Cultivo ancestral nas comunidades quilombolas

28/08/2024

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Comunidades quilombolas do Vale do Ribeira preservam e disseminam sabedorias tradicionais em suas práticas agrícolas, com roça de coivara, trocas de sementes e produção de alimentos orgânicos (foto: Letícia França)

POR LUNA D’ALAMA 

Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra

Muitos são os saberes que se revelam nos fazeres cotidianos da vida na roça. Cultivar a terra, preparar o solo, plantar e colher reúnem conhecimentos e práticas culturais milenares. Comunidades quilombolas presentes em diferentes pontos do território brasileiro veem nas atividades da roça não apenas uma forma de subsistência, mas de resistência e de manutenção de seus fundamentos ancestrais. 

Atualmente, existem 7.600 quilombos no Brasil, somando 1,3 milhão de pessoas, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quase 64% desses grupos estão concentrados na região Nordeste, com predominância nos estados do Maranhão e da Bahia, onde a população negra chega a 80%. No Sudeste, o Vale do Ribeira – que abrange 22 municípios paulistas e nove paranaenses – reúne 35 comunidades quilombolas, sendo 13 na região de Eldorado (SP). 

Uma dessas comunidades, o Quilombo São Pedro, está localizada a cerca de 100 quilômetros da cidade de Registro (SP).  É lá que vive Luiz Marcos de França Dias, conhecido como Luiz Ketu, liderança comunitária e doutorando em educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “No século 21, o que define um quilombo é a garantia do território. Trata-se, portanto, de uma questão geográfica, que diz respeito às terras e aos seres (pessoas, bichos e plantas) que habitam esses espaços. Nos organizamos em associações, estabelecendo relações sociais e políticas com o exterior e instituições parceiras”, resume.  

QUESTÃO DE DIREITO 
Na visão de Luiz Ketu, o quilombo é um museu vivo, um laboratório a céu aberto que mantém florestas da Mata Atlântica em pé e preserva conhecimentos tradicionais em diversos campos. “Mais de 90% do nosso território é coberto por vegetação nativa. Ou seja, utilizamos apenas 10% para cultivo de alimentos diversos (como banana, milho, mandioca, arroz, feijão, abóbora, batata-doce, chuchu, jaca, laranja, limão, pepino, palmito pupunha e hortaliças)”, destaca a liderança do quilombo que abrange uma área de pouco mais de 4.600 hectares e abriga mais de 50 famílias. Luiz Ketu, que também ministra oficinas de iniciação a percussão, capoeira, jongo, samba de roda, ciranda e coco para crianças e adultos em um projeto social, cita ainda o artigo 68 da Constituição Federal ao falar sobre o direito de quilombolas existirem e coexistirem nesses espaços: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.  

Além de lutarem para que seus territórios sejam reconhecidos oficialmente e registrados em cartório, as comunidades quilombolas têm resistido contra diversas ameaças, como megaempreendimentos imobiliários, garimpos, invasões para extração de palmito-juçara, e a intenção de se construírem usinas hidrelétricas ao longo do Rio Ribeira de Iguape. “Estamos em permanente estado de alerta”, conta. Para fortalecer o movimento, foram criados espaços de discussão de direitos, frentes de defesa e estruturas como o Grupo de Trabalho (GT) da Roça e a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale).  

O GT da Roça foi fundado por comunidades quilombolas no Vale do Ribeira e inclui representantes de vários quilombos, além de organizações parceiras da região. O grupo é responsável pela realização anual da Feira de Troca de Sementes e Mudas. A 15ª edição do evento ocorreu entre os dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado. Já a Cooperquivale tem, desde 2012, o objetivo de escoar a produção de alimentos dessas comunidades, comercializando itens in natura, sem agrotóxicos, em municípios vizinhos. A cooperativa já chegou a administrar 70 variedades de produtos.

