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A cidade que antes se esvaziava no Carnaval, enviando foliões para outros cantos do país, hoje acolhe mais de 15 milhões de brincantes nas ruas. Mas, para que a maior festa popular brasileira conseguisse alcançar tamanha proporção na capital paulista, foi preciso a reivindicação de representantes de blocos carnavalescos para a implementação de uma política pública de cultura pela Prefeitura de São Paulo. De 2013 para cá, uma profusão de manifestações irradiou por todas as regiões da cidade. Neste ano, entre 3 e 18/2, 579 blocos desfilam durante oito dias de folia, provando que existe Carnaval em SP e ele é um dos maiores do Brasil.
“A formulação de uma política pública baseada no direito à folia surpreendeu os paulistanos e todo o país: de 42 blocos em 2013, para 384 em 2016, e 644 em 2020. A ação afirmativa do poder público foi fundamental para essa explosão, mas ela só ocorreu porque havia na cidade uma efervescência cultural e urbana que necessitava apenas de condições institucionais e de infraestrutura para que as ruas fossem tomadas pelos foliões”, pondera Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Arquiteto e urbanista, Bonduki, que também já foi secretário municipal de cultura (2015-2016), constata: “O Carnaval de rua de São Paulo foi o ponto culminante de uma política cultural e urbana que transformou as ruas em arenas culturais. Nelas se combinam conceitos como o direito à cidade, à cidadania cultural, à liberdade de expressão e comportamental e à ocupação democrática do espaço público”.
Essa arena cultural torna-se, também, palco de manifestações pelo reconhecimento de diferentes grupos sociais. Um exemplo é o Bloco Afro Ilú Obá De Min, criado em 2004 pelas percussionistas Elisabeth Belisário (Beth Beli), Girlei Miranda e Adriana Aragão. “Com tantos blocos nas ruas, também se percebe que grupos identitários começam a criar suas narrativas, sejam elas no âmbito político ou no resgate da cultura. A instituição Ilú Obá De Min Educação, Cultura e Arte Negra leva mais de 60 mil pessoas para as ruas do Centro de São Paulo, trazendo toda uma narrativa voltada a homenagear as histórias e as lutas das mulheres pretas, com uma bateria de 460 mulheres pretas, com todo requinte e estratégia ancestral”, ressalta Elisabeth Belisário, presidenta, regente e diretora musical do bloco.
Espelho da diversidade cultural, mas também da desigualdade social que habita a cidade, o Carnaval de rua de São Paulo ainda é fruto de expressões culturais responsáveis pela sua identidade? De que maneira o crescimento exponencial dessa festa popular pode prejudicar seu caráter público, gratuito e democrático? Nos dois textos publicados neste Em Pauta, Bonduki e Belisário tecem suas reflexões.
Por Nabil Bonduki
A tecnologia de gestão que propiciou a implementação e crescimento do Carnaval de rua em São Paulo foi formulada a partir do diálogo entre os blocos carnavalescos, organizados no Manifesto Carnavalesco, e a gestão Fernando Haddad (2013-2016).
Esse debate gerou um modelo de Carnaval como uma festa pública, gratuita e democrática, sem qualquer cerceamento ao acesso da população. Nada de cercas, cordas ou abadás. Na regulamentação, ficava sob a responsabilidade da prefeitura, coordenado pela Secretaria de Cultura, o planejamento espacial e temporal dos desfiles, e o apoio logístico e de infraestrutura, como banheiros, organização do tráfego de veículos, segurança e limpeza.
Nessa concepção, os protagonistas da festa são os blocos que emergem da sociedade, com a criatividade e diversidade características das expressões culturais de São Paulo. Foram eles que geraram as condições para o crescimento do Carnaval de rua.
A formulação de uma política pública baseada no direito à folia surpreendeu os paulistanos e todo o país: de 42 blocos em 2013, para 384 em 2016, e 644 em 2020. A ação afirmativa do poder público foi fundamental para essa explosão, mas ela só ocorreu porque havia na cidade uma efervescência cultural e urbana que necessitava apenas de condições institucionais e de infraestrutura para que as ruas fossem tomadas pelos foliões.
