Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
Foi na faculdade de jornalismo que Issaaf Karhawi aprendeu a formular perguntas e a ir atrás de questões que a inquietavam. Ao dar aulas de inglês, notou que seus alunos liam bastante e escreviam histórias ficcionais na internet. A partir daí, mergulhou no universo digital e vem se aprofundando cada vez mais. Começou a estudar blogueiras de moda em 2014, fez mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e lançou o livro De blogueira a influenciadora: etapas de profissionalização da blogosfera de moda brasileira (Sulina, 2020). Atualmente, ela integra o grupo de pesquisa em comunicação e mídias digitais COM+, da ECA-USP, realiza pós-doutorado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e leciona na pós-graduação do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação), da USP.
Issaaf considera-se uma entusiasta digital e não acredita mais numa separação entre vida online e offline: “O ciberespaço, como aquele espaço apartado da sociedade, gera a sensação de que nele as regras sociais, normas e condutas não servem, não valem. Assim, lá eu [sinto que] posso proferir discurso de ódio, colocar desinformação em circulação”. Neste Encontros, a pesquisadora reflete sobre fenômenos contemporâneos do mundo digital, como as redes sociais, a função dos algoritmos, filtros e bolhas, os memes e outros conteúdos virais, o papel dos influenciadores e os desafios no combate às fake news.
Ouça, em formato de podcast, a conversa com Issaaf Karhawi na íntegra
[Minha formação] É no jornalismo e, apesar de eu não atuar como jornalista e não pesquisar o jornalismo diretamente, devo o meu modo de entender o mundo ao jornalismo. Eu percebi que o digital seria interessante de ser abordado quando comecei a fazer perguntas, algo que aprendi na minha formação. E as minhas primeiras pesquisas envolvendo comunicação digital tinham o interesse de entender por que os jovens não liam, como diziam. Enquanto fui professora de inglês, via os jovens lendo, e não só lendo, [mas] lendo Crepúsculo e escrevendo fanfic [narrativa ficcional produzida e divulgada por fãs] na internet. Aí comecei a me questionar: “Como assim eles não leem? Eles leem, escrevem e estão na internet”. Então, fui para o digital.
Minha pesquisa sobre influenciadores [digitais também começou] por conta de uma pergunta: “Quem é essa blogueira escrevendo e ocupando o espaço dos profissionais da comunicação? É uma profissional? Ser blogueira é profissão?”. O influenciador não tem [crédito institucional], mas constrói [isso] a partir de outra ideia, que tem a ver com o próprio desenho das redes. Eles nascem no digital, não se digitalizam. Parece um pequeno detalhe, mas é o que faz com que a gente dê crédito a esses sujeitos, porque nascer no digital tem a ver com ter uma comunicação naturalmente mais horizontal, menos hierarquizada, e estabelecer uma relação íntima com as audiências.
O influenciador digital intensifica essa sensação de construção de comunidades de interesse, então vai conquistando crédito a partir do reconhecimento de que ele é quase um líder eleito tacitamente. Uma pesquisa recente chamada Juventudes e Democracia na América Latina [encomendada pela organização filantrópica Luminate] revelou que jovens [de 16 a 24 anos] se informam sobre política a partir de influenciadores digitais. E não são influenciadores que falam de política, mas do dia a dia, de lifestyle. Por alguma razão, esses jovens entenderam que aquela pessoa tem crédito para falar sobre política. Esse crédito tem a ver com a sensação de que há um grupo ali que se organiza, e que aquele influenciador é o porta-voz desse grupo.
Mesmo enquanto dormimos, seguimos conectados. Há autores que vão discutir essa relação do sono como o último espaço preservado das plataformas e da conexão. Ainda assim, estamos 100% conectados. Se alguém me manda uma mensagem em qualquer rede social de madrugada, essa pessoa ainda está conversando com esse meu “eu” conectado. Então, não há dissociação e, quanto mais a gente entende que não há online versus offline, melhor é para a gente como sociedade.
[Se vemos] o ciberespaço como aquele espaço apartado da sociedade, isso gera a sensação de que nele as regras sociais, normas e condutas não servem, não valem. Assim, lá eu [sinto que] posso proferir discurso de ódio, colocar desinformação em circulação. Mas acho impraticável pensar numa sociedade que distingue esses dois espaços. A gente fala hoje em “plataformização da sociedade”, em como todas as esferas da nossa vida, em alguma medida, foram impactadas pelas plataformas de redes sociais. Portanto, se você é um bom profissional, é preciso dar visibilidade para o seu trabalho numa rede social porque é isso que se entende como um bom profissional hoje.
