Leia a edição de maio/23 da Revista E na íntegra
Espelho de uma comunidade, a escola reflete tanto as aspirações quanto as contradições que acompanham a vida de crianças e jovens do lado de fora de instituições de ensino. Casos recentes de violência física e moral a professores e alunos seriam, portanto, reflexos do autoritarismo, da intolerância e de radicalismos em diferentes esferas da sociedade brasileira. Diante disso, de que forma seria possível restabelecer a relação intrínseca entre educação e democracia para a mudança desse cenário?
Para o pedagogo e filósofo Fernando José de Almeida, precisamos fazer alguns questionamentos. “Qual o papel social da escola quando ela exerce seu caráter democrático por meio dos currículos escolares, dos equipamentos arquitetônicos, de seus profissionais formadores e de sua força de rede? É possível explicitá-lo e, a partir da clareza de seu conceito, formar pessoas e instituições para a vivência da democracia? À escola e ao seu aparato pedagógico e científico cabem, sim, propor a vivência crítica dos valores da democracia, durante toda a trajetória educativa das crianças e jovens”, defende.
Dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cientista social Daniel Cara acredita que “se as injustiças e as desigualdades permanecerem como as principais marcas da educação nacional, diferenciando as condições de acesso e permanência dos estudantes por local de moradia, renda, questões étnico-raciais, de identidade de gênero e de orientação sexual, entre outras, jamais as políticas de educação conseguirão colaborar com o fortalecimento da democracia”.
A fim de trazer novos contornos para a relação entre educação e democracia, os professores Fernando José de Almeida e Daniel Cara levantam reflexões e propostas neste Em Pauta.
Por Fernando José de Almeida
O domingo de 8 de janeiro de 2023 foi uma experiência viva, transmitida online, dos descalabros e ensandecimentos de pessoas em guerra contra a sua própria nação. Os símbolos de vida, de coesão social, de identidades nacionais foram terroristicamente vandalizados por um grupo cego de ódio contra moinhos de suas imaginações, cheias de conteúdos conspiratórios.
Repetição da pantomima vista em Washington (EUA), faz dois anos, abriu-nos, a todos os brasileiros, a reprodução da história como farsa. Nada se viu neste episódio que lembrasse um movimento das primaveras do início deste século, que também em nada resultaram a não ser em esvaziamento de uma luta sem causa, sem projetos, construída a partir da virtualidade das redes e de suas bolhas.
O cerne da questão em todos eles foi trazer para nós a percepção e o questionamento de um antiquíssimo sonho humano: a democracia! Presenciamos um ato de antidemocracia. Os mais de 2.500 anos de sua evolução, redesenhos, experiências, contramarchas e derrocadas fizeram-nos, no domingo fatídico, lançar num vórtice de dúvidas o sentido da democracia. O que de fato ela é e como é vista por todos? Há um consenso mínimo sobre o tal “governo do povo”? Eu julgava que sim.
A ideia da minha geração dos anos de 1940-1950, pós-Segunda Guerra, era de que a democracia fosse um bem implícito, nascido no dia do parto de cada um de nós, depois de termos visto os horrores das guerras. Nasceria conosco o conceito espontâneo, puro, intuitivo e mandatário da democracia como valor. NÃO É. Trata-se de um conceito dos mais sofisticados e fenecíveis da história da cultura, ocidental e oriental. Norte ou Sul. Tem três mil anos de construção, desconstrução, desaparecimentos seculares e retornos sangrentos e promissores – exatamente pela sua perspectiva de fazer desaparecer a desigualdade. Não só inexiste o consenso sobre a vida democrática, como, por causa de sua rejeição, vemos combates cruentos de guerras contínuas. Longa é sua história.
Uma das sementes da democracia vai nascer na tragédia grega, nos séculos 6 e 5, com a criação dos coros do teatro. Eles comentavam, com voz popular e crítica, os desarranjos das nobrezas, generais e deuses gregos sempre metidos em crimes – parricídio, fratricídio, matricídios sem fim. O povo – na forma de coro e de pessoas simples, sem o charme dos atores representantes das classes belas e ricas e poderosos reis – vinha à cena para ter voz e trazer a sua visão. A sanguinolência devia acabar nesse ambiente das tramas sórdidas do poder, recomendavam os coros, a partir de seu olhar de povo.
O conceito de democracia é complexo e volátil, historicamente. Suas práticas, que se desenvolveram inicialmente no cristianismo perseguido no Império Romano, vão desaparecer poucos séculos depois em nome das alianças propostas para a propagação do império e da fé. Tal aliança vai atribuir o poder do Rei à sagração direta pela vontade divina – mediatizada pelas Igrejas. A democracia fica, assim, na Europa, sepultada durante séculos. Sua reconceituação reaparecerá treze séculos mais tarde.
