Imagem de pessoa diante de um notebook | Foto: Domínio público
Em entrevista ao portal do Sesc São Paulo, Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, fala sobre o direito fundamental das pessoas a terem acesso a dados e informações produzidas por órgãos da administração pública e como essa garantia é especialmente importante em momentos de crise.
A pandemia causada pelo novo coronavírus tem sido acompanhada, na imprensa e nas redes sociais, por análises diárias, gráficos e projeções a respeito dos casos de Covid-19. Também têm sido divulgados e discutidos dados sobre a ocupação de leitos, adesão a medidas de isolamento social, investimentos públicos e contratações voltadas ao combate à doença, entre outras informações de interesse da população.
Boa parte dos dados que alimentam regularmente o trabalho de jornalistas, pesquisadores e iniciativas da sociedade civil, é obtida junto a órgãos da administração pública. Estamos falando de uma diversidade de números, registros, documentos em vários formatos, detalhes sobre a aplicação de recursos públicos, por exemplo, sobre contratos e licitações, relatórios e documentos produzidos por esses órgãos, além de dados sobre as próprias atividades exercidas por eles.
O acesso a essas informações – que são fundamentais a tomadas de decisão baseadas em evidência por parte do próprio poder público, em tempos de pandemia ou não – é um direito de todas as pessoas – garantido pelos incisos XXXIII do art. 5º, II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal – para que a sociedade civil possa não somente estar a par das ações da administração pública, mas também possa atuar na fiscalização do Estado.
Essa garantia constitucional foi regulamentada somente em 2011, por meio da Lei de Acesso à Informação, que entrou em vigor no ano seguinte. Para entender como funciona a requisição de dados e informações junto ao poder público, como é feito o tratamento desse conteúdo e a importância da transparência governamental, conversamos com Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, organização sem fins lucrativos voltada à promoção do conhecimento livre com enfoque em dados abertos.
O que é a Lei de Acesso à Informação e que importância ela passou a ter na vida dos brasileiros?
A Lei de Acesso à Informação, de fato, é uma das leis mais importantes que a gente tem para garantir a participação e a transparência pública. Ela garante que todo mundo possa acessar informações de quaisquer órgãos públicos, de quaisquer esferas e níveis de governo – Judiciário, Executivo e Legislativo dos níveis municipal, estadual e da União. Todos têm a obrigação, têm o dever de oferecer informações públicas. Aqui no Brasil, a gente tinha o direito declarado na Constituição Federal de 1988, mas não exatamente como ele funcionaria. A partir da Lei de Acesso à Informação, a sociedade ganhou essa segurança de se estipular prazos, responsáveis… Por exemplo, se o governo tiver um dado solicitado disponível, ele tem que encaminhá-lo ao requerente daquela informação instantaneamente ou, no máximo, em até vinte dias prorrogáveis por mais dez. A regra geral é a publicidade da informação. O sigilo é a exceção. Existem apenas alguns casos em que o governo pode negar esse pedido com base no que está previsto na lei, que é, basicamente, garantir a segurança do Estado e da sociedade. Informações pessoais também não podem ser divulgadas. Elas têm que ser protegidas. Existe uma outra legislação que vai garantir isso que é a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Essas duas leis têm que caminhar juntas para garantir o direito de todo cidadão e cidadã.
Quem pode fazer esses pedidos de acesso a informações?
Toda pessoa, mesmo que não tenha nacionalidade brasileira ou resida no Brasil, pode fazer um pedido de informação para qualquer órgão público brasileiro com base na Lei de Acesso à Informação. É necessário se identificar minimamente, de acordo com a nossa legislação. Não é possível fazer um pedido anônimo. Mas o governo, o órgão público, em geral, não pode pedir a motivação para aquele pedido. Não importa qual é a motivação. O requerente não precisa informar qual é o motivo e o governo não pode perguntar qual é o motivo.
Como e onde se pode fazer um pedido de informação pública?
