Do livro para o palco

02/01/2025

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Textos literários ganham adaptações teatrais que transpõem para as artes cênicas as diversas histórias, estruturas narrativas e personagens  

Por Luna D’Alama 

Leia a edição de JANEIRO/25 da Revista E na íntegra

Publicada em livro em 1933, por Oswald de Andrade (1890-1954), a peça O Rei da Vela só foi encenada, pela primeira vez, três décadas depois, quando José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) decidiu resgatar o texto modernista e adaptá-lo para os palcos do Teatro Oficina. Foi quando o público pôde ver, de fato, a estreia dessa obra dramatúrgica, um manifesto satírico sobre as relações de poder entre o Brasil e as nações do Norte global. Ao longo de sua carreira, Zé Celso levou para os palcos diversos autores, dos clássicos aos contemporâneos, como Eurípedes, William Shakespeare, Anton Tchekhov, Máximo Gorki, Bertolt Brecht e Tennessee Williams. Adaptou, inclusive, Os Sertões, livro–reportagem escrito por Euclides da Cunha (1866-1909) sobre a Guerra de Canudos, na Bahia. 

As intersecções entre literatura e teatro perfazem a biografia de outros diretores brasileiros. Fundador do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação, Antunes Filho (1929-2019) trabalhou com textos de Nelson Rodrigues, Shakespeare, Mário de Andrade e tragédias gregas de Eurípedes e Sófocles. Já Bia Lessa transformou a obra-prima Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1908-1967), em exposição, peça e filme – este último, intitulado O Diabo na Rua no Meio do Redemunho (2024). Na cena atual, destaca-se, ainda, o diretor Gabriel Villela e suas narrativas criadas a partir dos universos de Shakespeare, Luigi Pirandello, Albert Camus, Samuel Beckett, Arthur Azevedo, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna e Chico Buarque. 

Uma das mais recentes transmutações de palavras impressas em diálogos e cenas teatrais é Torto Arado: O Musical, que estreou em Salvador (BA) e esteve em cartaz no Sesc 14 Bis, em São Paulo (SP), entre novembro e dezembro de 2024. Com dramaturgia de Aldri Anunciação, Fábio Espírito Santo e Elísio Lopes Jr. – que também assina a direção artística –, o espetáculo transforma as 264 páginas do premiado livro homônimo de Itamar Vieira Jr. em duas horas e quarenta minutos de interpretações vigorosas e canções inéditas (compostas por Jarbas Bittencourt), com 16 artistas e seis instrumentistas ao vivo. Além disso, a divindade Santa Rita Pescadeira, que narra uma das partes do livro, cede espaço, na peça, para uma terceira protagonista: Donana, avó das irmãs Bibiana e Belonísia. 

“Daria para contar essa história de diversas formas, a partir de muitos personagens e perspectivas. Elegeu-se, então, Donana, que nega aos encantados seu papel de curadora e traz consigo uma maldição. Assim, a peça se torna ainda mais feminina, com três mulheres fortes em primeiro plano”, destaca o dramaturgo Aldri Anunciação, que também é baiano (como a maioria dos músicos e atores, a exemplo de Larissa Luz, uma das protagonistas) e analisou o livro a fundo. A própria decisão de contar Torto Arado (2019) por meio de um musical pareceu ousada, à primeira vista, para Itamar Vieira Jr., que não participou da concepção da peça, mas a aprovou. “Se para que Bibiana e Belonísia existissem eu precisei imaginá-las com palavras, os grandes atores desse espetáculo se servem de seus corpos, suas mentes e subjetividades para interpretá-los, pulsando de vida”, resume o autor no livreto do espetáculo.   

Anunciação, que já escreveu Namíbia, Não!, adaptado por ele para os cinemas (filme Medida Provisória, 2022), explica que muitos temas presentes em Torto Arado – que se passa em uma fazenda no sertão da Chapada Diamantina (BA) – foram mantidos em cena, como ancestralidade, fé, disputa por terras, questões raciais e identitárias, desigualdades sociais, patriarcado rural, trabalho análogo à escravidão, insubordinação, resistência e redenção. “O palco é elevado, como uma rampa ou um jirau, porque tudo está sob risco: da perda de sustentação e equilíbrio à perda da terra, do chão. Além disso, os músicos não ficam num fosso, como em muitos musicais, porque fazem parte do ritual, estão todos na mesma roda, no jarê”. Em 2024, Anunciação ainda adaptou e dirigiu Pequeno Manual Antirracista (2019), de Djamila Ribeiro. 

