“Eu particularmente acho que a nossa missão tem a ver com o processo educativo permanente, independentemente de sermos ou não educadores. Essa visão da educação, da transmissão para os nossos pósteros de um legado, mesmo que não sejam diretamente nossos descendentes, um compromisso social com a futura geração, é algo que está inerente à condição do ser humano quando percebe o seu papel”
Danilo Santos de Miranda nasceu em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, onde passou a infância. Influenciado pela família, ingressou no seminário e tornou-se noviço, porém, para atuar nos campos cultural, político e social além dos muros da igreja, encerrou a vida eclesiástica. Em São Paulo, começou a trabalhar em uma agência de empregos como entrevistador. Posteriormente, ingressou no Sesc São Paulo como orientador social e com a excelência do trabalho recebeu o cargo de diretor do Serviço Social do Comércio (Sesc), posição que ocupa até hoje.
Mais 60 Para começar nossa entrevista como costumamos fazer, você poderia falar um pouco sobre sua infância, família e origens?
Danilo Eu sou um cara bem normal, no sentido de comum, com uma formação de classe média típica do interior do estado do Rio de Janeiro.
Origens
Na infância, a gente tem uma ideia de que o lugar em que a gente vive é o único lugar do mundo, você tem a sensação de que dali é que se estabelecem todas as referências possíveis, até você ter ideias e referências complementares que vão estabelecendo outras comparações, outros modos de ver o mundo. Eu nasci na cidade de Campos, que hoje se chama Campos dos Goytacazes, porque de lá para cá acrescentaram o nome da aldeia histórica de origem. É uma cidade histórica, colonial. Imaginem vocês que, naquela época, havia quatro ou cinco jornais diários, a Folha do Povo, a Folha do Comércio, A Notícia, A Cidade e o Monitor Campista, esse último do tempo do Império. É uma cidade muito ligada às coisas do passado, muito tradicional. Tinha uma Academia de Letras famosa, duas ou três rádios, era uma cidade muito poderosa. Foi a primeira cidade da América Latina a ter luz elétrica na rua. Campos tinha bonde quando raríssimas cidades no interior tinham isso. Era uma cidade rica: durante um período, quase a metade da produção de açúcar do país saía de Campos. A minha educação vem dali: muitos amigos, muita brincadeira de rua, a rua era um lugar tranquilo para se viver. Campos não tinha asfalto, mas era tudo com paralelepípedo, só nas ruas da periferia que tinha rua sem pavimento. A cidade de Campos era muito bem estruturada nesse sentido. Uma população grande, uma população negra muito grande, por causa da característica cultural do entorno, e tem algumas histórias famosas, alguns escritores que mantêm ou mantiveram esse imaginário muito aceso. O José Cândido de Carvalho, que é de Campos e foi da Academia Brasileira de Letras [ABL], é um grande escritor, aquele de O coronel e o lobisomem, que acontece na cidade de Campos; tem a história de A princesa Anastácia, uma negra escravizada que viveu no Brasil, que também foi uma história de Campos.
Curiosidades de Campos
É uma cidade de hábitos próprios, exclusivos, até mesmo em termos de linguagem, desde xingamentos até coisas corriqueiras, tipo “cinteiro” que é o mesmo que cinto, lá se fala assim. Uma linguagem misturando um pouco de Minas [Gerais], um pouco do interior do Rio de Janeiro. Na culinária, tem um doce famoso no Brasil todo, chamado “chuvisco”, feito de fio de ovos, bem grande, espécie de bola de onde sai um rabinho, que você põe em pilhas. Um doce feito de ovo e açúcar que tem um ponto exato, uma maneira de fazer que poucas pessoas conhecem. Tem também o tronco, um bolo parecido com um tronco de árvore. Tem a indústria do açúcar, fortíssima em Campos. Por isso o doce, por isso o melado. Você botava o melado da cana-de-açúcar no prato, aquele negócio gosmento, tipo mel, botava farinha, era a sobremesa. Campos era terra da goiaba também. Os campistas eram conhecidos pela denominação popular de “papa-goiaba” por causa disso e havia muita goiabada. Uma cidade com a cultura do açúcar – e, naturalmente, muito problema de dente.
