Doutora Brincadeira. Entrevista com Dafne Herrero, fisioterapeuta pediátrica

01/02/2022

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Dafne Herrero e seus filhos, Clara e do Jorge | Foto: acervo pessoal

Dafne Herrero é fisioterapeuta pediátrica, mãe da Clara e do Jorge e criadora do perfil Doutora Brincadeira, no Instagram. Fez especialização, mestrado, doutorado e pós doc pesquisando a criança e seus movimentos. E tudo isso teve início quando começou a trabalhar, aos 12 anos de idade, como auxiliar de sala numa escola que ficava na rua em que morava. “Foi ali que meu interesse pelas crianças surgiu. Ficava admirada com a simplicidade com que elas resolviam problemas, tanto na hora de dividir um lanche, quanto na hora de contar sobre a mudança de casa porque um familiar morreu“. Aceitação, resiliência e adaptabilidade das crianças foram os fatores que atraíram Dafne ao universo infantil.

A escolha entre Fisioterapia e Pedagogia se firmou no último ano do Ensino Médio, num dia em que, ao visitar uma faculdade, entrou num ambulatório de Fisioterapia. “Vi que tinha muita criança ali, mas nenhuma brincadeira. Quando perguntei onde elas brincavam, a resposta que tive foi que ali não era lugar de brincar. E de repente, me vi num salão enorme pensando que precisava levar brincadeira para crianças e profissionais daquele lugar“, lembra.

Recém-formada na faculdade de Fisioterapia, começou a trabalhar com crianças novamente, porém, numa perspectiva da saúde e não mais da educação. Sua especialização foi em Pediatria. No mestrado, pesquisou movimentos de crianças com até 2 anos de idade, no doutorado afunilou a pesquisa e estudou bebês de até 6 meses e no pós-doutorado a pesquisa se deu com bebês de até 2 meses de idade. Dafne foi diminuindo a faixa etária para entender a origem e os impulsos dos movimentos, para estudar de onde surgia a movimentação de bebês e o que os levava a se movimentar e aumentar o envolvimento com as pessoas.

Doutora Brincadeira
A fisioterapeuta conta que nunca tinha sonhado em se tornar uma acadêmica e que foi a curiosidade que a fez ir para a área de pesquisa. Nesse contexto, o projeto Doutora Brincadeira surgiu quando percebeu a necessidade de criar um atalho entre o conteúdo que estudava e as pessoas que atendia. “Eu quis que aquilo tudo que aprendi na academia se transformasse no arroz com feijão das pessoas, para que o acesso que eu tinha, pudesse ser aproveitado por muito mais gente”.

A escolha do nome partiu da percepção que teve a respeito da frequência que os pais e tutores fazem suas pesquisas na internet. “Brincadeira para fazer com meu filho” é uma das frases que têm mais acesso nos mecanismos de buscas virtuais e que foram intensificadas durante o período de confinamento. O “Doutora” surgiu por conta do doutorado e a “Brincadeira” para atrair esse monte de gente que acessa o ambiente virtual em busca de atividades lúdicas. “Muita gente que acessa os conteúdos que posto, conta que logo percebe que é possível desenvolver brincadeiras com criança que tem o desenvolvimento típico, com criança que tem paralisia cerebral, transtorno do espectro autista ou que está acamada“.

Maternidade: uma vivência que se torna ponte
Na minha vida, o que aconteceu de mais surreal foram as duas maternidades. Logo que Clara nasceu, tive vontade de ligar para todas as mães de filhos que eu já tinha atendido para pedir desculpas. Meus filhos foram dois atravessamentos nesse meu caminho na Fisioterapia“, conta Dafne, e destaca que a experiência de maternidade deu todo o sentido para que entendesse as famílias com mais profundidade. “Quando as mães relatam situações e até mesmo suas rotinas, hoje em dia, tenho uma escuta muito diferente, simplesmente por ter vivenciado a maternidade“, conclui.

Mães e pais sobrecarregados
Por conta da rotina desgastante e sobrecarregada, os responsáveis acabam cada vez mais recorrendo ao recurso de oferecer aparelhos celulares ou tablets aos filhos, quando estão entediados ou demandando atenção em momentos que não é possível dar. “O corpo da criança tem que ser estimulado o tempo todo para se desenvolver, no entanto, o que mais se desenvolve é o aprendizado do botão que precisa apertar para começar a musiquinha ou o desenho preferido“. Dafne pontua os prejuízos e consequências físicas e motoras pelo tempo que seria de engatinhar, se pendurar e virar cambalhota, ser substituído por um objeto eletrônico que não estimula um repertório de movimentos necessários para as diversas fases da vida.

Redes de apoio virtual
A existência de grupos temáticos nas redes sociais, por exemplo, tem uma importância enorme. São espaços para trocas de experiências de quem passou ou passa por situações parecidas. Isso diminui a sensação de solidão de cada pessoa que vive alguma situação difícil ou diferente“. Conhecer a história de outras pessoas e perceber a diversidade em relação ao jeito que cada um vai lidar com a mesma situação é uma forma de acolhimento.

