Por Lucineia Rosa dos Santos*
INTRODUÇÃO
Relato o seguinte caso: Uma jovem à procura de um emprego, ao ler o classificado de um jornal, havia um anúncio para a vaga de empregada “doméstica”. A jovem, então, através de contato telefônico ligou para o número indicado no jornal, a fim de apresentar-se como candidata ao emprego, quando então foi indagada pela pessoa responsável na seleção da vaga, sobre a cor de sua pele, a jovem de pronto respondeu ser negra, sendo, então, informada, que não preenchia os requisitos para o emprego, vez que a preferência era uma pessoa branca. O caso foi denunciado à Delegacia de Investigações de Crimes Raciais, onde foi instaurado Inquérito Policial. Apesar das provas irrefutáveis, o Ministério Público do Estado de São Paulo requereu o arquivamento do inquérito sob o argumento que o caso não configurava crime de racismo. Sendo o Brasil, Estado-parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, assume o compromisso de respeitar os direitos humanos nela reconhecidos. Assim, o Brasil foi denunciado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que ao final do processo, reconheceu a responsabilidade do Estado Brasileiro por não punir crime de racismo sofrido pela jovem. Relato, brevemente o caso Simone André Diniz, que mês de março de 1997, sofreu crime de racismo no Brasil.
A citação ao caso, é a introdução para que haja o conhecimento do que são os direitos humanos, o alcance destes direitos a toda pessoa humana, sem quaisquer distinções, e consequentemente sua eficácia.
BREVE RELATO DA CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
Os direitos humanos, tem a sua história constituída sob dois aspectos, a construção e reconstrução histórica. A construção histórica advém desde a antiguidade, no período denominado axial ou eixo histórico da humanidade, que se dá entre os séculos VIII e II a. C, no qual “…o ser humano passa a ser considerado, pela primeira vez na história, em sua igualdade essencial como ser dotado de liberdade e razão não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais”. (Comparato. Fábio Konder, 2004. pp.8-11), com o surgimento pautado nos fundamentos teológicos, como os princípios da Justiça, da Paz, da Fraternidade, Solidariedade Universal, da Paz Interior e da propriedade, que tem por fim o bem-comum da pessoa humana, denominado como valor humanitário.
Neste mesmo período, Séculos VI e V a. C, tem-se as primeiras correntes filosóficas que passam a estudar a natureza humana, como os filósofos Platão, Sócrates e Aristóteles, sob o ponto de vista do ser humano no centro do universo, mediante os valores da ética, moral e dignidade, formando assim o valor humanista.
A idade média é marcada pelo período do absolutismo, no qual os reis possuem o poder total sobre seus súditos, sendo também, um período marcado por muitos conflitos e perseguições religiosas, mas que ao final no século XVII no ano de 1215, desponta um dos marcos históricos para os direitos humanos, que vem a ser a Carta Magna Inglesa, a qual limita o poder em relação aos nobres ingleses, com aspirações à liberdade, serve como fundamento histórico para o ensejo aos direitos das liberdades, apesar de justificar que o referido documento inglês fora constituído como meio de garantias para alguns privilegiados, quais sejam, os nobres, mas ainda as lutas persistem, com o fim para o alcance das liberdades em igualdade para todos.
Analisando ainda a construção histórica dos Direitos Humanos, como breve relato, costumo dizer que na história, há um movimento que de alguma forma alterou o comportamento da pessoa humana, e tal movimento surge no século XV na Europa, propriamente na Itália e ganha proporções em diversas regiões da Europa, é o movimento renascentista, o qual teve como objetivo a renovação nas artes, na ciência, cultura, mas também em todo o comportamento da pessoa humana ao surgir com os valores do individualismo, racionalismo e hedonismo, valores estes que situam o homem no centro do universo, ou seja, uma concepção pautada no antropocentrismo, sendo a partir deste, que na minha concepção têm-se mais tarde o movimento do iluminismo.
Antes de tecer breve comentários ao movimento do iluminismo, outros três documentos ingleses surgidos na idade moderna, são fundamentais para a construção dos direitos humanos, em especial os direitos das liberdades, que se constituem através da Petition of Rights – 1628, o qual disciplina a garantia do due process of law ou devido processo legal; Havendo prisões arbitrárias ou violação ao devido processo legal, no ano de 1679, foi instituído Habeas Corpus Amendment Act ; Bill of Rights – 1688, efetiva o surgimento da monarquia constitucional na Inglaterra, submetendo-a a soberania popular.