Avós
Meu avô materno era do interior de São Paulo, farmacêutico, e ganhou uma importância grande na cidade, a principal farmácia da cidade era dele, Drogaria São Salvador. Minha avó era muito ligada às tradições e festas da igreja. Na igreja, você tinha sempre agrupamentos religiosos, desde a Cruzada Eucarística, que era para crianças, até as associações das mulheres, as Filhas de Maria. Minha avó era presidente das Mães Cristãs. Dos homens, tinha a Congregação Mariana, que era correspondente às Filhas de Maria. Tinha igreja para tudo quanto é lado, coloniais, antigas… Curiosamente, tinha uma senhora chamada Dona Rosa, negra, idosa, cega, que morava em casa e todo dia ia para a igreja. Eram apenas três quarteirões e meio para chegar à igreja. Então, sempre tinha que ter alguém para levá-la, e eu sempre fui um dos encarregados de fazê-lo, às vezes com boa vontade, às vezes não. Numa cidade pacata como Campos, todo mundo se conhecia, não havia perigo para uma criança de seis, sete anos sair na rua sozinha. Lembro que, muito pequeninho, lá ia eu levar a dona Rosa na igreja.
Pai e mãe
Perdi minha mãe muito cedo, quando eu tinha sete anos de idade e ela trinta e dois. Minha mãe se casou muito nova e teve quatro filhos homens. Meu irmão mais velho, Dalmir, o segundo, Dilmar, depois eu, o terceiro, e Daniel, o mais novo. Uma escadinha. Teve uma única menina, a Denise, que não sobreviveu. Minha mãe, Dalva, já estava doente, tinha um problema grave nos rins e naquela época isso matava. Acabou falecendo no ano de 1950. Completei sete anos dois dias depois do falecimento dela. Toda a questão dos quatro órfãos foi um abalo na cidade, todo mundo ficou muito chocado. Nós fomos todos morar com a minha avó. O filho mais novo da minha avó era da idade do meu irmão mais velho. E uma das irmãs solteiras, a tia Délia, morava ainda com a minha avó e tomava conta da gente. Depois ela se casou mais tarde e veio morar em Campinas. A minha formação em casa tinha esse caráter muito religioso, cultural, porque meu pai Affonso foi sempre ligado à música. Depois que ele ficou viúvo, nós nos separamos do pai, mas ele ia toda noite para a casa da minha avó e ficava conosco até tarde. Era muito hábil, sabia fazer gaiola, tocava violão, cantávamos juntos, tinha muita habilidade, era dentista e jornalista, de um jornal muito conhecido lá, chamado Folha do Povo.
Educação
Eu me lembro de frequentar o jardim de infância numa escolinha no meio de uma praça, depois fui para o grupo escolar XV de Novembro e depois disso para o colégio Eucarístico, na parte final do primário. Minha avó, que tinha muita ligação com os padres, foi procurada por um captador de vocações que os jesuítas mandavam à procura de meninos que pudessem ir para o seminário dos jesuítas, lá em Friburgo. Primeiro, levaram meu irmão, o Dilmar, que foi no ano de 1953, e eu fui depois, em 1955. Tive um acidente no colégio, quebrei o braço e perdi praticamente um ano, mas depois voltei e continuei meus estudos. Havia a ideia de que ali se formavam futuros jesuítas, sacerdotes, padres, mas não era uma coisa definitiva, porque com 11, 12 anos você não define o futuro de ninguém. Quem faz isso comete um equívoco grave do ponto de vista pedagógico e educacional.