Só Maquiavel (1469-1527) vai, no início do Renascimento, quebrar tal lógica da democracia divina. Sua obra descreve os esquemas de poder, tais como eles concretamente se constituem. Destaca de forma especial como se operam os mecanismos de poder, nascidos do desejo dos poderosos de gerar pressão e controle, diferentes daqueles do povo que quer liberdade e segurança. Maquiavel vai partir do princípio de que a sociedade não é um grupo buscando o bem comum, dentro de um agrupamento coeso e indiviso. A sociedade é um enorme e diverso conglomerado que tem interesses antagônicos: opressão e riqueza versus liberdade e segurança.
Entre a Idade Média, o Renascimento e a configuração atual das formas de produção das riquezas e a distribuição do poder político, muitas coisas mudaram. As modalidades de democracia explodem em múltiplas faces no mundo e desaparecem com certa rapidez. Simplificadamente, destacam-se as erupções democráticas na Inglaterra, em 1640, as independências dos Estados Unidos, a Revolução Francesa de 1789, a Revolução Russa de 1917, e a proclamação dos Direitos Humanos, em 1948. Momentos ímpares que desapareceram rapidamente.
Até aqui veem-se as construções do conceito como algo frágil, objeto de disputas constantes, e sujeitas a histórias, territórios, condições econômicas e culturais distintas e lábeis. Portanto, a família, os partidos, os sindicatos, as religiões, os meios de comunicação, todos disputam o domínio e a imposição de seus conceitos de democracia, enquanto liberdade, igualdade e justiça. Tal disputa é feita também por valores impostos pela economia.
E é aqui que entra a educação formal. Que papel social tem a escola quando exerce seu caráter democrático por meio dos currículos escolares, dos equipamentos arquitetônicos, de seus profissionais formadores e de sua força de rede? É possível explicitá-lo e, a partir da clareza de seu conceito, formar pessoas e instituições para a vivência da democracia? À escola e ao seu aparato pedagógico e científico cabem, sim, propor a vivência crítica dos valores da democracia, durante toda a trajetória educativa das crianças e jovens. Tal afirmação se ancora em dois pressupostos.
Um: outras instituições, como a família, os sindicatos, as religiões e as redes de comunicação, têm compromisso lateral com tal formação. O compromisso diuturno e orgânico com o tema está presente na escola formal e em seu projeto cidadão, científico e cognitivo de longa duração.
Dois: o tempo escolar lhe atribui condições de vivência da complexa rede de formação de valores. Pensando na formação obrigatória no Brasil, ela tem em média 15 mil horas de presença na escola ou em suas atividades, contando os 15 anos de escolarização. Somam-se aí a educação infantil e os ensinos fundamental e médio.
Não se trata de excluir outras instituições, elas são corresponsáveis. A educação tem papel hegemônico inerente às finalidades da aprendizagem escolar, exercida pelos seus conhecimentos interdisciplinares, pela intencionalidade de formação de valores para a justiça, a equidade, a fraternidade, a cultura da paz e a ética. Não se trata de criar uma disciplina “democracia”, mas de promover metodologias ativas e democraticamente participantes para o próprio processo da construção do conhecimento. Professores, alunos e a comunidade, aí inserida.
As vivências democráticas possíveis durante os 15 anos da educação básica (sem contar a educação superior) são amplas e fundamentais. Saber ouvir, aguardar seu momento de fala, argumentar logicamente, ser cumpridor de seus compromissos com o grupo e com a comunidade, produzir análises sociais de macroproblemas históricos, aprender a trabalhar e a respeitar os grupos, ter sensibilidade para com o bem comum, valorizar o diferente. A sabedoria ética, estética e política são componentes da formação do cidadão. O nosso compromisso é não apenas construir um projeto de vida com cada aluno, mas construir um projeto de sociedade com as novas gerações.
Fernando José de Almeida é pedagogo, filósofo e doutor em tecnologias na educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É docente no Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP.
Por Daniel Cara
Anísio Teixeira (1900-1971), um dos maiores defensores da educação pública brasileira, afirmou em 1936: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”. Estamos há quase 87 anos dessa afirmação e, infelizmente, ela ainda não se tornou realidade. O que é preciso para mudar a (nossa) história?
A educação é um direito humano estabelecido pelo artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Segundo o texto, todos os seres humanos têm direito à educação e ela deve ser gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A educação elementar deve ser obrigatória e a educação técnico-profissional deve ser acessível a todas e todos, bem como a educação superior.