Em 2018, o sistema agrícola tradicional quilombola foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). (foto: Luiz Ketu)

PATRIMÔNIO CULTURAL 
O sistema agrícola tradicional quilombola foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2018, como patrimônio cultural brasileiro. Segundo o professor Luiz Marcos de França Dias, essa medida ajuda a fortalecer as instituições e os processos coletivos quilombolas. O reconhecimento do Iphan diz respeito à roça de coivara, uma técnica milenar (no Brasil tem mais de 300 anos) que inclui o uso do fogo (e não de tratores) para renovar o solo – o que, no passado, já foi considerado perigoso e ambientalmente prejudicial. “Utilizamos o fogo em pequena escala, de maneira controlada. Ele não adentra as matas. É muito diferente do que ocorre no Pantanal e na Amazônia, por exemplo, onde há incêndios criminosos. A nossa técnica não agride o meio ambiente, nem as camadas inferiores do solo ou o lençol freático. E sua segurança foi comprovada, inclusive, por pesquisas científicas da Universidade de São Paulo (USP)”, explica. 

As cinzas que restam desse processo, de acordo com Luiz Ketu, agem como defensivos agrícolas naturais. E os troncos mais grossos da vegetação, que não queimam, entram em estado de decomposição, contribuindo para a fertilidade do solo. “Além disso, trata-se de um processo rotativo de culturas, que não usa a terra de forma exaustiva. Fazemos o pousio, isto é, completamos o ciclo daquelas culturas e, então, deixamos o solo descansar para que a área se regenere e recupere sua vitalidade. Só retornamos àquele local específico depois de uma, duas ou até três décadas”, ressalta. O professor lembra que, por conta da proibição – e até criminalização – da roça de coivara, com consequente aplicação de multas a quem a praticasse, houve um grande êxodo de quilombolas do Vale do Ribeira, nas décadas de 1980 e 1990, para cidades da Baixada Santista e da região metropolitana de São Paulo. “A flexibilização e a liberação das licenças ambientais só ganharam força a partir da pandemia de Covid-19, ou seja, é algo muito recente”, reforça. 

Doutora em educação, professora do ensino fundamental e aquilombada no Quilombo São Pedro desde 2017, Márcia Cristina Américo acrescenta que os conhecimentos da roça de coivara foram trazidos de países africanos, por pessoas negras escravizadas. “Não fazemos monocultura, tem muita diversidade. Nossos ancestrais nos ensinaram o que podemos cultivar e o tempo certo de cada plantio. Além disso, semeamos não só para nossas famílias, mas também para os animais, que se alimentam disso. A roça é a base do nosso trabalho, da nossa sobrevivência, da nossa vida”, avalia Américo, que é casada com Luiz Ketu e leciona, dentro da comunidade, para crianças do primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental. “A maior referência para os pequenos são as pessoas da roça. São exemplos inspiradores”, completa. 

Para fortalecer as comunidades quilombolas e divulgar seus conhecimentos, representantes dos quilombos São Pedro e Ivaporunduva – que compõem o GT da Roça – solicitaram aos educadores locais a criação dos livros Roça É Vida (Iphan/GT da Roça, 2020) e Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (GT da Roça/Cooperquivale/Instituto Socioambiental, 2022). Em parceria com o Museu Afro Brasil, também foi produzido o documentário Quilombo São Pedro: Modo de ser e viver (2023), dirigido por Luiz Marcos de França Dias e Paulo Pereira. Todo esse material compõe a exposição Roça É Vida, que o Sesc Registro inaugura no dia 21 de setembro [leia mais em Viva a roça!]. 


“Não fazemos monocultura, tem muita diversidade. Nossos ancestrais nos ensinaram o que podemos cultivar e o tempo certo de cada plantio. Além disso, semeamos não só para nossas famílias, mas também para os animais, que se alimentam disso.”
Márcia Cristina Américo, doutora em educação, professora e aquilombada do São Pedro

Obra “Mãozinhas” (2022), de Amanda Nainá dos Santos. Aquarela sobre papel para o catálogo da exposição “Roça é Vida”.