Ligação com a cultura
A Escola Apostólica funcionava dentro da Colégio Anchieta de Nova Friburgo, que tinha também alunos externos da cidade – era uma espécie de dupla personalidade da instituição. Tinha uma área também que era a Faculdade de Filosofia dos padres jesuítas. Era um colégio histórico construído no final do século XIX, uma construção eclética muito bonita, um lugar onde estudou muita gente importante, inclusive o filho do Rui Barbosa e o Carlos Drummond de Andrade, um colégio com uma força extraordinária na cidade de Friburgo. Eu participava intensamente de tudo: era membro do Coral Anchieta, da Banda Marcial, era uma coisa importante quando a gente descia tocando, a cidade parava nos dias de celebração. Havia audição de música clássica. Era uma espécie de ação complementar fora do currículo, para conhecer autores. A gente se reunia para ouvir uma sinfonia e alguém mais especializado explicava o que era. Tinha o Cine Clube, tinha uma Academia de Letras que nós criamos, eu fui o primeiro presidente. Fiz uma espécie de uma fala na inauguração da academia, falando do Padre Anchieta, me lembro disso. Mais tarde, fundamos o Grêmio Estudantil, quando eu estava já no colegial, tinha uma revista que a gente produzia com estêncil de cera, a gente batia à máquina e tirava na impressora para estêncil.
Estudo sagrado
Era realmente uma formação muito dura, a gente tinha horários disponíveis para preparar os trabalhos, estudar, ler. A carteira era uma escrivaninha em que se abria uma tampa e você guardava seu material todo lá dentro. Normalmente, no momento que você está trabalhando você abre e fecha sua tampa, você consulta alguém, você pode falar baixinho com o outro. Agora, havia o “estudo sagrado”, que era uma hora do dia em que não se podia absolutamente sair do lugar. Você planejava tudo o que ia fazer naquele momento e depois que tocava o sinal você não podia nem abrir mais a sua escrivaninha. Era o “estudo sagrado”: naquele momento, você tinha que se concentrar e pensar em alguma atividade.
Formação
Minha formação se deu com muita riqueza de interferências culturais, as mais variadas… Nós estamos falando dos anos pré-golpe de Estado de 1964, quando a ebulição cultural e política do país era intensíssima, discutia-se muito a questão das reformas de base, as ameaças de golpe, a luta política. Nós líamos jornal todo dia, fundamos o grêmio estudantil no Colégio Anchieta e fundamos na mesma época o Parlamento Estudantil de Nova Friburgo, o Penf, com alunos de outros colégios. Isso significa dizer que começamos a fazer política estudantil naquele momento. Eu fui em um congresso no ano de 1962 ou 1963, em Niterói, com a União Fluminense de Estudantes Secundários. Ninguém sabia que eu era seminarista, eu era presidente do grêmio estudantil Anchieta e vice-presidente do Parlamento Estudantil de Nova Friburgo, então eu tinha participação lá nas reuniões. E lá conheci um grupo de estudante do CPC – Centro Popular de Cultura, da UNE [União Nacional dos Estudantes] –, eram quatro cantores que formaram posteriormente o MPB4, todos ligados a Niterói. Isso tudo fazia parte desse momento. Em seguida eu fui para Itaici, aqui em São Paulo, para entrar no noviciado dos jesuítas. Aí já era uma opção, eu tinha mais de 20 anos. Saí depois de completar filosofia, alguns anos depois. Entrei no ano de 1964, é meio difícil de explicar, mas tem um tempo que você fica muito isolado, é uma formação muito rígida, e tem os chamados retiros espirituais, coisa muito forte. Nesse período a gente se isola e reflete sobre si mesmo, sua espiritualidade, aprende a meditar, a aprofundar a introspecção necessária para o autoconhecimento e o conhecimento ao redor de você – é um exercício forte e uma das marcas fundamentais dos jesuítas.
Revolução ou contrarrevolução?
