Ebó de Xùxú nasceu da disforia de imagem de uma travesti de vinte e cinco anos, que carrega consigo uma lâmina desde os treze anos e que nunca gostou de usá-la. A sua questão não é com o objeto em si,mas com o jeito que ele a machuca todas as manhãs. Sim, seu uso é pontual: são todas as manhãs. A partir dos treze anos, as noites são marcadas pelos folículos pilosos que crescem sem parar pelas suas pernas, barriga, peitos, pescoço e rosto – no espaço entre a boca, nariz, bochechas e queixo. Não refere-se também aos pelos em si e sim, sobre com o que eles representam. A pelugem é uma característica biológica dos mamíferos. Uma questão de sobrevivência, eles os mantêm quentes no inverno e protegidos do calor excessivo no verão. Para nós, os seres humanos, o pelo é a representação sistêmica da ruptura entre gêneros binários. Em homens: sinal de virilidade. Em mulheres: falta de higiene. Para além da cisgeneridade, o que são os pelos nas travestis? Seu nome é “xuxu”, o pelo grosso, áspero, o tom esverdeado que fica no queixo e que, quando não retirado, denuncia a transfobia em cada esquina. Popularmente, a travesti com xuxu à mostra é chamada de “ocó”, é ridicularizada sem dó. Ainda assim, a travesti é só um mamífero e tem pelos, lutando para se esquentar no frio e proteger-se do calor.
Ela faz seu ẹbọ todas as manhãs, não pula um dia. Quando a lâmina perde o corte, rasga a pele e vai sangrando. Tirar o xuxu é seu ẹbọ, seu despacho, sua performance. O Ebó de Xùxú, na verdade, não é só sobre os pelos, é sobre a disforia que eles podem causar e sobre a denúncia do estereótipo transfóbico que eles evidenciam. E, sabe a navalha que a acompanha desde os treze anos? A acompanham desde 1980.
Nos anos de 1980, no auge da epidemia da doença Aids – doença causada pelo vírus HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) – surgiu uma operação policial que, dentre muitas argumentações, sustentava-se por um objetivo: a finalidade de exterminar das ruas mulheres-transvestigeneres. Chamada de Operação Tarântula, os “alibãs” – uma das formas em Pajubá são chamados os policiais – prendiam, batiam e matavam as mulheres cobertas pela noite. A “gigi” – uma das formas que em Pajubá são chamadas as lâminas em assimilação uma das marcas mais famosas fabricante do objeto – era a única que as protegiam. A navalha cortava e o sangue que jorrava, afastava quem tinha medo de “pegar o doce” – gíria que refere-se a doença anteriormente citada.
“Virou um instrumento de automutilação para evitar repressões. Eu vi pessoas se cortando, que morreram em suicídio ao abrir suas gargantas e que foram largadas sem atendimento, porque se temia o vírus. É muito pesado”, citou a ativista Neon Cunha. A navalha que esteve com essas que violentamente transmutadas à ancestrais, hoje, é instrumento de outra forma de mutilação. Voltamos para 2024, à nossa protagonista em seus vinte e cinco anos, que há doze anos divide as manhãs com a navalha, que antes de escovar os dentes retira o xuxu. A sua pele rasgando aos poucos e o sangue que pinga na pia. O sangue não é mais só seu, é o sangue de suas transcestrais. Transcestralidade, é um termo disseminado pela artista Renata Carvalho, atriz e transpóloga – ressignificando o prefixo “antro” que dirigi-se a ideia literal de “homem”, trazendo visibilidade devida e necessária às que abriram caminhos e estradas para que caminhassem os nossos pés em suas memórias e para aquelas que abriram e abrem caminhos. Aqui. Agora. Transcestrais vivas. A transcestralidade que carrega-se dentro, compartilham entre as suas cicatrizes doem no mesmo lugar, os calos continuam que seguem ásperos e as lâminas que continuam cortando.
