Doutor Maravilha conversa com diferentes públicos sobre saúde sexual

29/11/2024

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Médico infectologista, Vinícius Borges criou personagem e canal nas redes sociais há dez anos para falar sobre saúde sexual com a população LGBTQIA+   

Por Maria Júlia Lledó

Leia a edição de DEZEMBRO/24 da Revista E na íntegra

Pelos rincões do país, Doutor Maravilha atravessa distintas paisagens a fim de conversar com um público de diferentes idades, classes sociais e níveis de escolaridade, sobre saúde sexual. O personagem criado em 2015 pelo médico infectologista Vinícius Borges lhe rendeu bastante popularidade, o que foi essencial para o especialista levar conhecimento sobre HIV e ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) a um público cada vez maior. Estima-se que, atualmente, um milhão de pessoas vivam com HIV no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. Desse total, 650 mil são do sexo masculino e 350 mil do sexo feminino.  

No caso da comunidade LGBTQIA+ que vive com HIV, além do preconceito, há também lacunas no atendimento médico em centros urbanos, mas, majoritariamente, em cidades interioranas. Com uma linguagem informal, e muito acolhimento e cuidado, Dr. Vinícius percebeu que pacientes com orientação sexual diferente da heteronormatividade sentiam medo de compartilhar dúvidas e queixas nos ambulatórios. A constatação surgiu quando ele fazia a residência de infectologia, em 2014. Foi o sinal que precisava para dedicar-se a esse público e derrubar fronteiras de desconhecimento e estigmatização.  

Nas redes sociais, o Doutor Maravilha entra em ação, tirando dúvidas e falando sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, profilaxia pré e pós-exposição ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente), entre outros temas. “O Brasil tem um dos melhores sistemas de saúde pública, referência no tratamento de HIV. Hoje a prevenção não é só a camisinha, um ótimo método, mas que para funcionar tem que usar. Já são 40 anos falando da camisinha e a epidemia de HIV ainda não está controlada. Então, precisamos de outras ações”, reforça. Neste Encontros, o médico infectologista fala sobre viver e conviver com HIV, políticas públicas e desafios para acesso à prevenção e pesquisa da cura.  

PERSONAGEM CATIVANTE  

A questão de “sair do armário” para minha família foi bem cedo, acho que aos 18 anos, e para mim não era nenhum tipo de empecilho falar sobre a minha própria sexualidade, então, eu me perguntei: “Se posso conversar com as pessoas abertamente desse jeito num consultório, na residência, no hospital, nos ambulatórios, por que eu não faço isso numa escala maior? Foi aí que eu criei o blog Doutor Maravilha e a página no Facebook. No começo, pensei em criar uma persona para deixá-la mais afastada da minha pessoa física, seria o Doutor Maravilha: um médico abertamente gay, com estetoscópio de arco-íris, um jaleco esvoaçante. Pensava: ele vai ser o super-herói dos LGBTs. Em 2025, vai completar dez anos que criei a página Doutor Maravilha. Se atualmente médicos falam de uma maneira mais aberta, isso tem muito a ver, também, com o advento e o crescimento das redes sociais. Eu fui um dos pioneiros, mas hoje a gente vê médicos LGBTQIA+ de várias áreas.  

DERRUBAR ESTIGMAS  

Eu sempre digo: se você não vive com HIV, você convive com HIV. Viver é para quem foi diagnosticado, conviver é para todo mundo que tem algum conhecido – e com certeza você deve ter – vivendo com HIV. Às vezes, você não sabe porque não é uma coisa que as pessoas falam, justamente, pelo estigma; mas a chance de você ter namorado alguém, de ter algum conhecido ou primo vivendo com HIV é alta. Como Doutor Maravilha, pude viajar pelo país para dar palestras e conhecer muitos grupos de jovens. Tem gente que está há 15 anos tratando e ainda não falou para a família. Ninguém sabe. E quando precisa retirar remédio no SUS, paga a alguém, porque tem medo de ficar na fila. Uma vez, nos rincões do Brasil, estava falando de prevenção e uma senhora me interrompeu: “Queria saber se a minha filha, que acabou de ser diagnosticada com isso, pode usar o mesmo talher e o mesmo vaso sanitário?”. Isso foi há mais ou menos cinco anos.  

LONGE DOS ÍDOLOS  

O peso não é só do diagnóstico de HIV, que já traz as inseguranças inerentes, mas também vem à cabeça quem perdemos em 40 anos: ídolos, como Cazuza (1958-1990) e Renato Russo (1960-1996). Há o peso, também, de notícias preconceituosas. A gente mostra que não é assim: o HIV não precisa ser uma sentença de morte e de sofrimento. Ele modifica a sua vida, mas não cerceia os seus sonhos. Você pode seguir com qualidade de vida, por muito tempo, realizando seus objetivos. Mas o HIV gera, nesse começo, o medo da morte e o medo de como as pessoas vão reagir, que é a morte social, tão cruel quanto. Não basta tomar a medicação, a pessoa quer continuar inserida na sociedade e o remédio não tem esse poder. A informação existe, mas ela ainda está restrita a bolhas. No Brasil, a estimativa de 2019 era de 130 mil pessoas vivendo com HIV sem saber. Por isso, é muito importante mostrar para essas pessoas que elas não estão sozinhas, e que esses diagnósticos não são sentenças.  