Estávamos em plena realização desse exercício espiritual quando aconteceu o Golpe Militar de 31 de março e 1º de abril. Dias depois, tinha um intervalinho em que a gente se encontrava, alguém veio falar: “Ah, aconteceu a revolução”. Falei: “Revolução?”. “É, o general X e o general Y, deram o golpe… Diz que tiraram o João Goulart…” Eu fiquei espantado e falei: “Gente, isso não é a revolução, é a contrarrevolução”. Os caras olharam espantados para mim perguntando por que eu dizia aquilo. “Porque essa turma é tudo direitona. Isso não está certo.” Eu não falei golpe, porque não tinha consciência clara. “Mas com esses nomes? Era Adhemar de Barros, Magalhães Pinto, Carlos Lacerda de um lado, mais General Kruel, General Mourão, não, isso não é a revolução! Isso aí é a contrarrevolução. Eles estão impedindo que a verdadeira revolução aconteça.” Eu tinha uma cabeça mais radical naquele tempo, para mim revolução era uma outra coisa.
O noviciado
O noviciado é um momento em que você é testado, você aprofunda o conhecimento sobre você mesmo. Logo em seguida, começou o Concílio Vaticano II, em que a gente ouvia a transmissão em francês, porque não tinha em português pela rádio do Vaticano, para saber o que estava acontecendo. Esse noviciado são dois anos, mais um ano que a gente estuda só história da igreja, grego e latim profundamente, até entrar na filosofia. Eu terminei a filosofia, depois entrei em mais um curso na mesma faculdade, de ciências sociais, mas aí eu já tinha saído do seminário e largado a batina. Tinha resolvido principalmente porque constatei que não era realmente vocacionado, de maneira tranquila, sem nada que me abalasse psicologicamente.
Emprego
Continuei o curso de ciências sociais e fui trabalhar no lugar onde fui procurar emprego. Era uma agência de empregos que me colocou lá mesmo quando viu, pelo meu currículo, que eu tinha condição de trabalhar como entrevistador, vinculado à seleção de pessoal na agência, na Praça da República. Trabalhava o dia todo, me envolvendo com esses assuntos, aprendi muito e desenvolvi uma maneira de conversar, entrevistar, não era uma coisa muito sofisticada, mas exigia uma certa sensibilidade para perceber se aquilo que você tem descrito como vaga a ser preenchida bate com a pessoa à sua frente. E como você tinha a chance de mandar mais de uma pessoa para cada vaga, havia uma certa chance de acertar. Eu comecei a acertar bastante e a ter bons resultados. Primeiro com as ocupações mais simples, até que no fim eu estava selecionando executivos para empresas multinacionais. E como a gente ganhava uma parte do salário pelo que produzia, o salário ia melhorando cada vez mais. Você tinha um salário que não era lá essas coisas, outra parte razoável do seu salário era composto daquilo que você produzia individualmente, e uma terceira parte, que às vezes era maior do que todo resto, era a produção geral de todos. Então, quando você acertava, você colaborava com todo mundo.
Concurso para o Sesc
Quando eu prestei o concurso para o Sesc, em meados de 1968, o meu salário triplicou. Foi uma vantagem ter prestado o concurso na época. Concurso difícil, eu achava que não ia entrar, primeiro porque eu não era uma pessoa muito afinada com o pensamento dominante, já que eu respondia de maneira muito honesta ao que me perguntavam, tanto por escrito como quando fui entrevistado. E, segundo, porque eu achava que as minhas opiniões poderiam não agradar. Na realidade, fui passando pelas fases, fui ficando, até que entrei no Sesc. Nós éramos por volta de mil quando iniciamos o processo, e no fim sobramos dez, inclusive o Galina, que continua sendo meu colega e participou do mesmo concurso que eu. Os únicos que sobraram daquele concurso foram ele e eu. Todos que estão aí são mais novos. Atualmente, não tem mais nenhum funcionário mais antigo no Sesc do que nós.
Mais 60 Professor, vamos voltar agora para 2021, um ano muito importante, porque nós estamos falando de cultura e educação. O senhor defende a educação e a cultura como pressupostos para o desenvolvimento, sobrepondo-se à ideia de desenvolvimento segundo um ponto de vista puramente econômico. E, em 2021, a gente comemora o centenário do filósofo e sociólogo Edgar Morin, assim como do educador e filósofo Paulo Freire. O que o senhor poderia dizer sobre esses dois grandes estudiosos?