“O CAMINHO MAIS INTERESSANTE SERIA A EDUCAÇÃO PARA AS MÍDIAS, O RECONHECIMENTO DAQUILO QUE OS MEIOS FAZEM COM OS NOSSOS DADOS E COMO A GENTE PODE USAR OS MEIOS DA MELHOR FORMA POSSÍVEL”
Issaaf Karhawi
Os primeiros teóricos da comunicação digital são entendidos como utópicos digitais ou tecno-otimistas. Eles tinham um discurso da internet como um espaço bastante democrático, descentralizado, desierarquizado. Em certa medida, tinham a sensação de que a internet mudaria a cara da comunicação. Vieram nesse entusiasmo, porque, de fato, a internet horizontalizou um pouco a maneira de se fazer comunicação. Mas, o que eles não conseguiram prever era como a internet também estava impondo novas barreiras digitais. Como, em certa medida, a euforia se encontrou com as desigualdades de conexão, essas barreiras que [nos] são impostas. Hoje, até se fala em colonialismo de dados, em como alguns países passam a ser espaços de extração de dados, a funcionar para grandes plataformas como espaços em que se capturam e usam dados, categorizam-se pessoas, constroem-se amostras, tudo isso para poder impactar pessoas com anúncios, por exemplo.
No fim das contas, a internet foi replicando um pouco essas desigualdades que a gente tem [no mundo físico]. O grande ponto das plataformas é justamente essa extração de dados – é menos a discussão de que estou cedendo os meus dados, e mais a discussão sobre o que é feito com esses dados. Como é que esses dados moldam a forma com que a gente navega diariamente? Como é que restringem, em certa medida, nossa liberdade e as possibilidades de sociabilidade? Quando pesquisadores falam que poderia haver redes financiadas por outras lógicas, é justamente para suprimir essa datificação, essa extração de dados. Se é possível, eu tenho muitas dúvidas, pois estamos falando de monopólios midiáticos. O caminho mais interessante seria a educação para as mídias, o reconhecimento daquilo que os meios fazem com os nossos dados e como a gente pode usar os meios da melhor forma possível.
Costumo ser uma entusiasta digital, essa é a minha assinatura nas pesquisas, mas há assuntos que são mais difíceis de preservar entusiasmo, como o colonialismo de dados e o capitalismo de vigilância. Shoshana Zuboff [autora de A Era do Capitalismo de Vigilância, Intrínseca, 2021] fala sobre como as plataformas constroem um discurso de que são imprescindíveis na nossa vida. É um discurso vindo do Vale do Silício [na Califórnia, EUA], que vai conformando a percepção que a gente tem das redes e impossibilita que a gente dê um passo atrás e reflita sobre as redes sociais. Será que [sair das redes] é o único caminho? Abrir mão de formas de relacionamento e sociabilidade? O digital permitiu, por exemplo, que a gente se desprendesse das ideias de localidade e temporalidade. Posso me conectar com pessoas que compartilham os mesmos interesses em vários espaços, e isso é muito positivo.
Quando penso em questões que passam por grandes movimentos organizados a partir das redes, eu imediatamente penso no movimento body positive, que não nasceu no digital, mas se potencializou nas redes. E essa potência toda vem justamente do reconhecimento de que pessoas em outras localidades compartilham das mesmas questões ou dos mesmos interesses. Isso é muito legal do digital, e as comunidades são espaços até de subversão, algo que tenho observado. No caso do Facebook, há anos que todo mundo tem decretado a morte dessa plataforma, mas ela segue ali, sustentada pelas comunidades, pelos espaços fechados, às vezes até espaços de bairros, compartilhando questões [locais] sobre segurança, sobre quem oferece uma marmita, por exemplo. Isso a gente pode preservar como as boas questões do digital. Se ele permite algum tipo de mudança, acho que a sociabilidade é muito evidente.
O que a internet fez foi abrir os polos de produção, permitindo que sujeitos comuns adentrassem um espaço que antes era restrito à mídia. A gente sempre teve acesso ao produto final da mídia, ou seja, uma notícia pronta, acabada, entregue para que eu pudesse ler. A internet desorganizou essa ordem, e a gente entrou em outro momento da produção de notícias. Quando a gente navega no feed [das redes sociais], começa com um meme de gatinho, a foto de um familiar querido, um post opinativo e, de repente, [aparece] uma notícia, a coluna de um jornalista. E a entrada de pessoas que não fazem parte da mídia tradicional gera uma desorganização dos parâmetros: “O que é informação? O que é opinião? O que é notícia? O que é entretenimento?”.