O Carnaval de rua de São Paulo foi o ponto culminante de uma política cultural e urbana que transformou as ruas em arenas culturais. Nelas se combinam conceitos como o direito à cidade, à cidadania cultural, à liberdade de expressão e comportamental e à ocupação democrática do espaço público.
Com esses ingredientes, o Carnaval de rua tornou-se a mais importante manifestação cultural no espaço público [da cidade de São Paulo] e um dos maiores do Brasil. Ele se articula com uma das diretrizes do Plano Diretor Estratégico de 2014, baseado no conceito de que as ruas devem ser para as pessoas, e não apenas dos automóveis. Dessa forma, tornou-se a expressão mais forte da relação entre cidade e cultura, transformando São Paulo numa arena multicultural e vibrante.
Reverteu-se completamente o esvaziamento da cidade, que se dava até 2013 durante o Carnaval. O injusto rótulo de “túmulo do samba” virou coisa do passado: em 2020, São Paulo tornou-se o principal destino carnavalesco do país, com enorme movimento econômico e comercial, estimado em R$ 2,3 bilhões, rede hoteleira lotada, entre outros benefícios.
O Carnaval de rua aumentou a autoestima da cidade. Os paulistanos não precisaram mais viajar ao Rio, Salvador (BA) ou Recife (PE) para curtir a festa. Alegres e fantasiados, eles puderam passar a se divertir, a custo zero, nas ruas da cidade, que se tornaram um lugar de festa, sociabilidade, namoro e liberdade.
A força dessa festa impediu que a alternância partidária na gestão municipal alterasse inteiramente a regulamentação do Carnaval de rua, que se integrou à vida da cidade. Mas, a partir de 2017, a gestão municipal tentou, inicialmente, confinar o Carnaval em algumas avenidas e tornou a cidade mais permeável à lógica do negócio cultural e ao controle repressivo, afetando em vários aspectos a vitoriosa política do Carnaval de rua.
O crescimento do número de blocos e a mudança da gestão municipal geraram novos interesses econômicos, como a disputa por patrocínios e marketing. Surgiram questões de fundo, que precisam ser enfrentadas para que o potencial do Carnaval não gere efeitos contraproducentes. Esses interesses econômicos são compatíveis com a cidadania cultural?
A concepção original baseava-se na ideia de que as manifestações culturais e os desfiles nascessem dos coletivos, comunidades e grupos culturais, organizados de baixo para cima. É totalmente diferente da lógica dos negócios vinculados ao Carnaval.
O Carnaval paulistano tem atraído produtores culturais, blocos de outros estados e artistas famosos. Isso gera um crescente interesse da mídia e de empresas preocupadas com o marketing e a exposição de suas marcas, que ganham visibilidade não só entre os milhões de foliões, como nas imagens espetaculares geradas nos desfiles.
A presença de estrelas aumenta o público e o movimento econômico da cidade. Em tese, poderia ser positivo, mas, por outro lado, acaba por transformar, parcialmente, o Carnaval de rua em evento, mais do que em expressão de cidadania cultural, princípio que originou a política que orientou sua regulamentação.
Por outro lado, quanto mais o Carnaval cresce, maiores se tornam os conflitos com a vida cotidiana da cidade, afetando os que não participam da festa. Problemas presentes desde os primeiros anos, como a restrição à circulação de veículos, ruído, violência e transtornos de diferentes naturezas, vêm se agravando, gerando estresse urbano e um questionamento: o Carnaval de rua deve parar de crescer?