Danilo São dois grandes exemplos! Morin vivo, 100 anos, Paulo Freire já falecido, figuras exemplares do ponto de vista da proposta que veicularam, ambos propagaram e levaram adiante a educação e a cultura como parte essencial do desenvolvimento, enfim, da capacidade humana de crescer e melhorar. Nós vivemos uma realidade muito materialista, onde as coisas são colocadas apenas do ponto de vista do desenvolvimento econômico e da produção efetiva de bens. Isso é uma visão muito reducionista e perigosa, porque ela torna o ser humano incapaz de enxergar sua realidade e o que está a sua volta. Cada vez mais, a gente percebe que a busca pelo chamado bem-estar, pela qualidade de vida depende de muito mais coisa do que o mero desenvolvimento econômico. E, de fato, essas duas figuras são realmente emblemáticas. Em primeiro lugar, eu diria que educação e cultura são elementos vitais, são aquilo que nos torna humanos – a nossa condição humana, diferente de outros elementos da natureza que fazem parte do universo no qual estamos inseridos. Somos os únicos seres que têm condição de criar cultura, de desenvolver ideias e projetos de maneira completa e autônoma. Nós somos, portanto, reconhecidos como seres humanos por termos a capacidade de nos educar, de criar cultura, que está além da natureza. Eu parto daquele fundamento antropológico da cultura, que é algo criado pelo ser humano, diferente, desse modo, da natureza. A natureza tem sua vida própria, sua razão de ser. Cada vez compreendemos mais que se trata de um processo do qual nós também participamos: nós e a natureza somos parte de um todo e vivemos essa realidade de maneira necessariamente integrada. Quando nós, por alguma razão, rompemos essa integração, causamos distúrbios muito graves. Assim, para que o ser humano seja totalmente integrado, melhore sua condição e avance cada vez mais, a educação e a cultura são parte fundamental desse processo. Essas duas autoridades mencionadas escreveram, produziram, realizaram – ainda realizam, no caso do Morin – uma ação muito emblemática em relação a tudo isso. Eu particularmente acho que a nossa missão tem a ver com o processo educativo permanente, independentemente de sermos ou não educadores. Essa visão da educação, da transmissão para os nossos pósteros de um legado, mesmo que não sejam diretamente nossos descendentes, um compromisso social com a futura geração, é algo que está inerente à condição do ser humano quando percebe o seu papel. No livro que o filósofo Mauro Maldonato escreveu comigo, Na base do farol não há luz – cujo título, por sinal, é muito interessante – tem uma frase que é bem forte: “[…] nós não somos donos do mundo, nós pegamos o mundo emprestado de nossos filhos”. Eu entendi essa ideia assim: nós estamos aqui como inquilinos, alugando um espaço, ou estamos aqui “de favor” – uma concepção de que nós não somos os donos do mundo. Isso tem muito a ver com a noção de educação e cultura como elementos-chave. Outro dia, eu estava refletindo sobre a pobreza do pensamento das pessoas que administram e que não enxergam isso como algo efetivamente transversal, não simplesmente para completar um projeto: “Olha, o projeto vai ser a construção de um novo porto, com toda a infraestrutura necessária, com a linha férrea que vai chegar até lá… e está resolvido o problema”. Esse tipo de raciocínio ignora a pessoa que vai lidar com aquilo, vai ter que estudar, vai ter que desenvolver, pois aquilo tudo vai influenciar as relações das pessoas do entorno. Esses administradores enxergam sempre de uma maneira muito materialista, pouco objetiva no sentido mais profundo – aquilo que parece objetivo, mas de fato não é. As pessoas estão muito mais preocupadas em ter, em acumular, do que propriamente em dividir.