Brincar é se desenvolver
A principal proposta de Dafne é incentivar os pais a adotarem brincadeiras simples no dia a dia, ainda mais no contexto de isolamento social e confinamento. “Numa atividade comum, em que uma criança pega adesivos pequenos e cola numa parede, que para ela é enorme, é necessária uma condição física. A criança tem que ter postura, os pés apoiados no chão, e a medida em que ela vai se entretendo com o que está fazendo, a mãe vai soltando seu corpinho aos poucos e ela vai criando equilíbrio“. Nessas atividades lúdicas, o esforço da criança é reduzido e a participação ampliada.

O brincar nos faz iguais
A inclusão acontece na brincadeira. Quando estamos brincando, nos colocamos em igualdade com o outro. Se está rolando uma brincadeira, eu automaticamente estou validando que tem outra pessoa que está em pé de igualdade comigo“.

Incluir a partir da necessidade de cada criança
Pedir aos pais um apontador sem depósito para uma criança que sente necessidade de se movimentar e sair com frequência da posição sentada, como geralmente fazem as que têm síndrome de down, parece um detalhe pequeno, mas é enorme. A ida até a lixeira, toda vez que tem que apontar o lápis, é uma forma de dar vazão à movimentação que o corpo dela pede. A professora também pode designar esta criança como sua ajudante para distribuir os materiais de aula aos colegas“. Pequenas mudanças no dia a dia podem fazer toda diferença na vida de crianças com deficiência.

O brincar deveria ser o termômetro em espaços escolares
Por quanto tempo a criança sustenta a brincadeira? Como é o brincar dela? Ela brinca de faz de conta? Ela fala enquanto brinca? Inventa histórias? “Muitas vezes as professoras sabem exatamente como é o caderno da primeira até a última página de todas as crianças da sala, mas não sabem quais são suas brincadeiras preferidas“.

A compreensão de mundo para a criança se dá pelo brincar e o mundo respeita a criança quando permite a brincadeira. O brincar é valorizado na infância, é permitido no Ensino Fundamental I, é organizado em atividades artísticas e esportivas no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, mas quando as aulas passam a ser dadas por meio do ambiente virtual, as primeiras disciplinas que são excluídas são Educação Física e Artes. “O brincar é visto como um tempo em que não existe nenhuma outra atividade importante. ‘É aula vaga, gente, pode brincar!’, quantas vezes já ouvimos isso? Esse momento deveria estar inserido no currículo, para que pudesse ser realmente acompanhado, observado e avaliado“. De acordo com a Academia Americana de Pediatria, o brincar é um indicador de saúde. “Portanto, se a criança não brinca, ela está doente“.

Embarcar na brincadeira
O brincar é vivenciado pela criança 24 horas por dia e as pessoas adultas escolhem se estão ou não abertas à brincadeira em todos esses momentos. “O brincar pode estar na hora do banho, fazendo bolinha de sabão ou desenhando com o dedo no box. Na hora da alimentação, com um boneco do lado para dar papinha também, de mentirinha. Durante um percurso no ônibus, contando quantos carros vermelhos tem na rua. No metrô, observando quem está de sapato branco“.

Bebês na pandemia
Na pandemia teve uma quantidade grande de bebês que ficou muito tempo deitado no bebê-conforto, por conta de seus responsáveis terem que trabalhar no formato home office. “Muitos desses bebês chegam aos 9, 10 meses sem conhecer os avós, porque ainda não foi possível o encontro. Muitos não sabem sentar, porque além do movimento ser limitado na posição deitada, não há estímulo para esticar o pescocinho para acompanhar um cachorro passando na rua, por exemplo, ou uma árvore, um caminhão, ou qualquer coisa diferente que não seja o único ambiente que ele conhece: o da própria casa“. Tudo o que os bebês precisam é de oportunidade de interação com o mundo e, nesse momento, em que não é possível passear, não só o bebê, mas toda a família está sendo privada de poder viver e acompanhar esse desenvolvimento.

Quem cuida de quem cuida?
À medida em que vamos ampliando o repertório de realidades diferentes das nossas, mais somos capazes de nos colocar no lugar do outro e ajudá-lo. Isso é empatia. Podemos oferecer uma simples conversa boba sobre uma série ou um filme à uma mãe que cuida da casa, do filho e trabalha. Cuidar de quem cuida é propôr um tempo livre e incentivar que cuidadores possam descansar, pelo menos por um período, dos assuntos que geram preocupação no dia a dia“.

Entrevista por Tatit Brandão – formada em Jornalismo, tem licenciatura em Artes Visuais e pós-graduação em Arte na Educação. Ministra oficinas e cursos nas áreas de fotografia, trabalhos manuais, escrita criativa e narrativas audiovisuais.

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