Segundo o diretor soteropolitano Elísio Lopes Jr., a adaptação de Torto Arado mantém a fidelidade da narrativa e a essência dos(as) personagens, traduzindo em diálogos as falas em primeira pessoa do original. “É um musical essencialmente brasileiro, em sua construção estética e gênese dramatúrgica. Tem o nosso sotaque, e mostra a Bahia para além do litoral dos escritores Jorge Amado (1912-2001) e João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), com sua chapada, matas, sincretismo religioso, rios e cachoeiras”, descreve. Além disso, a obra conecta ritmos como forró, tambores e percussões da cultura jeje, além de arranjos de Angola. E utiliza canções tradicionalmente entoadas em giras da umbanda e do candomblé. “Com tantas mortes e tragédias presentes no livro, o musical ajuda a tornar a narrativa cênica mais palatável. As canções contribuem para as viradas, as passagens de tempo, a expressão de sentimentos. E a última delas diz: ‘vamos fazer um final depois do final’. O público sai com esperança, com a possibilidade de refazer e reconstruir caminhos”, conclui Lopes Jr. 

AVESSO DO TEXTO  

Lançado em 2020, O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório – ganhador do Jabuti em 2021 –, foi adaptado para os palcos pelo Coletivo Ocutá, e fez sua estreia no Sesc Avenida Paulista, em 2023. A peça mantém as temáticas do livro, como a relação entre pai e filho, o racismo estrutural, o luto, o sucateamento da educação pública no Brasil e a violência policial, mas vai além: introduz o funk, a dança e a interatividade com o público durante uma “aula”. “Há muitos atravessamentos pessoais, exercícios autobiográficos feitos a partir das nossas próprias vivências e memórias. Meu pai era professor da rede municipal no Rio de Janeiro (RJ), dava aulas de química, biologia, geologia. Cresci nesse ambiente de sala de aula, vendo-o chegar tarde da noite em casa. E ele faleceu em 2010, quando eu ainda era adolescente. Por tudo isso, o livro me trouxe um universo muito íntimo. Senti vontade de falar as palavras do Jeferson em voz alta”, conta o ator, codramaturgo e assistente de direção Vitor Britto. 

O artista decidiu, então, contatar o escritor, que lhe respondeu e aceitou conhecer o coletivo. Hoje, Tenório já viu o espetáculo mais de 20 vezes. De acordo com a diretora Beatriz Barros, seu desejo inicial era organizar uma linha cronológica de todos(as) os(as) personagens do livro. “Perguntei ao Jeferson se ele tinha isso, mas ele escreve em fluxos. Não reinventamos nada, apesar de ser outra linguagem. Realizar uma adaptação literária é, basicamente, fazer escolhas. Escutamos a obra, que tem muito para dar, montamos na sequência dos capítulos, e os atores trouxeram materialidades de suas próprias narrativas e experiências. Em cena, exploramos a música, a luz, os corpos e a plasticidade”, elenca Barros.  

Depois de apresentar o espetáculo mais de 150 vezes para cerca de 25 mil pessoas em dois anos de circulação, a diretora Beatriz Barros acrescenta que o livro de Tenório é muito imagético e sedutor para o teatro, com seu jogo narrativo que alterna a história entre a primeira e a segunda pessoas do singular e do plural e a terceira do singular. “Esse embaralhamento de perspectivas é bastante provocador. Portanto, não é uma obra que se fecha, mas que dispõe de inúmeras possibilidades de criação. O livro enquanto materialidade, objeto, também permeia toda a dramaturgia do espetáculo, como algo que permanece”, finaliza. 

DE CLARICE A JOÃO UBALDO   

Na visão do diretor e encenador teatral André Paes Leme, as artes cênicas têm um grande coração, capaz de acolher as mais diversas estruturas narrativas ou literárias, ainda que a obra original não tenha sido feita com o propósito de ser encenada. “Todo tipo de material textual pode servir ao teatro, ou se integrar a ele. A leitura se materializa na imaginação, enquanto o teatro é a arte do efêmero, da presença e do presente. Precisa de um tempo, espaço e corpo para acontecer”, explica Leme, que adaptou A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector (1920-1977), e Viva o Povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), para os palcos. O primeiro fez temporada no Sesc Santana e o segundo, no Sesc 14 Bis, em 2023. 

Leme começou adaptando contos de Mário de Andrade (1893-1945), e não parou mais. “O livro Viva o Povo Brasileiro tem quase 700 páginas, que organizei em quatro espetáculos. Montei apenas o primeiro, com três horas de duração, mas ainda assim não abarca nem um quarto da obra. Tentei achar um fio condutor – neste caso, a trilha de Chico César, que também compôs para A Hora da Estrela. O livro é musical, tem a sonoridade de João Ubaldo. Mas, se toda tradução é uma traição, o que se dirá de uma transposição”, compara o diretor. Segundo Leme, é preciso abrir mão de certas coisas e priorizar eixos temáticos. Em Viva o Povo Brasileiro, por exemplo, ele trabalha questões como a religiosidade, a ancestralidade e o feminino. Tanto esse musical quanto A Hora da Estrela têm banda ao vivo, que se integra à cena. “Textos consagrados retornam de tempos em tempos porque se mantêm atuais e necessários. Viva o Povo Brasileiro aponta para a nossa identidade afro-brasileira e indígena, que precisa ser reparada. Já o livro de Clarice aborda as pessoas socialmente invisíveis, injustiçadas. É o abandono completo do ser humano”, enfatiza.   