Educação e cultura – facetas da mesma realidade
Educação e cultura, para mim, são complementares, são duas facetas da mesma realidade. Enquanto a educação, no sentido formal, é algo que instrumentaliza, desenvolve métodos, conhecimentos específicos ou gerais, transmite informações, o processo de educação ampla aproxima-se muito da ideia de cultura. Assim como a ideia da cultura no sentido ampliado aproxima-se muito da educação permanente, porque são dois conceitos que se fundem. Do ponto de vista de uma parcela do campo cultural, que diz respeito às artes, ao simbólico, à capacidade de transmitir ideias e de provocar, temos que reconhecer seu papel central porque a arte é um pedaço nobre, digamos, a nata da cultura. Nós entendemos por cultura tudo aquilo que o ser humano inventa, incluindo a ciência e a educação formal. Atividade físico-esportiva, todo contexto que você desenvolve, toda tecnologia que você cria, toda ação humana faz parte de um processo cultural. Mas a arte é um elemento especial, apenas o ser humano faz arte porque somente ele é capaz de criar e transmitir o simbólico. No terreno do simbólico você tem inúmeras especialidades, e uma delas é criar encantamento, beleza, poesia, usando o som, a palavra, o gesto, a pintura. Daí a gente mergulha na filosofia pura da estética, a busca por entender o belo, aquilo que cria essa possibilidade de encantamento. Mas a arte vai além. Ela cria também condições para a reflexão, para a provocação, até mesmo a transgressão. Aí, nós temos outra classificação, que só nós seres humanos somos capazes de fazer. Então, a cultura entra aí de forma absolutamente fantástica. Se não houver condições para que isso seja possível, não construiremos uma sociedade capaz de enfrentar o que vem pela frente. Eu acho que educação e cultura estão no âmago do processo do desenvolvimento humano, mas isso não é entendido como tal. Me preocupa muito, por exemplo, que aqueles que detêm o poder de decidir ações na sociedade não enxerguem isso; que qualquer mandatário, seja ele quem for, não perceba a importância disso. Quando nós vemos gente que não dá valor a isso, que não quer discutir determinado tema ou não trabalha com determinadas questões por achar que uma certa abordagem pode ser perigosa, que poderia ampliar o pensamento das pessoas numa perspectiva que não concorda necessariamente com a nossa, tudo isso me assusta muito.
Mais 60 Professor, vamos falar um pouco de cultura digital? Nós todos fomos empurrados para esse universo pela necessidade de isolamento físico causado pela pandemia, passando a estudar e trabalhar por meio de telas. O Sesc passou a maior parte de suas ações para o mundo digital e, no trabalho social com os idosos, percebemos fortemente a relação dos idosos com filhos ou netos no que diz respeito a facilitar o acesso: os filhos ou netos passaram a ensinar os idosos. Queria saber sua opinião sobre esses aspectos: primeiramente, como a cultura está se adaptando a esta hegemonia do meio digital e, em seguida, como você vê a relação dos mais velhos com os mais jovens para adentrar nesse mundo digital.
Danilo Antes de tudo, precisamos reconhecer: a evolução digital da tecnologia veio para ficar e nós não temos dúvida de que isso se tornará cada vez mais presente no dia a dia das pessoas. Há questões que precisam ser consideradas. Em primeiro lugar, a questão da desigualdade socioeconômica: quem já tem acesso hoje? Verificamos que parte das pessoas que precisavam ter acesso, crianças em idade escolar, não o têm, porque as famílias são carentes. Isso ocorre no mundo inteiro, com exceção dos países hegemônicos da Europa e os Estados Unidos, mas no restante do planeta é um problema grave. Temos que estar atentos à intensificação dessas novas dinâmicas, mas, por outro lado, isso deve ser entendido de uma forma bem crítica, porque há a necessidade de ações que garantam que todos cheguem efetivamente a isso. Porque todos chegarão, mais cedo ou mais tarde… E digo mais, trata-se de uma experiência que vai se tornar cada vez mais tranquila, amigável, fácil, acessível. Quando se aborda essa questão focando nas idades mais avançadas, a dificuldade é maior. Eu sinto isso menos do que outras pessoas que são mais velhas do que eu, que têm a mesma idade ou até menos do que eu, mas que não têm o mesmo acesso, a mesma facilidade. Mas é muito menos do que outros que já estão lá com isso quase que já de nascença. É algo que veio para ficar, parte do processo natural de desenvolvimento. No entanto, como eu falava antes, o desenvolvimento não pode ser só material. Não basta todo mundo ter computador, é fundamental ter computador e saber usá-lo. É essencial atentar para o desenvolvimento também no aspecto humano, no que diz respeito ao conhecimento, à educação, ao preparo das pessoas. Eu, por exemplo, às vezes tenho muita dificuldade para descobrir certas coisas que outros descobrem muito facilmente, e creio que o âmbito da tecnologia nem sempre dedica muito cuidado a esse aspecto, de que aqueles menos informados têm todo o direito ao acesso digital.