Antes, a Secretaria Municipal de Cultura era a responsável pela organização da festa e enfrentava esses conflitos com diálogo e pactuação, sob o ponto de vista cultural e dentro dos princípios do direito à cidade e do direito à folia. Mas, a partir de 2018, a gestão do Carnaval de rua passou a ser responsabilidade da Secretaria das Subprefeituras, que não tem a sensibilidade necessária para dialogar com a cidadania cultural. Passou-se a privilegiar a lógica comercial, de eventos e da ordem urbana, deixando em segundo plano a perspectiva dos blocos oriundos de coletivos e grupos com base territorial.
Nos últimos anos, a prefeitura vem elevando as exigências e os requisitos burocráticos dos blocos, limitando os horários de desfiles e restringindo a utilização de lugares tradicionalmente ocupados, afetando o caráter democrático da proposta original. Em alguns casos, esses conflitos têm gerado inadmissível violência policial, que é o oposto do clima festivo que deve vigorar durante o Carnaval, gerando questionamentos dos blocos raiz, que começam a contestar a própria regulamentação e o papel do poder público na organização do Carnaval.
Para enfrentar esses dilemas e desafios, é necessário embasamento teórico e uma avaliação crítica da regulamentação do Carnaval de rua e de sua implementação, na perspectiva de pactuar novas alternativas. Para tanto, é essencial um novo esforço de diálogo com os atores que protagonizam o Carnaval.
O debate do Projeto de Lei 298/2016, de minha autoria, que tramita no legislativo, pode ser o espaço para isso. Ele torna o Carnaval de rua uma política de Estado, impondo limites para os patrocínios e interesses comerciais, e definindo as responsabilidades do poder público e dos blocos.
Por Elisabeth Belisário
Em São Paulo, o Carnaval de rua de 2023 registrou 670 blocos inscritos, atraindo um público de 15 milhões de pessoas, segundo dados da prefeitura da cidade. A expressiva participação popular, o número crescente de blocos e a retomada das ruas como espaço de convivência comum e democrática recuperam e assimilam a essência do Carnaval. A rua torna-se palco de compartilhamento entre grupos, em suas diversas manifestações artísticas, e torna-se espaço cultural aberto. Lugar de festejar e de extravasar a alegria do povo brasileiro.
A grande metrópole nacional recuperou e assimilou a essência do Carnaval com os blocos e a retomada das ruas. O reconhecimento da grandiosidade dos blocos de nossa cidade tem início por volta de 2013, na administração do ex-prefeito Fernando Haddad [2013-2016], pela implementação do direito à folia, com a tomada de Juca Ferreira e Guilherme Varella [respectivamente, secretário municipal de cultura e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo], que estabeleceram diálogo com os blocos mais antigos, possibilitando a organização popular com apoio institucional e implementação de uma política pública de cultura.
É relevante considerar a tradição do Carnaval e sua importância para a sociedade paulistana na construção da memória coletiva, na preservação e valorização do legado histórico, no incentivo à cultura e na mobilização e organização popular. Um evento dessa magnitude movimenta a economia do país e cumpre função social, gerando emprego e renda.
O Carnaval de rua é a festa mais popular do país e vem reunindo milhões de pessoas, seja como produtoras ou espectadoras do espetáculo. Os blocos que vêm surgindo a cada ano não têm a ideia de somente ocupar as ruas, mas também, através das suas saídas e cortejos, incorporar em seus títulos e mensagens o clamor pelo direito à cidade, tornando pública a reivindicação pela ocupação do espaço urbano. É a possibilidade de exigir seus direitos e fazer um Carnaval mais político e crítico, analisando as questões sociais e apresentando, também, mensagens históricas, como é o caso do Bloco Ilú Obá de Min (Mãos Femininas Que Tocam Para o Rei Xangô), fundado em 2004.
Nosso compromisso é com a nossa ancestralidade, por isso apresentamos, a cada Carnaval, nomes e histórias de mulheres que contribuíram para a riqueza da cultura afro-brasileira, suas lutas por espaço, contra o fim do racismo e das desigualdades. Entre elas: Raquel Trindade [1936-2018]; Elza Soares [1930-2022]; Carolina Maria de Jesus [1914-1977]; Lia de Itamaracá; Nega Duda e Sueli Carneiro.
