Leia a edição de janeiro/23 da Revista E na íntegra
Por Maria Júlia Lledó
No nono andar de um prédio dos anos 1950, incrustado na movimentada avenida Nove de Julho, a cantora Ellen Oléria nos aguarda. Vestida de branco, pés descalços e alheia ao intenso barulho de buzinas e motores, a artista, nascida no Distrito Federal, fez da cidade de São Paulo sua segunda casa. Filha de pai sanfoneiro, conviveu com as melodias da rádio sintonizada pela mãe, o som alto dos vizinhos aos domingos, e fazia ganzá com potes vazios e um punhado de arroz.
Ainda que a música tenha feito parte da sua rotina, foi fisgada, aos 20 e poucos anos, pelo teatro. Cursou artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), onde aprendeu com mestres como o diretor uruguaio Hugo Rodas (1939-2022). No tablado, ela desenvolveu a verve da interpretação que, incorporada à musicalidade e à voz, transformou a vida da jovem artista.
Partiu da cena cultural brasiliense, onde lançou os discos Peça (2009) e Ao Vivo no Garagem! (2011), para se tornar conhecida em outras partes do país após vencer a primeira temporada de um reality show musical, em 2012.
Na bagagem, referências da música negra brasileira e internacional, mas também da viola caipira e da origem sertaneja. De lá pra cá, mais dois álbuns – Ellen Oléria (2013) e Afrofuturista (2016) – até lançar o mais recente trabalho: Re.trato, em show no Sesc Pompeia, em novembro passado. Nesta quinta obra, a cantora refaz os combinados consigo, como ela mesma afirma, sempre fiel às suas raízes e à poesia que a atravessam no cotidiano. Voz potente de sua geração, a artista fala, neste Depoimento, sobre processo criativo, música, teatro e afrofuturismo.
Assista a trechos desta conversa com Ellen Oléria
estribilho
Grande parte da minha vida aconteceu entre Taguatinga e Ceilândia: tenho essas duas cidades no meu coração e meu imaginário musical tem a ver com esses territórios. A gente cresceu cercado de música: meu pai sanfoneiro, todo domingo de manhã, pegava a sanfona e ia fazendo som. A gente assistia ao programa Viola, Minha Viola, na televisão, e minha mãe, que sempre foi uma apaixonada por música, estava com o rádio ligado em música sertaneja ou ouvindo hinos, conectada com a religião e com a fé. A gente também cresceu ouvindo aquela paisagem sonora dos vizinhos que gostam de som alto. Ouvia muito Tim Maia (1942-1998), R&B, pagode, samba. A minha primeira parceira de composição foi a minha irmã. A gente fazia muito barulho em casa: batia nas tampas das panelas, fazia ganzá com arroz e alguns potinhos, fazia de tudo uma brincadeira musical.
palco
Eu estava me preparando para fazer o vestibular e ainda tinha dúvidas sobre qual área ia tentar. Fui ao teatro pela primeira vez com uma amiga, quando eu já tinha 21 anos. Na hora, eu tive certeza de que era aquilo mesmo que eu tinha que fazer. Fiz o vestibular e passei, para alegria da minha mãe e minha também. No final, o teatro acabou me levando de volta para a música. Eu nunca parei de cantar. Foi numa viagem, num circuito de teatro, que eu entendi que a música realmente tinha um papel muito importante na minha vida. A gente apresentava o espetáculo, depois saía para celebrar com os amigos num restaurante ou num bar, e eu dava uma canja. Os espetáculos eram da Companhia dos Sonhos: Rosanegra – Uma saga sertaneja e O Caminho de Amalfi, com direção do Hugo Rodas. Hugo me dava aulas no curso de teatro, e acabou me convidando para substituir o ator Chico Sant’Anna em Rosanegra. Nessa temporada, Seu Badia Medeiros [(1940-2018) violeiro e artista popular] me aconselhou bastante, porque estava conosco nessas viagens. Foi ele que me incentivou a retornar para a música. Eu já cantava à noite para me bancar na universidade, comprar minhas passagens, almoços e jantares na UnB, onde passava o dia inteiro, às vezes à noite também, para os ensaios. Era a música que me mantinha na universidade.
afrofuturismo
Acho que eu já era afrofuturista antes de dar esse nome para o pertencimento dessa identidade. Ser afrofuturista é ter a possibilidade e a expertise de se conectar com suas raízes negras, afrodiaspóricas, com toda a tecnologia que a construiu, e atualizar essas heranças. Acredito que dentro da afrodiáspora, sempre pensando em tecnologias de sobrevivência e de expansão de consciência, o amor é fundante. Todas as vezes que falo de afrofuturismo, eu preciso falar de amor e de afeto, porque esse povo preto sobreviveu com muita vontade de viver, e isso nos faz afrofuturistas. Trata-se de potencializar as nossas técnicas e tecnologias de vida, de sobrevivência, de subsistência, de produção e de reprodução de conhecimento.
