Leia a edição de julho/23 da Revista E na íntegra
No Brasil, a inserção – assim como a ascensão – no mercado de trabalho é desigual, dependendo de uma série de fatores, como escolaridade, classe, cor e gênero. A população negra, por exemplo, tem menor representatividade e reconhecimento, como bons cargos e salários. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apresentados no ano passado, e que integram a segunda edição do levantamento Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, demonstram essa realidade. Em 2021, mais da metade dos trabalhadores brasileiros (53,8%) era formada por pretos e pardos, mas os dois grupos, somados, ocupavam apenas 29,5% dos cargos gerenciais. E, entre aqueles que estão empregados, os brancos recebem um salário, aproximadamente, 74% maior que o de trabalhadores pretos, e 68% acima da quantia recebida por autodeclarados pardos.
Segundo Emerson Ferreira Rocha, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), a desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro pode ser explicada por dois fatores. “Os atributos e recursos adquiridos, dentre os quais podemos destacar a escolaridade; e o tratamento diferencial que as pessoas recebem, em função da raça, quando competem por posições no mercado de trabalho”. Sendo assim, “combater essas formas de discriminação, que existem e persistem à margem do que é publicamente declarado, assim como das normas e dos procedimentos formais, é um dos nossos grandes desafios para o futuro”, defende Rocha.
Para além do quadro de desigualdade racial, Luiz Augusto Campos, que é professor de sociologia e ciência política na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), destaca a necessidade de uma leitura ainda mais ampla, uma vez que o mercado de trabalho pode ser considerado o principal espaço de reprodução das desigualdades, e elas dificilmente se reduzirão sem um compromisso das esferas pública e privada. “Em todo o mundo, políticas de ação afirmativa baseadas em critérios de classe, raça, gênero etc. são adotadas por empresas, algo ainda raro no Brasil”, ressalta Campos.
Neste Em Pauta, Rocha e Campos analisam as múltiplas faces das desigualdades no mercado de trabalho brasileiro e apontam caminhos para entendermos a complexa rede de desafios lançados à sociedade.
Por Emerson Ferreira Rocha
Quando discutimos discriminação racial, a grande preocupação é sobre como o racismo afeta a vida das pessoas em sociedade. Um dos efeitos do racismo é a desigualdade, entre negros e brancos, na renda obtida pelo trabalho. Trabalhadores negros, nos mais diferentes segmentos ocupacionais, de trabalhadores manuais a especialistas, auferem renda menor se comparados aos trabalhadores brancos. Simplificando bastante as coisas, mas sem perder o que há de essencial sobre a desigualdade racial no mercado de trabalho, podemos dizer que essa desigualdade é explicada por dois conjuntos de fatores: a) atributos e recursos adquiridos, dentre os quais podemos destacar a escolaridade; e b) o tratamento diferencial que as pessoas recebem, em função da raça, quando competem por posições no mercado de trabalho. A discriminação racial tem a ver com esses dois fatores, não apenas com o último.
Primeiramente, quando falamos sobre atributos e recursos adquiridos, é preciso entender que as pessoas não os adquirem estando isoladas de seu contexto social. Fiquemos com o exemplo da educação formal. Se uma pessoa vai ou não concluir o ensino médio, se ela vai ou não ingressar em um curso superior, e qual curso superior ela vai fazer, depende muito dos recursos (materiais e imateriais) disponíveis ou não em sua família, da localidade em que essa pessoa nasce e cresce, de diferenças de tratamento em função do gênero, da cor da pele etc. Sabemos, por exemplo, que crianças negras recebem menos atenção, menos cuidado afetivo e são menos estimuladas no ambiente escolar. Características mais pessoais, como resiliência e talento, cumprem, sim, um papel relevante. Mas a influência do contexto social é inescapável. Não é tarefa simples estipular o tamanho dessa influência.
Há muitos estudos quantitativos sobre o tema, mas as métricas utilizadas variam de acordo com o tipo de informação e com a metodologia adotada em cada pesquisa. Podemos, contudo, dizer que fatores relacionados ao contexto social, como aqueles arrolados anteriormente, explicam pelo menos 50% das diferenças educacionais entre os brasileiros. Um dos resultados disso é que pessoas negras têm, em média, menores níveis de escolaridade que pessoas brancas. Especialmente, pessoas negras concluem com menor frequência um curso superior e, quando concluem, tendem a estar concentradas em cursos com menor prestígio econômico. Condições iniciais menos vantajosas e discriminação no próprio ambiente escolar contribuem para esse cenário.
A política de cotas no ensino superior tem colaborado para reverter esse quadro? A verdade é que existem ainda pouquíssimas pesquisas sobre a inserção dos beneficiários das cotas raciais no mercado de trabalho. No entanto, sabemos de algumas coisas sobre os beneficiários das cotas raciais no ensino superior. Talvez a mais importante delas seja que o desempenho acadêmico dos cotistas não está abaixo do desempenho dos outros estudantes. Com as cotas raciais, portanto, mais pessoas negras estão ingressando no mercado de trabalho em condições de competirem por melhores posições.