Todos os órgãos são obrigados a manter canais para esse pedido ser realizado. Inclusive canais eletrônicos. Então, é muito comum ter o Sistema de Informação ao Cidadão (e-Sic). Toda vez que o cidadão precisar fazer um pedido de informação, ele tem que procurar no órgão se esse órgão tem um sistema ou se ele disponibilizou, pelo menos, um e-mail para fazer isso. Idealmente deve ter o sistema eletrônico de informação. E, aí, geralmente, no poder público, esse sistema já tem os prazos de forma automática. A pessoa faz um pedido e ela recebe, via meio eletrônico, mas ela também pode fazer o pedido por carta e receber de forma física essa informação em canais presenciais, num balcão, por exemplo. Têm algumas dicas para fazer pedidos de informação, mais gerais, que algumas entidades disponibilizam e manuais, mas, em geral, a gente recomenda que, embora não seja necessário informar a motivação da solicitação (se é um trabalho escolar, uma pesquisa), é importante especificar bem o que você quer pedir, porque os pedidos genéricos também podem ser negados. Então, posso pedir “eu quero os contratos do governo federal”. Mas eu quero quais contratos? Eu quero de um período específico? Eu quero de um ministério específico? Então, é importante especificar e fechar o escopo daquilo que você realmente precisa solicitar.
Como as informações são disponibilizadas pelos órgãos públicos?
É importante dizer que a Lei de Acesso à Informação fala de dois conceitos. Ela traz a obrigação do Estado de cumprir com regras de transparência passiva e ativa. O que é a transparência passiva? A transparência passiva é quando o órgão público é provocado a fornecer uma informação. Então, são os pedidos de acesso à informação. A transparência ativa é quando ele disponibiliza, de forma espontânea e ativa, os dados num portal para qualquer pessoa baixar, sem necessidade de fazer um requerimento. Tem uma outra distinção que é importante pensar também. Você pode pedir informações ou dados abertos. Às vezes, as pessoas querem acesso a documentos, a relatórios, a informações já processadas. Isso é possível também. Mas se a pessoa faz a requisição de bases de dados – ou se ela acessa bases de dados que já estão disponíveis em portais de dados abertos – aí, de fato, ela vai ter que acessar essa informação e processá-la. As duas coisas são importantes. É importante que os governos divulguem informações para o público em geral, em painéis, de forma que tenha uma apresentação mais simplificada, e é importante que divulgue os dados brutos porque qualquer pessoa, pesquisador, jornalista, sociedade civil, vai poder analisar aqueles dados e chegar a outras conclusões, outras interpretações sobre aquele dado que foi produzido pelo órgão público.
Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil | Foto: Acervo pessoal
Do que estamos falando quando falamos em “dados abertos”?
Dados abertos são dados públicos que estão disponíveis em um formato específico. Não é só aquilo que está publicado na Internet que é considerado dado aberto. Ele precisa também atender a uma série de princípios que fazem com que aqueles dados sejam o mais reutilizáveis e úteis possível. Os dados precisam estar disponibilizados sob uma licença livre, por exemplo, ou seja, eles têm de poder ser usados por quaisquer pessoas, para quaisquer finalidades, sujeitos, no máximo, a uma restrição de que se atribua fonte; os dados precisam estar em formato legível por máquina, isto é, eles precisam estar em um formato que o computador possa processar. Outro princípio também é que o acesso tem que ser universal. Não pode precisar de um login, de uma senha ou de um cadastro para serem acessados. Existem alguns outros princípios, mas esses são os principais.
Que recursos são necessários para processar esses dados?