SABEDORIA DISSEMINADA 
Segundo Viviane Marinho Luiz, aquilombada do Ivaporunduva e uma das autoras dos livros, as publicações são um registro e salvaguarda do sistema tradicional quilombola. “São como diários que detalham a rotina da roça, além de um tributo às mulheres quilombolas e aos mais velhos. Cada personagem tem um nome (Fartura, Experiência, Tradição, Esperança, Legado, Resistência, Luta, Território etc.) que traz simbologias africanas e nos conecta a esse grande território ancestral, que está no centro das narrativas e não envolve apenas a roça, mas ritos religiosos, festas e outras manifestações culturais”, explica. As publicações contribuem ainda, na opinião de Viviane Luiz para a luta antirracista e para a representatividade quilombola, pois as histórias são escritas e narradas por seus próprios integrantes. “Gosto de citar dois escritores nigerianos, Chinua Achebe (1930-2013) e Chimamanda Ngozi Adichie. Achebe falava sobre a importância do equilíbrio de narrativas, enquanto Adichie alerta sobre o perigo de uma história única”, pontua.

Marido de Viviane Luiz e um dos autores dos livros, o quilombola e agricultor familiar Laudessandro Marinho da Silva afirma que as publicações são uma parceria entre quatro representantes quilombolas e dois ilustradores. “Buscamos traduzir nossa vida em palavras. A maior dificuldade foi amarrar a escrita, trazendo-a para a linguagem infantojuvenil. Nossa principal bandeira é o reconhecimento territorial, a regularização fundiária, e essa luta foi transposta para as obras”, enfatiza. Viviane Luiz concorda com Silva e diz que, se hoje mandarem alguém para a roça, isso será visto como um elogio, pois é lindo mexer na terra. “Que a nossa perspectiva de futuro não exija uma mudança para a cidade, pois queremos continuar no nosso território e viver bem dentro dele”, enfatiza.  

Para ver no Sesc
VIVA A ROÇA!
De 21 de setembro até 2 de fevereiro de 2025, o Sesc Registro apresenta a exposição Roça É Vida, que esteve em cartaz no Museu Afro Brasil

Ilustração de Vanderlei Ribeiro no livro Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (2022).

A cultura, o modo de vida e as técnicas ancestrais de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, compõem a exposição Roça É Vida, que o Sesc Registro inaugura em 21 de setembro, e que se estenderá até 2 de fevereiro de 2025. Concebida em parceria com a Associação dos Remanescentes do Quilombo São Pedro e o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, a mostra esteve em cartaz no Museu Afro Brasil de junho de 2023 a março de 2024. Serão apresentados objetos (como artefatos, artesanatos, cestaria e sementes crioulas), aquarelas dos livros Roça É Vida (Iphan/GT Vanderlei Ribeiro da Roça, 2020) e Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (GT da Roça/Cooperquivale/Instituto Socioambiental, 2022), além do documentário Quilombo São Pedro: Modo de ser e viver (direção de Luiz Marcos de França Dias e Paulo Pereira, 2023).

Segundo Márcia Cristina Américo, uma das autoras dos livros, a exposição permite que as pessoas do Vale do Ribeira conheçam a grandiosidade que é estar e viver naquele território, além da contribuição das comunidades quilombolas para a sociedade. “Apresentamos a estética e a poética da roça, reforçando a importância de mantermos vivas essas tradições ancestrais que nos atravessam com muita fartura de alimentos e saberes ligados à coletividade. Dessa forma, moradores da região poderão conhecer a potência do sistema agrícola tradicional e uma cosmopercepção que privilegia sentidos baseados em matrizes africanas. Numa relação muito próxima com a natureza e com o que provém dela. Nossas comunidades reivindicam o direito de existir, e não apenas de sobreviver”, ressalta.

Para Débora Rodrigues Teixeira, gerente do Sesc Registro, a mostra celebra a riqueza do Quilombo São Pedro e dos demais territórios do Vale do Ribeira. “A vinda da exposição Roça É Vida é mais um passo na contínua colaboração, construção e manutenção da cultura local, destacando a importância da roça como símbolo de resistência, identidade e sustentabilidade. Assim, sempre comprometido com a valorização das tradições locais, o Sesc São Paulo reforça seu vínculo com as comunidades quilombolas a partir de iniciativas que promovem o conhecimento, a valorização social e o respeito mútuo”, finaliza Teixeira

REGISTRO
Roça É Vida
Curadoria da Associação dos Remanescentes do Quilombo São Pedro e do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo.
De 21 de setembro de 2024 a 2 de fevereiro de 2025. Terça a sexta, das 13h às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Grátis.
Saiba mais em: sescsp.org.br/registro

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