CLÁSSICO ATUALIZADO  

E não são apenas textos em prosa que rendem bons espetáculos teatrais. Escrito para ser encenado, o livro de poesias Também guardamos pedras aqui (2021), pelo qual a autora Luiza Romão ganhou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano e Melhor Livro de Poesia, em 2022, trata da Guerra de Troia em Ilíada, poema épico de Homero (928 a.C.-898 a.C) a partir de diferentes personagens, sobretudo as femininas (como Helena, Andrômaca, Cassandra, Pentesileia, Hécuba etc). “Lancei o livro junto com uma videoperformance na pandemia. Então, fui para os palcos. Venho do slam, do sarau, da poesia falada, em que a poesia é indissociável da performance artística. Tudo que compõe os poemas (a forma, o ritmo, o grito ou o sussurro, o ritmo lento ou rápido) é levado também para a cena. Desde o início, eu já pensava em como traduzir o suporte do papel para o palco”, conta Romão.  

Também guardamos pedras aqui já foi traduzido para vários idiomas, virou audiolivro e conquistou prêmios em outros países, como o 10º Festival Internacional de Videopoesia, em 2022, em Atenas. Segundo o diretor da peça, DJ e MC Eugênio Lima, personagens que em Homero são secundárias, sem voz, ressurgem potentes, como uma possibilidade de reconstruir a memória coletiva. Para chegar a essa transcriação, Luiza Romão fez uma pesquisa de campo de 20 dias na Grécia, visitando museus de arqueologia, sítios históricos e ruínas. “A literatura ocidental começou com uma guerra. E não bastava matar, era preciso dilacerar os corpos, despojá-los das armas, jogá-los aos animais para serem comidos. É um ideal masculino viril e violento, e foi esse projeto colonial que chegou às Américas. E esse massacre sistemático continua acontecendo na contemporaneidade, com tecnologias mais modernas. Ser Troia, hoje em dia, é resistência”, destaca a autora.  

A peça Torto Arado: O Musical, baseada na obra de Itamar Vieira Jr., estreou em São Paulo no Sesc 14 Bis, onde esteve em cartaz de novembro a dezembro de 2024. 

Caio Lirio 

A atriz Laila Garin no musical A Hora da Estrela, baseado na obra homônima de Clarice Lispector. 

Daniel Barboza 

Do clássico ao contemporâneo 

Programação cênica do Sesc São Paulo aposta na diversidade de estéticas, poéticas, corpos, pesquisas e formatos 

A linguagem teatral se manifesta nos palcos das unidades do Sesc São Paulo, com um olhar curatorial voltado para a diversidade de narrativas, formatos, estéticas, poéticas e corpos. Textos clássicos e consagrados, assim como dramaturgias contemporâneas, estão presentes na programação ao longo do ano. Da mesma forma, diretores e companhias com décadas de trajetória convivem com produções de jovens artistas, recém-saídos das escolas de teatro. 

O Sesc também foca na formação e na renovação do público, com a oferta de espetáculos para todas as idades. A partir de um viés educativo, a programação é composta, ainda, por ações formativas, que ajudam na reflexão sobre as obras e sobre o fazer artístico para todas as pessoas que manifestem o desejo de aprofundar seus conhecimentos sobre as artes cênicas.  

Segundo Adriana Macedo, que integra a Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, o teatro tem o poder de desenvolver a imaginação e a sensibilidade, de ler o mundo pelos olhos da subjetividade e de colaborar para uma reflexão crítica das questões sociais da contemporaneidade. “Levamos a linguagem teatral para diversos espaços. Além das unidades que dispõem do palco italiano, oferecemos salas alternativas, auditórios, áreas de convivência e até praças e ruas para que os(as) artistas encontrem seus públicos e façam a magia acontecer”, ressalta. 

Confira destaques da programação: 

BOM RETIRO | Um Grito Parado No Ar 

Um ato-espetáculo musical baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), mais de cinco décadas após sua estreia. Com Teatro do Osso.  

De 17/1 a 16/2. Sextas e sábados, às 19h30. Domingos e feriados, às 18h. 

CONSOLAÇÃO | O Jardim das Cerejeiras  

Encenação do clássico texto de Anton Tchekhov (1860-1904) como foi concebido originalmente. Com Cia. da Memória. Direção, concepção e encenação de Ruy Cortez.  

De 18/1 a 2/3. Sextas e sábados, às 20h. Sábados, domingos e feriados, às 18h. 

SANTANA | Furacão  

Uma mulher marcada pela segregação racial enfrenta a fúria do furacão Katrina. Com um discurso marcado pela música popular do sul dos Estados Unidos, o espetáculo é uma cena ritual em que contemporaneidade e ancestralidade dialogam para trazer uma África em diáspora. Com Amok Teatro. 

De 17/1 a 16/2. Quinta a sábado, às 20h. Sábados, domingos e feriados, às 18h. Dia 31/1. Sexta, às 15h.  

 

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