Gerações
Quanto à questão da transmissão, nós já nos surpreendíamos tempos atrás com a chamada internet livre, em que idosos solicitavam ajuda a jovens e outras pessoas que frequentavam tais espaços para ter acesso facilitado ao mundo digital. Eu cheguei a observar isso em algumas unidades, há inúmeros relatos sobre isso. A impaciência é comum nas pessoas mais idosas, elas correm o risco de desistir – então, é necessária metodologia, ensinar os elementos básicos de uma maneira muito prática, inicialmente ir mexendo com algumas coisas mais simples para ir evoluindo pouco a pouco. Quem domina muito bem todos esses recursos são os mais jovens. Meu neto mexe com isso há muito tempo, hoje ele tem 15 anos. No início da pandemia, eu assistia todas as lives enquanto andava de esteira; em uma ocasião em que eu acompanhava uma dessas lives, me incomodei porque não gostava muito desses comentários que ficam surgindo na tela. Nesse momento, meu neto Jorge passou por mim e eu falei: “Jorge, como tira esse negócio aqui?”. Ele simplesmente esticou a mão, sem dizer nada, apertou um botão e fez aqueles comentários desaparecerem da tela. Eu me lembro desse momento, uma coisa tão simples, tão banal, mas eu provavelmente ficaria horas tentando solucionar esse problema… para os jovens, é um gesto natural. São muitas as facetas desse fenômeno: tem o lado socioeconômico, o aspecto da paciência, o cuidado efetivo para lidar com isso de maneira adequada. Mas é importante sublinhar: algumas pessoas idosas querem aprender mesmo. E tem gente que tira tudo isso de letra, já se vira com facilidade. Acho que as companhias especializadas não se preocupam muito com isso. Vi recentemente uma propaganda na qual duas senhoras diziam de seus hábitos no mundo digital, mas isso surgia como uma coisa meio curiosa, meio exótica, não como algo natural. Deviam lidar com isso de uma forma mais tranquila, chamando menos atenção para a peculiaridade de a pessoa idosa ter dificuldade com isso. Quando você evidencia a dificuldade, você já está criando uma barreira: “Velho não sabe lidar com isso, então vou mostrar a vocês como é que faz”. Não pode ser desse modo, aí é questão de metodologia.
Mais 60 Falando em envelhecimento, como o senhor vivencia a sua velhice? Como percebe suas potencialidades e fragilidades?