A política de cotas, então, oferece o caminho definitivo para promover a equidade racial no mercado de trabalho? De fato, essa política combate as desvantagens educacionais historicamente experimentadas pela população negra. Mas, o que dizer sobre o tratamento diferencial que as pessoas recebem, no mercado de trabalho, em função da sua cor? Quando comparadas a pessoas brancas com o mesmo nível de capital humano, pessoas negras têm menor chance de ocupar boas posições e, quando as ocupam, tendem a auferir menor renda. Isso vale, especialmente, para postos que envolvem o exercício de autoridade, como funções de gerência ou comando. Diante disso, os pesquisadores chegam a uma conclusão relativamente simples: se, com os mesmos atributos relevantes para o exercício de suas funções, pessoas negras são, em média, menos premiadas, a discriminação racial afeta a competição no mercado de trabalho. Há outras evidências que corroboram essa interpretação.
A esse propósito, realizamos entre 2019 e 2020, uma pesquisa [Percepções Raciais no Distrito Federal, coordenada pelos professores Joaze Bernardino Costa, Bruna Cristina J. Pereira e Emerson Ferreira Rocha, da Universidade de Brasília] para saber se pessoas negras são tratadas com menos respeito em diferentes ambientes sociais, dentre os quais o local de trabalho. Não fizemos isso perguntando se elas sofrem racismo, ou se veem outras pessoas sofrerem. Os brasileiros, de maneira geral, elaboram respostas ambíguas, ou mesmo contraditórias, a esse tipo de questão.
Isso tem a ver com um conjunto de ideias confusas, mas bastante difundidas, sobre o racismo. Talvez a principal delas seja a de que, embora partilhemos certos estereótipos sobre as pessoas negras, que se expressam, por exemplo, em piadas e coisas do gênero, não existe, de fato, racismo no Brasil, onde as pessoas negras seriam até estereotipadas, mas não discriminadas. Outra ideia, semelhante, é a de que não existe racismo porque negros e brancos convivem nos mais diversos espaços, inclusive constituindo famílias. Essa ideia assume que a única forma de racismo existente é a separação total entre negros e brancos, o que não se sustenta diante dos fatos. O racismo pode existir e existe nas diversas interações entre as pessoas. O fato de pessoas negras e brancas interagirem entre si não significa que o racismo não interfira nessas interações. Por serem muito difundidas essas ideias, a maior parte das pessoas tem dificuldade para identificar situações de discriminação racial. Mesmo que as vivenciem. Mesmo que as vejam.
O que fizemos, na nossa pesquisa, foi perguntar às pessoas sobre várias situações de desrespeito no ambiente de trabalho. Elas, então, respondiam o quão frequentemente se viram em cada tipo de situação ao longo de suas vidas. A partir dessas respostas, construímos uma escala refletindo o quanto as pessoas sofreram desrespeito no ambiente de trabalho. Num segundo momento, verificamos se a pontuação das pessoas nessa escala de desrespeito estaria associada à cor delas. Deste modo, notamos que pessoas negras, em média, sofrem mais desrespeito no ambiente de trabalho do que pessoas brancas. Isso se verifica mesmo quando comparamos negros e brancos com o mesmo nível de escolaridade. Em outras palavras, se as pessoas negras sofrem, em média, mais desrespeito, isso não parece se dever ao fato de estarem menos preparadas para exercerem suas funções.
O resultado se mantém, ainda, quando comparamos negros e brancos cujos pais têm a mesma escolaridade. Dessa vez, o que verificamos é que a extração social também não parece ser o que explica o maior desrespeito com as pessoas negras. Em resumo, é evidente que existem diferenças de tratamento no mercado de trabalho em função da cor das pessoas, mesmo essas diferenças sendo formalmente vedadas. É evidente também que essas diferenças se dão em desvantagem das pessoas negras. Combater essas formas de discriminação que persistem à margem do que é publicamente declarado, assim como das normas e dos procedimentos formais, é um dos nossos grandes desafios.
Emerson Ferreira Rocha é professor no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, coordenador pedagógico da licenciatura em ciências sociais e presidente do Núcleo Docente Estruturante do Departamento de Sociologia, todos esses da Universidade de Brasília (UnB).
Por Luiz Augusto Campos
Já é lugar comum repetir que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. No entanto, esse clichê nos faz perder de vista a forma multifacetada de nossas desigualdades e, sobretudo, a complexidade das políticas desenhadas para mitigá-las. Noutros termos, o Brasil não apenas é um país profundamente desigual, mas também aquele onde mais desigualdades se interseccionam de modos complexos e, portanto, onde políticas redistributivas demandam desenhos igualmente intrincados.