Para nós não tem mais volta: ou São Paulo reconhece esse trabalho realizado por 460 mulheres empunhando seus tambores por justiça e reconhecimento das tradições pretas, que são as verdadeiras raízes dessa grande festa popular, ou cairemos no que hoje são os grandes carnavais mercadológicos de grandes capitais – como Rio de Janeiro, Salvador e tantas outras.
Carnaval é a festa do povo, não da elite. Sua essência está em reunir pessoas que querem, de alguma forma, extravasar e criar suas narrativas, seja por questões de gênero, questões políticas ou, até mesmo, para exaltar a diversidade que se encontra nessa grande metrópole chamada São Paulo.
Existe uma parte dos paulistanos que não gosta mesmo dessa grande festa popular. Eles passam a ser a minoria. Os que não gostam com certeza vão aproveitar para ir aos seus retiros espirituais, penso eu, porque se não for assim, terão que entrar na folia, uma vez que toda São Paulo estará em festa nos dias de Carnaval. Hoje todos ganham com a festa carnavalesca da cidade, principalmente quem consegue uma renda mais robusta nessa época do ano — como as tias costureiras das periferias e tantos profissionais de outras partes da cidade.
O setor econômico cresce. Bom para os hotéis, bares, restaurantes, girando em peso a economia local. Mas os blocos que fomentam arte e cultura ainda são pouco reconhecidos e estruturados. A lógica do Carnaval não pode ser vista apenas pelo olhar da economia, é preciso haver respeito pelo povo, principalmente, pelo povo preto, que deu a maior contribuição nesse processo. Creio ter sido uma das maiores colaborações de gêneros musicais, como o samba, o samba-enredo, o maracatu e os afoxés.
Com tantos blocos nas ruas, também percebe-se que grupos identitários começam a criar suas narrativas, sejam elas no âmbito político ou no resgate da cultura. A instituição Ilú Obá De Min Educação, Cultura e Arte Negra leva mais de 60 mil pessoas para as ruas do Centro de São Paulo, trazendo toda uma narrativa voltada a homenagear as histórias e as lutas das mulheres pretas, com uma bateria de 460 mulheres pretas, com todo requinte e estratégia ancestral para dizer que, na história de 500 anos desse país e 135 anos pós-escravidão, ainda há muito a se fazer numa cidade racista, sexista e homofóbica.
De punhos fechados, dizemos que nós não nos preparamos para um bloco de Carnaval. A gente se prepara para a luta. Porque são mulheres tocando tambores para acordar quem insiste em dormir. Precisamos, ainda, avançar em vários âmbitos sociais para sermos dignos de tantas riquezas e diversidades desta cidade. Precisamos que os órgãos de segurança tomem essa ação para eles; precisamos dialogar e dar continuidade ao que Juca Ferreira iniciou lá em 2013. Precisamos dialogar o tempo todo, porque São Paulo tem gente de todos os cantos do mundo. Por que não organizar melhor um Carnaval que já é grandioso, para todos comungarem da mesma felicidade nesses dias de folia?
Temos desafios, mas desafios valorosos. E o enfrentamento desses desafios tem que partir, primeiramente, do poder público a partir de muitas conversas com cidadãos e cidadãs que produzem cultura. No Bloco Ilú Obá De Min, trazemos muito forte a questão racial, a questão social e a questão da territorialização como princípios para que a nossa saída, na sexta-feira de Carnaval, seja para recontar as histórias de apagamento da cultura preta e também para reverenciar quem nos antecede. Ou seja, também é um cortejo que trata de contar a trajetória das nossas mulheres negras que fizeram e fazem história nesse país.
Bora, meu povo! O Carnaval está próximo. Temos muito ainda que organizar, negociar e estruturar para fazer um bom combate e sermos vitoriosas nas nossas propostas para São Paulo e pelo bem comum. Vamos colocar o bloco na rua. Axé.
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