Depende. A gente está falando aqui também de uma diversidade grande de volumes e formatos em que esses dados podem estar acessíveis. Há desde planilhas mais simples, que as pessoas podem manipular e usar para analisar os dados, até volumes que não são possíveis tratar com programas mais simples e disponíveis abertamente. Nesses casos, é necessário ter algum conhecimento prévio de uma linguagem de programação como R ou Python. Também é importante pensar na democratização desse tipo de conhecimento. Desde as escolas, a gente fala muito no aspecto de educação em dados, porque hoje em dia a gente está falando cada vez mais em um volume crescente de dados disponíveis, e vários setores da sociedade e várias profissões têm que lidar com dados. Então, esse é um conhecimento também que é importante democratizar. Por esse motivo que uma organização como a Open Knowledge, por exemplo, criou sua Escola de Dados, justamente para democratizar o acesso a esse conhecimento. Na Escola de Dados, a gente tem diversos tutoriais que explicam como trabalhar com dados. Mas é claro que hoje isso ainda é uma habilidade mais restrita aos chamados infomediários, que são as pessoas que vão captar esse dado, tratar e divulgar a informação em jornais e sites.
Você poderia dar um exemplo da atuação desses infomediários e dessas habilidades?
Automatização de coleta de dados. Há dados que não estão estruturados, que não estão prontos. Os diários oficiais, por exemplo, não são dados abertos nos termos que a gente falou. Então, têm processos em que são construídos robôs para coletar esses dados e organizar, estruturar de alguma maneira. A gente tem também habilidades de visualização de dados, que são necessárias para transformar aquele dado em uma informação visual que passe uma mensagem e que faça uma interpretação daquilo. A gente tem habilidades de análise propriamente dita, que é explorar aquela base de dados, fazer perguntas e descobrir respostas sobre o que está ali. Um exemplo disso é a base de dados da Receita Federal, que disponibilizou os CNPJs e sócios das empresas. É uma base muito importante para a cidadania, por exemplo, para cruzar com informações de doadores de campanhas eleitorais, de fornecedores para o poder público, para entender as relações e possíveis conflitos de interesse. Mas hoje esse dado é muito complexo, porque é um volume muito grande. Então, existem programas, scripts que são construídos para processar essa informação. E têm projetos da sociedade que ajudam a fazer esse primeiro tratamento e disponibilizar o dado de volta, como é o caso do Brasil.io. No caso dos dados eleitorais, o Cepesp, que é um centro de pesquisa da FGV, também faz esse tipo de trabalho: organiza, trata, limpa. Porque os dados vem com alguns problemas, com a necessidade de fazer o que a gente chama de “limpeza” mesmo da base de dados, tratar formatos e tudo mais. Depois disponibilizam também de uma maneira facilitada para jornalistas no CepespData.
Qual a importância de se falar em dados em um momento como esse, no país, em meio à pandemia de Covid-19?
É fundamental a gente falar em dados, por cinco razões, cinco grandes usos que a gente pode fazer dos dados nesse momento. Em primeiro lugar, os próprios gestores precisam de dados para fazer política pública, para pensar em soluções para a crise. Dentro do poder público, há várias separações e divisões. Um setor que tenha determinado dado não necessariamente compartilha esse dado com outro. Então, quando os dados são abertos, há possibilidade de cooperação entre órgãos públicos, entre entes e, às vezes, setores de um mesmo órgão. Esse é um primeiro e importante aspecto: pensar em políticas baseadas em evidências, em dados. Um segundo aspecto são os jornalistas. Os jornalistas e a sociedade civil podem ajudar a monitorar a situação da pandemia, mas eles também podem ajudar a monitorar a qualidade dos dados que estão sendo disponibilizados, fazer a validação e ajudar a checar. Pesquisadores, com dados detalhados, também podem ajudar a fazer projeções, a entender padrões sobre a disseminação da doença. Os programadores e cientistas de dados podem ajudar a construir tecnologias para falar sobre a disseminação da doença, para falar sobre isolamento social. E, por fim, a própria população, com acesso aos dados e às informações, compreende melhor a situação, tem uma visão sobre a gravidade da doença e os limites da infraestrutura de saúde e da ocupação de leitos e pode aderir mais às políticas de distanciamento social.