Retomando assim, o movimento do iluminismo como para as liberdades dá-se no ano de 1776, nos Estados Unidos da América com a Declaração do Bom Povo de Virgínia, a qual dispõe que todos os “homens nascem igualmente livres”, esta Declaração foi instituída com o propósito de proclamar os direitos naturais e positivado a todo ser humano, estão disciplinados os direitos das liberdades, da propriedade as garantias civis e políticas através do exercício de voto na escolha de seus governantes. Na França no ano de 1789, fora proclamada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento inspirado da Revolução Francesa, cujos valores são as garantias individuais e coletivas do cidadão francês. As inspirações das Declarações dos EUA e a Declaração Francesa, não atingiram a toda pessoa humana, continuando então as lutas para o alcance dos direitos de igualdade.
Discorrendo ainda sobre a construção histórica dos direitos humanos, ao final da Primeira Guerra Mundial as nações envolvidas nos conflitos no ano de 1919, realizaram uma reunião na França e assinaram na denominada Conferência de Paris o Tratado de Versalhes, o qual dentre várias previsões disciplinou o acordo de paz, segurança entre as nações; institui um órgão de proteção aos direitos sociais, qual seja, a Organização Internacional do Trabalho. Por força do Tratado de Versalhes, cria a Liga ou Sociedade das Nações Unidas vigentes desde o ano de 1920, a qual não foi suficiente para impedir a segunda guerra mundial e todas as atrocidades cometidas, enfraquecida a referida organização, houve no ano de 1945, a reunião das Nações, constituindo uma Organização com maior fortalecimento, com o propósito de instituir a Paz, Segurança e a Cooperação entre as Nações.
Por conseguinte, na da data de 26 de junho de 1945, é promulgada a Carta das Nações Unidas, descrevendo em seu preâmbulo que:
[…] reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
A proteção dos direitos da pessoa humana classifica-se num período anterior e posterior a segunda guerra mundial, motivo pelo qual, é atribuído ao período pós-guerra a reconstrução história dos Direitos Humanos.
SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Aprovada pela Assembleia das Nações Unidas na data de 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos disciplina os direitos das liberdades, como também o direito de igualdade, ao dispor sobre os direitos sociais e coletivos.
Conforme aduz, Noberto Bobbio (1992 – p.27), a Declaração Universal, “representa um fato novo na história, à medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais de conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra”.
É o primeiro instrumento a consagrar por escrito os direitos das liberdades e os direitos sociais, também denominados direitos à igualdade, como fundamento dos “direitos consagrados ao longo da história, em regiões e épocas distintas”, (TRINDADE, Antonio Cançado, 2003 – p.33) conforme a construção histórica descrita no presente ensaio, ensejando assim, um instrumento de internacionalização com as características da universalização e indivisibilidade dos direitos humanos, ou seja, o compromisso de todos os Estados em respeitar os direitos nela consagrados. A Declaração Universal é constituída em sua primeira parte pelos Direitos das Liberdades, disciplinando em seu artigo I, que: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em seus direitos”, ou ainda, conforme prevê o artigo VII: “todos são iguais perante a Lei sem distinção, tem direito a proteção; ou ainda, a previsão do artigo XIV, que aduz: Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países (refúgio). Há também, a segunda parte da Declaração, no qual consta os direitos à igualdade, acesso à educação, o direito ao trabalho e remuneração digna, e demais direitos previstos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um instrumento unilateral, cuja natureza é declaratória no qual os Estados assumem o compromisso de cumprir sua disciplina. Sendo assim, no ano de 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou dois importantes Instrumentos, que possuem a mesma disciplina da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas com natureza bilateral, pois vem a ser um tratado, que depende da assinatura dos Estados.
Dessa forma, foram aprovados o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, disciplinando os direitos das liberdades consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, disciplinando os direitos sociais conforme a segunda parte da Declaração Universal. Os mencionados tratados diferenciam da Declaração Universal, à medida que dependem do reconhecimento, ou seja, da adoção dos Estados membros da ONU, apesar dos Pactos possuírem natureza recomendatória, foram aprovados com a criação de um Comitê Internacional de Direitos de Humanos, que possui como atribuições a eficácia dos direitos humanos pelos Estados-partes que adotarem os Pactos.
Há também, a força jurídica vinculante dos Pactos, à medida que foram aprovados em ambos um Protocolo Adicional Facultativo que atribui a sistemática de petição individual, é o direito do indivíduo no caso Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos denunciar o Estado-parte diante de violações dos Direitos das Liberdades consagrados no mencionado Pacto Internacional, ou ainda o direito de denúncia nos casos de violações de direitos sociais pelo Estado-parte, tem-se a constituição de uma estrutura jurídica consagrada pelo sistema global de direitos humanos, qual seja a Organização das Nações Unidas, que sendo Estado-parte dos Protocolos Adicionais de sistemática de denúncias, e esgotados todos os meios internos das instâncias do Poder Judiciário para a defesa dos direitos da vítima e a decisão interna contraria os princípios descritos nos Pactos Internacionais ora mencionados, ensejará o direito da vítima denunciar o Estado-parte dando início a um processo internacional de direitos humanos. Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consagram a Carta Internacional dos Direitos Humanos.