Segundo a Declaração de 1948, a educação deve ser orientada ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ela deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todos os povos, grupos raciais e religiosos, colaborando com a construção e manutenção da paz.
No Brasil, é o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 que determina a tripla missão da educação nacional. Em diálogo com a Declaração de 1948, nossa Carta Magna estabelece que a educação deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Já no artigo 206, são afirmados os princípios da educação nacional. Vou destacar apenas três dos nove princípios, por serem tão descumpridos quanto fundamentais para o estabelecimento das escolas públicas como máquinas da democracia: a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, a “garantia de padrão de qualidade” e a “gestão democrática do ensino público”. Por que elegi esses três princípios?
Em primeiro lugar, se as injustiças e as desigualdades permanecerem como as principais marcas da educação nacional, diferenciando as condições de acesso e permanência dos estudantes por local de moradia, renda, questões étnico-raciais, de identidade de gênero e de orientação sexual, entre outras, jamais as políticas de educação conseguirão colaborar com o fortalecimento da democracia. Pelo contrário, se tudo permanecer como está, a educação acaba por reproduzir injustiças e desigualdades.
É necessário dar um exemplo: quase sempre, um estudante de uma escola localizada no centro urbano de uma cidade brasileira tem melhores condições de acesso e permanência à escola do que um aluno da periferia desse mesmo município. Uma estudante de Porto Alegre (RS) está mais próxima de ter consagrado seu direito à educação do que um aluno com deficiência de uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, especialmente se ele viver no campo. E poderíamos investir páginas e mais páginas deste texto descrevendo essa revoltante realidade. O fato é que sob injustiças e desigualdades no acesso e permanência à escola, não há como a educação colaborar com o fortalecimento da democracia.
Nesse sentido, o mesmo fenômeno de injustiças e desigualdades no acesso e permanência à escola também se reproduz no princípio da garantia do padrão de qualidade. Para ficar apenas no exemplo mais clássico: alunos de escolas privadas têm acesso a um padrão de qualidade muito superior ao observado em milhares de escolas públicas pelo país afora.
Diante do problema, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação conseguiu mobilizar parlamentares para incluir o Custo Aluno-Qualidade na Constituição Federal de 1988. O CAQ é um mecanismo desenvolvido pela Campanha, que determina que toda escola pública deve ter profissionais da educação recebendo um piso salarial, uma política de carreira, e todas as escolas públicas devem ter número adequado de alunos por turma, biblioteca, sala de leitura, brinquedoteca para as crianças, laboratórios de ciências, quadra poliesportiva coberta, internet banda larga, merenda nutritiva, transporte escolar digno e acesso à água potável e saneamento básico. Contudo, o CAQ – como tudo o que há de melhor na Constituição Federal de 1988 – ainda não saiu do papel. Nesse sentido, é preciso lutar.
Um caminho fecundo para o Brasil enfrentar todas as formas de injustiças e desigualdades na educação é tornar efetivo um princípio fundamental: a gestão democrática da escola pública. A gestão democrática permite que todos os envolvidos na escola tenham voz e possam contribuir para a construção de um ambiente inclusivo, justo, participativo, transparente e comprometido com a qualidade do ensino.
Fundamental para garantir uma educação de qualidade, e parte essencial do sucesso educacional de países como Finlândia – para citar apenas um exemplo –, segundo pesquisas, a gestão democrática tem uma outra vantagem: ela tende a determinar um processo promissor de (re)discussão curricular, melhoria das condições para o ensino-aprendizagem na escola e, normalmente, leva a comunidade escolar ao debate sobre as injustiças e desigualdades existentes no bairro, na cidade, no estado e no país – em processo inverso ao que ocorre com a interação via redes sociais.
Obviamente, a gestão democrática das escolas é um caminho promissor, mas não suficiente para mudar o Brasil. Inclusive, qualquer resultado educacional leva tempo para ser percebido. Portugal, para citar apenas um caso, só colhe agora os frutos da prioridade dada à educação em 1974, no contexto da Revolução dos Cravos. Contudo, uma coisa é certa: a prática democrática nas escolas, por meio de grêmios estudantis, associações de pais e mestres e de conselhos escolares, compõe uma trilha pedagógica cidadã com potencial de formar uma geração de jovens (e também de adultos) conscientes dos valores da democracia e aptos a agir democraticamente.
Ou seja, a própria participação democrática pode colaborar com a democratização do Brasil. E não há melhor lugar para o exercício e a conscientização da democracia do que a escola pública.
Daniel Cara é cientista social e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Faculdade de Educação da USP e Dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
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