Enfrenta-se algum tipo de dificuldade para se obter esses dados e informações, em função da situação de pandemia?
Nesse momento, a gente também tem uma sobrecarga do Estado com o próprio combate à Covid-19, então, falar de dados abertos é mais importante ainda. Porque os pedidos de acesso à informação são um direito humano, eles não podem ser ignorados, mas eles têm também um custo. Imagina várias pessoas perguntando, ao mesmo tempo, sobre a informação da capacidade hospitalar. Então, se esses dados estiverem abertos, o Estado não precisa ter o trabalho de responder aquelas informações. Houve uma Medida Provisória, que já foi suspensa, que tentava ampliar os prazos e suspender a necessidade de responder pedidos de informação em alguns casos, mas isso é bastante equivocado, porque esse é o momento de ampliar a transparência. Então, o que deveria ser feito é justamente pensar em políticas de abertura de dados em vez de restrição de informação. E o trabalho que a gente tem feito na Open Knowledge Brasil, com o índice de transparência da Covid-19, é justamente monitorar a disponibilidade da informação. E a gente viu um crescimento muito importante, um impacto muito grande dessa iniciativa, porque no momento em que a gente começou, 90% dos estados não estavam disponibilizando informações básicas, que não chegavam às categorias bom e alto do índice, e hoje tem apenas 25% que não estão nessas categorias. Então, a gente mostrou que é possível – desde que haja parâmetros mínimos e uma fiscalização da sociedade, uma cobrança – ampliar a quantidade de dados. E eu tenho certeza de que isso tem contribuído também para reduzir a sobrecarga dos pedidos de acesso à informação.
Que desafios o país ainda enfrenta para fazer valer plenamente a garantia constitucional de acesso à informação?
A gente realmente enfrenta desafios importantes na aplicação da Lei de Acesso à Informação. Em meio a uma pandemia, isso fica mais evidente e se torna mais urgente. Mas são desafios que a gente já vem enfrentando ao longo dos últimos anos – alguns com mais, outros com menos avanços. Mas um desafio básico ainda é os governos terem primeiro uma visão estratégica sobre os dados, ampliarem suas capacidades para tratar e analisar a informação, incorporarem na cultura da gestão essa visão estratégica de usar dados para se planejar, para estabelecer as suas políticas. Tem o básico que é o planejamento de acordo com a demanda. Em um cenário de falta de capacidade, uma medida importante seria mapear as demandas dos principais usuários dos ecossistemas de dados sobre as informações que são mais buscadas e procuradas, e começar abrindo essas informações. Priorizá-las. Esse planejamento e conexão com a demanda ainda é muito pouco feito. A gente tem, no plano federal, os Planos de Dados Abertos [que orientam as ações de implementação e promoção de abertura de dados] e isso deveria ser replicado também para os estados e municípios. Um desafio é fazer valer esse instrumento para outras esferas também.
Fernanda Campagnucci é diretora-executiva da Open Knowledge Brasil desde agosto de 2019. De 2013 a 2019, atuou como gestora pública na Prefeitura de São Paulo, tendo sido responsável pela política municipal de transparência, abertura de dados e integridade na Controladoria Geral do Município. Graduada em Jornalismo e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, é doutoranda em Administração Pública e Governo na Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV). É também professora convidada do Insper nos cursos de Compliance e de Inovação no Setor Público.
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Ações voltadas ao letramento digital e também ao letramento de dados em particular e a técnicas de visualização de informações, entre outras ações relacionadas ao desenvolvimento de habilidades fundamentais ao exercício da cidadania na era digital, fazem parte do programa regular de Tecnologias e Artes do Sesc São Paulo. Durante o período em que o isolamento social se faz necessário para o combate à pandemia de COVID-19, acompanhe as iniciativas online do Sesc em tecnologias e artes e outras áreas, produzidas especialmente para o meio digital.
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