Por isso, não faz sentido questionar se a desigualdade no Brasil é de classe, raça, gênero, religião etc. A rigor, todas essas dimensões se interseccionam. Sabemos que a classe social de origem é o fator preponderante na determinação das chances de vida de um indivíduo, isto é, a posição social da família onde nascemos vai pesar sobremaneira nas nossas chances de ascender ou decair socialmente, mesmo nos casos em que indivíduos específicos têm acesso a uma maior instrução, por exemplo. No entanto, a origem econômica não explica todos os obstáculos que uma pessoa enfrentará no decorrer de sua trajetória.
Desde o fim da década de 1970, diferentes estudos vêm mostrando que pessoas pretas e pardas tendem a ter metade das chances de melhorar de vida do que pessoas brancas. Isto é, mesmo se compararmos dois indivíduos de uma mesma classe de origem, os pretos e pardos têm, em média, 50% das chances de ascender dos brancos. Pesquisas mais recentes, porém, sugerem que essas diferenças aumentam quanto mais subimos na pirâmide social. Ao que parece, não há uma grande diferença nas chances de melhorar de vida entre brancos e negros das classes baixas. Porém, essa diferença cresce justamente no topo da pirâmide: uma pessoa negra de classe média enfrenta muito mais dificuldade de migrar para a classe alta do que um branco de classe média.
Todas essas disparidades são atravessadas por desigualdades de gênero. É curioso notar que mulheres possuem hoje em dia um nível educacional médio superior ao dos homens. No entanto, elas costumam receber piores salários para desempenhar funções similares. Isso não quer dizer apenas que empresas discriminam as mulheres deliberadamente, mas também que elas estão alocadas em atividades subalternas dentro de uma mesma profissão. Dentro da medicina, por exemplo, homens são maioria nas especialidades mais rentáveis, como neurologia, enquanto mulheres se concentram na clínica geral.
Essas desigualdades se associam de um modo tão imbricado, que é redutor separá-las em parágrafos distintos. Mulheres negras, por exemplo, não apenas sofrem com a soma das desigualdades de raça e gênero: os dados indicam que elas são submetidas a desigualdades e discriminações particulares. Embora o acesso a espaços de poder político tenha aumentado para negros e mulheres nas últimas décadas, as mulheres negras permanecem mais sub-representadas que esses dois grupos. Elas também permanecem sub-representadas na atividade profissional com direitos mais precários: a de trabalhadoras domésticas.
Não existe uma forma simples de lidar com todas essas desigualdades juntas. Daí a importância da ideia de ação afirmativa, entendida aqui como um modo de fazer política pública que foque em mais de uma dimensão das desigualdades ao mesmo tempo. As políticas públicas redistributivas mais bem-sucedidas no Brasil são justamente aquelas mais sensíveis ao caráter multifacetado de nossas desigualdades.
O recém-recriado Programa Bolsa Família, por exemplo, é visto como uma política de redução da pobreza, mas ele considera também as desigualdades de gênero e geração ao privilegiar as mulheres como titulares do benefício e as crianças como objetos de grande parte das condicionalidades (frequência escolar, vacinação etc.). As políticas de cotas no ensino superior também possuem um desenho multifacetado. Elas são, sobretudo, políticas de classe, já que seu público prioritário são estudantes de escola pública e baixa renda. Só dentro dessas cotas econômicas é que se aplicam cotas raciais, algo nem sempre visível no debate público.
Ainda assim, as desigualdades brasileiras dificilmente se reduzirão sem um compromisso dos entes privados. Em todo o mundo, políticas de ação afirmativa baseadas em critérios de classe, raça, gênero etc. são adotadas por empresas, algo ainda raro no Brasil. As tão debatidas ações afirmativas nos Estados Unidos, por exemplo, são adotadas basicamente no mercado de trabalho privado. São as multinacionais, aliás, as suas maiores defensoras judiciais. Na África do Sul, o governo adota ações afirmativas, mas também premia empresas que tenham medidas de equidade para vários grupos.
Por isso tudo, é preciso fazer com que a iniciativa privada entenda a centralidade das ações afirmativas em vigor, não apenas no setor público, mas sobretudo no mercado de trabalho mais amplo. Isso envolve não apenas um diagnóstico de como desigualdades raciais, de classe e de gênero se manifestam numa empresa específica, mas na incorporação de critérios afirmativos nas seleções e contratações realizadas. O mercado de trabalho é o principal espaço de reprodução das desigualdades brasileiras e, ao mesmo tempo, relativamente resistente a medidas desse tipo.
Políticas afirmativas se aplicam hoje a diferentes espaços, dentre os quais o ensino superior, as eleições, as contratações do serviço público. No entanto, poucas medidas impactam o mercado de trabalho, em parte porque suas dinâmicas escapam do controle governamental estrito, em parte pelo alto grau de informalidade que impera em seu interior. Sem medidas de redução dessas desigualdades no mercado de trabalho, nossas desigualdades não apenas permanecerão imensas, como também seguirão atingindo de modo desigual grupos distintos.
Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa). É colunista do Nexo Jornal e autor de publicações como Raça e eleições no Brasil (Zouk, 2020) e Ação afirmativa: conceito, debates e história (EDUERJ, 2008).
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