Xica Manicongo, é a primeira travesti não indígena do Brasil. Onde, na segunda metade do século XVI, foi traficada e forçadamente escravizada, trabalhou como sapateira na capital baiana. Brenda Lee, é uma referência na luta pelos direitos das pessoas com HIV/Aids, foi pioneira em sua comunidade. Na década de 1980, no auge da pandemia, a travesti abriu as portas de sua pensão, dando origem ao primeiro Centro de Acolhimento Para Travestis com HIV/Aids da América Latina. Como elas, há muitas que derramaram sangue e suor para serem continuidade. Existem, as que estrategicamente desviaram-se da morte e lutando para abrir caminhos mantém-se ao quase direito de envelhecer e podem ser consideradas transcestrais, ou melhor, melhor dizer-se: traviarcas. Como Neon Cunha, a primeira travesti a lutar na justiça e conseguir uma retificação de nome e gênero digna para sua comunidade. Neon, atualmente abriu uma Casa de Acolhimento Para Pessoas LGBTQIAP+ e possibilitou que a nossa protagonista, com um quarto de século, que faz seu ebó de xuxu toda manhã, possa viver com um pouco mais de dignidade.
“Ai, Anália, cadê a Maria da Navalha?”. Nem sempre teve esse título, antes de encantar-se usava seu nome de batismo. Hoje, a Mestra Maria Navalha, não carrega esse nome atoa. Fazendo seu ebó de todos os dias e, com a mesma navalha que tirava o xuxu, se protegia de noite e dia. Sua vida, não foi diferente da maioria das suas que andam com navalhas, viveu nas encruzilhadas, na vida da prostituição. Sobrevivendo nas esquinas, lutando pra ficar viva e sempre na sua companhia: navalha. Quando encantou-se, virou mestra de Jurema Preta, religião afro-indígena, originalizada no nordeste do Brasil. Navalha, teve a sua história eternizada na Rua da Guia, na cidade de Recife, Pernambuco. “Tinha a Rua da Guia, que era a região das prostitutas mais barra-pesada, mulheres valentes, todas cortadas de navalha […], tinha a Lolita, transexual, que morava na Rua da Guia… Brigava com três policiais, lutava capoeira e escapava de ser levada presa” (Cf. Motta, 2002). Para o Juremeiro Vênuz Capel, líder do Catimbó de Jurema Preta Mestra Maria Amélia, a Mestra Maria Navalha, sua entidade madrinha, é símbolo da transcestralidade na religião.
“Quais memórias temos de transgeneridade, nas religiosidades afro-indígenas? E como isso influencia nossas perspectivas de futuro? Quando falamos de Maria Navalha, Maria do Bigode, Lolita e Mestre Bernardo, falamos também sobre corporalidades trans sagradas que nos deixam perspectivas de futuro. Falar de transcestralidade é falar sobre possibilidade de vida e continuidade para corpos trans.”, diz Juremeiro Vênuz Capel.
Quantas entidades transcestrais não existem? Quantas travestis que após morrerem viraram Mestras de Jurema ou até mesmo Pombagiras? Transmasculinos que encantaram-se e viraram Mestres e outras entidades… falar sobre transcestralidade é falar sobre essas entidades que vivem nas encruzilhadas, que comem padê e deixam seus mistérios. Ebó de Xùxú, é uma invocação dessa transcestralidade. Um despacho nas encruzilhadas. É ẹ̀jẹ̀, o sangue, que alimenta o solo. A travesti, de vinte e cinco anos, carregando sua navalha desde os treze anos, faz seu xuxu todas as manhãs e luta pela sobrevivência diária para manter viva a memória daquelas que vieram antes. E para que seu corpo seja nesse plano uma continuidade de novas histórias realizadas.
Idealizado e escrito por: Myra Gomes
Redigido e editado por: Obìnrin Ọdẹ
Confira a programação que acontece no Sesc Pompeia:
Ebó de Xùxú – despachando meu xùxú na encruzilhada
18/10, sexta, às 20h30
Galpão
18 anos
Grátis
Ebó de Xùxú – estreia do filme e bate-papo
19/10, sábado, às 19h30
Espaço Cênico
18 anos
Grátis
Saiba mais em instagram.com/ebodexuxu
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