Com o intuito de consagrar regionalmente os direitos humanos, foram sendo instituídos os sistemas regionais surgem com o propósito de assegurar aos indivíduos de certas regiões maior proteção aos direitos que consagram a dignidade da pessoa humana, não que o Sistema Global não produza tais direitos, mas em razão de que um número muito grande de países, muitas vezes, impossibilitavam o alcance total dos instrumentos de proteção, principalmente no tocante ao monitoramento de tais direitos quanto ao cumprimento pelo Estado das garantias fundamentais aos indivíduos e à coletividade. Assim, foram constituídos três sistemas regionais: o sistema regional Europeu de direitos humanos no ano de 1950; Sistema Interamericano de Direitos, constituído através da Convenção Americana de Direitos Humanos no ano de 1969 e o Sistema Regional Africano de Direitos Humanos no ano de 1981, com o objetivo de acordos regionais com vistas à paz e segurança internacionais para da promoção e proteção dos direitos humanos.
Os sistema regionais de proteção dos direitos humanos diferentemente do sistema global à medida que os Estado reconhecem, ou seja, torna-se Estado-parte do sistema regional a que pertence, constitui para si a responsabilidade civil, a obrigatoriedade no cumprimento dos direitos humanos previstos no sistema regional, isto porque, tem-se a existência da estrutura normativa para a eficácia dos direitos humanos, que vem a ser a sistemática de denúncia que será processada perante aos órgãos denominados Comissão e Corte. No sistema regional europeu atualmente o órgão competente para dirimir denúncias de violações de direitos humanos, é a Comissão Europeia de Direitos Humanos, no sistema regional Interamericana a Comissão Interamericana de Direitos (CIDH) e a Corte Interamericana, no Sistema Africano da mesma forma a Comissão e Corte Africana, órgãos estes responsáveis em processar o Estado diante das denúncias recebidas por vítimas, desde que, o Estado seja parte do sistema regional e que tenham esgotados internamente toda possibilidade da defesa dos direitos da vítima.
Dessa forma, com a constituição da estrutura normativa de proteção dos direitos humanos, seja no sistema global (ONU), ou nos sistemas regionais, tem-se a eficácia para a proteção dos direitos humanos.
CONCLUSÃO
Ao descrever na introdução do presente ensaio o caso (Simone André Diniz) que ficou muito conhecido pela denúncia contra o Estado Brasileiro na violação dos direitos humanos, trata-se da eficácia destes direitos, no qual os Estados não apenas se comprometem, mas há um aparato de instrumentos internacionais que promovem ainda que minimamente a eficácia dos direitos humanos.
Por outro lado, a Declaração Universal e demais instrumentos de proteção dos direitos humanos, prescrevem que todos os serem humanos nascem livres e iguais em seus direitos, que todos são iguais perante a lei, tais dispositivos encontram-se previstos na Constituição Federal de cada país, está previsto no artigo 5º caput da Constituição do Brasil, assim, temos o que denominamos de igualdade formal. Porém, materialmente nem todos são iguais, em virtude de várias circunstâncias históricas e discriminatórias, muitos indivíduos ou grupos não possuem um trato igualitário materialmente, sendo excluídos em diversas sociedades de várias Nações em razão das condições econômicas, sociais, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério sócio-econômico) no qual caberá ao Estado-parte implementar ações de Políticas Públicas com o objetivo do combate à desigualdade social, ou ainda, critério de igualdade material pelo reconhecimento de identidade (orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios), cujo alcance da igualdade dá-se através de Políticas de Ações Afirmativas com a finalidade do alcance à igualdade material.
Sendo assim, os Direitos Humanos não são apenas documentos declarados, mas além de sua aplicabilidade descritas nos instrumentos internacionais, há também, a sua eficácia à medida que se exige dos Estados-parte seu cumprimento sob pena de uma responsabilidade civil, ou seja, numa sistemática de denúncia.
REFERÊNCIAS
http://cidh.org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Editora – Tradução: Carlos Nelson Coutinho – Editora – Editora Campos Ltda/RJ 1992.
TRINTADE, Antonio Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003
*Lucineia Rosa dos Santos é doutora em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora na Pontifícia Universidade Católica nas áreas de Direitos Humanos, Direitos Humanos dos Refugiados, Direito de Igualdade de Gênero e Raça e no Direito da Criança e do Adolescente. Advogada nas áreas de Direito do Trabalho, Previdenciário, Consumidor e Terceiro Setor.
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