas sobre minha vida e minha trajetória, hoje mais do que nunca eu preciso dedicar tempo para o ócio, eu escolho bons tempos sem fazer nada e me sinto muito bem com essa escolha e defendo o ócio como algo a estar mais presente nas nossas vidas.
Vejo a escolha desse autocuidado como um movimento fundamental de não estar o tempo todo doando e sim no lugar de receber esse afeto, esse amor e esse tempo que às vezes pelo movimento que a vida impõe a gente possa acabar esquecendo de nos proporcionar. Enquanto mulher negra eu venho descobrindo esse autocuidado como um presente que eu posso me oferecer todos os dias.
*Solange Miranda atualmente é professora da EMEI Nelson Mandela. Sua experiência e resistência como profissional da educação formal há mais de quinze anos se fez na construção de sua identidade como mulher, negra e educadora.
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