O HIV não precisa ser uma sentença de morte e de sofrimento. Ele modifica a sua vida, mas não cerceia os seus sonhos.

PELA LONGEVIDADE  

É bom sempre separar: o HIV é um vírus, a exemplo do vírus da dengue, da gripe etc. Se eu me infectar hoje, vou ter HIV, mas não tenho a doença. A doença vai levar, em média, de oito a dez anos para se desenvolver – em alguns mais rapidamente, em outros, lentamente. Então, essa pessoa que é diagnosticada já no início, e que começa o tratamento – o ideal é iniciar em sete dias, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – consegue viver bem. Também é possível engravidar quando o vírus já estiver indetectável, mas a mãe não poderá amamentar. Já a pessoa com aids está um pouco mais debilitada, pode estar com tuberculose, pneumonia e infecções no cérebro. Nesses casos, a maioria tem cura. A vida sexual continua – a partir do momento em que o vírus fica indetectável e persiste indetectável, não se transmite mais o vírus por via sexual.  

JOVENS E IDOSOS  

Essa cultura de achar que todo idoso é igual ao meu pai, à minha mãe, ao meu avô… Outra questão, idosos não tiveram uma educação sexual, então muitos vieram de um mundo pré-aids, quando não tinha essa questão da utilização da camisinha, muito menos de PrEP [Profilaxia Pré-Exposição é um tratamento preventivo que combina dois medicamentos para bloquear a entrada do HIV no organismo]. Hoje a gente sabe que há um envelhecimento mais saudável, então homens e mulheres estão ativos por mais tempo. A função sexual não se extingue, ela se modifica. E se não tomar cuidado, a terceira idade pode se infectar. Já os jovens, às vezes, a gente acha que eles sabem tudo, mas o nível de informação deles ainda é baixo. Nas escolas, nem se fala, porque tem a questão política que às vezes diminui o alcance da educação sexual.  

VACINA E CURA  

O HIV é um vírus simples de RNA, mas ele se multiplica e é mutável. Ou seja, se eu vivesse com HIV, o meu vírus seria diferente do seu, porque ele tem as próprias modificações. No Estudo Mosaico [realizado em oito países da Europa e Américas, incluindo os Estados Unidos, de 2019 a 2023] tentaram englobar vários tipos de vírus mais comuns para criar uma vacina. Na metade do estudo, fizeram uma análise preliminar para ver se estava protegendo ou não. Um grupo tomava a vacina e outro tomava PrEP. Viram que o grupo de PrEP estava mais protegido que o da vacina. A dificuldade do HIV é que são vários tipos e subtipos, ou seja, não será uma vacina única que conseguirá nos proteger de todos. Além disso, esse é um vírus que tem facilidade de se esconder do sistema imunológico. Ele pode ficar escondido nos gânglios, no cérebro, nas gônadas, no fígado, onde o medicamento não consegue entrar, em reservatórios. Sobre a possibilidade de cura, nesse caminho, o pesquisador Ricardo Dias, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia como retirar esses vírus dos reservatórios para que o medicamento consiga agir. No entanto, se tiver cura ou não, a aids vai continuar existindo. Desigualdade econômica e de acesso à saúde, e a serviços básicos, matam tanto ou mais que o vírus em si.  

DEMOCRATIZAR A PREVENÇÃO  

O Brasil tem um dos melhores sistemas de saúde pública, referência no tratamento de HIV. Hoje a prevenção não é só a camisinha, um ótimo método, mas que para funcionar tem que usar. Já são 40 anos falando da camisinha e a epidemia de HIV ainda não está controlada. Então, precisamos de outras ações. A prevenção combinada é o conjunto de prevenções, a PrEP e o PEP [Profilaxia Pós-Exposição, uma medida de prevenção de urgência para ser utilizada em situação de risco à infecção pelo HIV]. São Paulo é referência por ser a cidade do país que mais oferta PrEP. Não à toa, houve uma queda de 54% dos casos nos últimos anos. Você pode fazer uma consulta online com médicos, enfermeiros, profissionais de saúde da prefeitura, recebe uma receita com QR code, depois adquire o PrEP ou PEP em uma das máquinas instaladas nas estações de transporte público. Todos os países do mundo que estão conseguindo frear a epidemia de HIV-aids, estão ofertando PrEP. Pensando em política pública, é muito mais barato prevenir do que tratar sequelas. Então, isso precisa ser cada vez mais democratizado.   

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