fluxos
Eu sou muito atravessada pelos meus afetos. Tem canções que eu escrevi por causa de uma frase dita pela minha mãe, ou a partir de uma conversa que eu tive com meu pai. Os amores da minha vida também me tocam profundamente. Eu sinto que compor é devolver para a comunidade o que a gente tem recebido. Então, não há nada novo na minha produção, mas compilações de impactos e de atravessamentos cotidianos. Uma palavra dita, uma imagem potente… Ali, na minha parede, está emoldurado O Espírito da Intimidade – Ensinamentos Ancestrais Africanos Sobre Maneiras de Se Relacionar (Odysseus, 2007), um livro de Sobonfu Somé [professora e escritora de Burkina Faso], que me atravessa muito. Tudo isso acaba compondo meu imaginário e virando poesia.
40
Quarenta anos é chão, né? Eu me sinto muito abençoada, muito agraciada pela vida, pelos caminhos, pelos lugares que conheci, pelas pessoas que eu amei e que me amaram. Me sinto muito realizada dentro do meu trabalho. A gente tem muita luta, mas não pode esquecer das vitórias. Ver que tem um monte de jovens artistas, meninas negras que olham para o meu trabalho, se espelham e dizem: “Comecei a cantar por causa de você” ou “Ouvi sua música e ela me fortaleceu num momento muito difícil”. Sinto que eu fiz o trabalho que precisava ser feito. Nossa matéria-prima é a emoção, e trabalhar com emoção é algo muito desafiador nesse mundo violento. Mas, eu acho que a gente tem encontrado cura, também, na arte. A arte tem sido revolucionária nesse sentido, de dar outros sentidos possíveis para a vida da gente aqui.
motriz
Foi o amor que nos manteve vivas até aqui. Um amor pela vida, não só no sentido romântico, um amor pela vontade de viver. E isso tem muito a ver com a afrodiáspora. Dessa vez, eu estou chegando com um trabalho depois de sete anos sem lançar um disco. E a gente chega depois de uma temporada muito dura, muito violenta, de muitas perdas, despedidas, dor e luto. Portanto, a ideia é trazer um bálsamo para o nosso coração, um refrigério para nossa alma. Quero falar de amor para trazer essa esperança, para aliviar um pouquinho a nossa dor. Acho que se a música nos dá essa possibilidade, vamos aproveitá-la.
re-trato
Esse disco se chama Re.trato porque é um momento de refazer os combinados comigo mesma. Um novo trato. Eu estou me conectando com canções que escrevi há 15, 20 anos. Aquela menina de 20 anos que eu fui, doida para mudar o mundo, desesperada pela revolução no planeta, por uma vida mais justa para todo mundo, ou vivendo aqueles amores tórridos profundos, de rasgar a alma. Eu estou me conectando com as ideias daquela menina, mas, agora, com essa maturidade da mulher que me tornei.
ubuntu
Eu só acredito assim: eu sou porque nós somos. Sou reflexo da minha comunidade. Não sou sozinha. A ideia da inspiração vai além. Acho que não é só para composição, é para a vida. A gente é mais forte quando anda junto.
Assista ao vídeo com trechos da conversa com a cantora e compositora Ellen Oléria:
A EDIÇÃO DE JANEIRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
No mês em que acontece o Sesc Verão 2023, discutimos a relação entre as tecnologias e a prática físico-esportiva. A reportagem principal desta edição defende que usar o tempo livre para atividades que não movimentam o corpo favorece o sedentarismo, além de elevar o risco de doenças crônicas. No entanto, o texto também aponta que, quando utilizado de maneira equilibrada, o tempo em frente às telas pode motivar a prática de atividades físicas, por meio do uso de aplicativos e aparelhos que medem frequência cardíaca, gasto calórico, qualidade do sono, entre outros indicadores.
Além disso, a Revista E de janeiro/23 traz outros conteúdos: uma reportagem que percorre os caminhos de gestação de uma obra literária, desde o surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores; uma entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que conta sobre sua relação com a literatura brasileira, seu processo criativo e revela de que forma os antepassados guiam sua escrita; um depoimento com a cantora e compositora Ellen Oléria sobre música, teatro e afrofuturismo; um passeio visual por imagens que celebram o universo feminino indígena no universo das artes visuais; um perfil da médica Nise da Silveira (1905-1999), pioneira na humanização do atendimento psiquiátrico por meio da arte; um encontro com o jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, que fala sobre popularização de podcasts e luta antirracista no Brasil; um roteiro nostálgico pelas miudezas arquitetônicas de São Paulo, em celebração aos 469 anos da capital paulista; um conto inédito da escritora Natalia Timerman; e dois artigos que discutem a relação entre envelhecimento e inclusão digital.
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