Por um lado, essa abertura foi maravilhosa e mudou a cara da nossa sociedade. Mas, o efeito rebote passa pela desinformação. Essa disseminação orquestrada de fake news também se dá por ausência de contexto. Nas primeiras notícias relacionadas à vacina [contra a Covid-19], não circulava checagem de fatos nas bolhas desinformativas. Acho que o jornalismo é o que vai nos salvar de tudo o que a gente tem visto de desinformação, da nossa desesperança, mas, para que isso seja possível, o jornalismo precisa jogar um pouco de acordo com as regras do jogo das plataformas, que são regras opacas, cruéis, severas, que tiram a autonomia e que se organizam de uma forma muito oposta ao modelo de negócio [atual] do jornalismo.
Imagine filtrar tudo que você produz todos os dias na internet? É impossível. Então, alguém precisa fazer isso. Quem filtra [o volume de informação]? Os algoritmos, sobre os quais as pessoas falam como se fossem uma entidade. Agora, esse trabalho de filtro invisível não é feito de forma gratuita. A contrapartida vem da extração de dados. E mais: o filtro vai fazendo com que a gente se encaixe dentro de bolhas, e elas são construídas para que a gente fique mais confortável, veja coisas que a gente goste. Porque, assim, a gente fica mais tempo nas redes sociais, e quanto mais tempo a gente passar nelas, mais impactados seremos com publicidade. Esse é o modelo de negócio das redes.
É difícil pensar numa lógica diferente, porque essas bolhas não nos permitem enxergar que há um “fora”. A gente não fura a bolha, não nas plataformas de redes sociais. Então, a gente fica refém, de fato, de como os algoritmos funcionam. As bolhas se organizam a partir de interesses de negócios das plataformas, elas se organizam em amostras, porque segmentam interesses compartilhados, mas também identificação de ações, se uma pessoa é mais ou menos disposta a interagir com certo tipo de publicação ou anúncio. Então, essa ideia de bolha como um grande agregador social é apenas uma camada, a outra é o objetivo comercial. Estamos fazendo parte de desenhos estratégicos das organizações, sem termos noção desses desenhos.
Os memes têm algo interessante que é como conseguem condensar anseios de um momento. Eles são a síntese de alguma coisa e, para entendê-los, você precisa de contexto. Se um meme circula, chega até você e você não faz ideia do que é aquilo, é porque não entendeu o contexto, não sabe de onde vem essa história. Ele exige camadas de leitura, camadas interpretativas que às vezes a gente acha que são só uma banalidade, mas não são. É por isso que eles são importantes veículos, pensando nessa ideia de condensar informações e colocá-las em circulação.
Dá para pensar os memes por vários caminhos: o do humor é aquele com o qual a gente está superacostumado, mas eles também ajudam a evidenciar questões importantes [como políticas]. A convocação para que os jovens tirassem título de eleitor se organizou muito por uma linguagem memética, de viralização, de síntese. O TikTok, por exemplo, é uma rede que se organiza a partir de memes de áudios [e vídeos], em que as pessoas dublam o tempo inteiro. Esses memes condensam uma discussão, são facilmente apropriados, adaptados e colocados de volta em circulação.
Elas são plataformas em que pessoas comuns se inscrevem para trabalhar clicando coisas o dia inteiro. Cada clique gera uma remuneração de menos de um centavo. Ou seja, a pessoa tem como tarefa do dia curtir 10 mil fotos, fazer cem comentários, assistir a cinco horas de vídeo e curtir cada um deles. No fim do dia, se a gente fizer as contas, ela não vai conseguir reunir um salário minimamente justo. Mas, por que isso existe? Porque há quem compre esses cliques, comentários, curtidas. A pessoa não está comprando seguidores falsos, os famosos robôs. Agora são pessoas trabalhando numa dinâmica de robô. A gente tem trabalhadores nessas condições de precarização. E essa discussão tem muito a ver com o universo dos influenciadores digitais, que depende de boas métricas. Se ele não tem, o que pode fazer? Contratar, comprar esses comentários e curtidas reais e inflar seus números, para que consequentemente tenha mais parcerias comerciais. É todo um ecossistema que alimenta essas fazendas de cliques. A gente está vivendo esse momento de reorganização dos parâmetros, e acho que é uma luta da sociedade, da mídia e das plataformas. Muitas plataformas [já] estão se aproximando dessas discussões. Acho que esse é o desafio do nosso tempo.
ISSAAF KARHAWI esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 25 de maio de 2022. Ouça, em formato de podcast, a conversa com a convidada. A mediação do bate-papo é de Adriana Reis Paulics, jornalista e editora da Revista E.
A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.
Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.
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