Danilo É legal falar sobre isso. Eu não tenho uma consciência tão profunda da minha velhice como talvez devesse ter por causa da minha atividade intensa, diária e muito comprometida. Mas, por outro lado, a realidade etária se impõe. Eu tenho 78 anos de idade e plena consciência disso. Sei que tenho um futuro menor pela frente e devo lidar com isso de maneira natural, sabendo que esse futuro se prepara para o fim. Não tenho nenhum receio de falar disso, considero uma coisa perfeitamente comum e natural, sem trauma. “Ah, quer dizer que você não tem medo de morrer?” Claro que tenho – não quero passar por nenhuma situação superdesagradável, mas sei que é um fato real e necessário para a renovação do ser humano. Eu tenho uma visão clara disso, tenho formação religiosa, acredito na vida eterna, creio que depois disso alguma coisa vai acontecer. Não sou um frequentador assíduo da minha origem religiosa, tenho muitos questionamentos espirituais na minha cabeça, mas tenho clara essa noção da transcendência, assim como da existência de realidades superiores, acima da gente. Sou um crente, não sou descrente, não sou ateu. Considero nossa realidade como algo a ser continuado futuramente. Como eu me preparo? Mantenho cuidados com a saúde, sou diabético, tomo todos os remédios, faço atividade física – não tanto quanto deveria, mas faço e tenho uma vida saudável do ponto de vista físico e mental. Leio muito, gosto de ver muitas coisas, filmes. Gosto muito de ver futebol, sou torcedor do Fluminense do Rio de Janeiro. Tenho muitos amigos, sinto muita falta de conviver com eles, de frequentar a vida normal que eu sempre vivi, isso é um dos maiores pesos que a gente carrega nesse momento. Família e amigos, uma parte da família eu não vejo atualmente, minha filha está em Portugal há dois anos. Falamos muito, a tecnologia hoje em dia para isso é muito favorável. Vou levando, né?
Projetos de vida
Na realidade tenho uma perspectiva de futuro, gostaria de planejá-lo de maneira mais segura, mas não há segurança para ninguém para planejar o futuro a essa altura, por causa da situação que atravessamos. Não estou no início da minha carreira no Sesc, nem na minha posição, já estou há 37 anos como diretor regional, já estou precisando transferir o bastão. É natural que aconteça e lido com isso de uma maneira muito tranquila. Vou ter que mudar substancialmente meu ritmo de vida, mas eu estou louco para fazer isso. Não há problema em mudar meu ritmo de vida. Pretendo me dedicar a coisas que gosto. Tem uma pilha de livros que eu tenho que dar conta e não dei. À medida que vai sendo consumida, ela também vai crescendo, mas ela cresceu demais ultimamente, então tem muita coisa que eu quero ler. Sou um pouco seletivo: vou atrás de muitas coisas que me interessam, mas muita coisa não me interessa e não vou atrás. Como o tempo pela frente não é muito grande, tenho que aproveitá-lo melhor, não é verdade?
Sesc
No Sesc nós fizemos essa inflexão, dobramos essa esquina em direção ao virtual como uma saída efetiva. Isso deu condições de que pudéssemos continuar fazendo em grande parte o que costumávamos fazer, mas não é tudo que nós fazemos que pode ser feito virtualmente. O Sesc é uma instituição que valoriza o presencial. O presencial, para nós, é parte do nosso programa, é algo indispensável. Assim, abandonar o presencial como tivemos que fazer significa um corte profundo na instituição. Nós construímos nossas unidades com esmero, com atenção, com cuidado, para serem as melhores dentro do possível – é o que há de melhor em termos de programa sociocultural que existe neste país e no mundo. É o que nós temos de melhor, e não podemos sequer abrir a porta. Para nós, isso é realmente grave. Dá para minimizar? É possível usarmos a tecnologia para atenuar o problema, mas não dá para resolver integralmente, não. Tão logo a gente possa, temos que voltar ao presencial. Uma parte do nosso pessoal está inativo. Estamos conseguindo mantê-los, o que é muito bom. Pretendemos retornar com todo mundo lá na frente, por isso retivemos. É bom o panorama atual? Não, é o possível. No futuro, o hibridismo entre digital e presencial será um complemento. Talvez, num primeiro momento, seja o virtual principalmente, com o presencial como dimensão complementar. Mas, aos poucos, nós vamos voltar tendo o presencial como elemento principal. Isso é o que imagino como gestor – e é isso que eu tenho para sugerir a quem vier a ser o futuro gestor ou futura gestora dessa instituição. O Sesc é uma instituição exemplar nesse aspecto e tenho muito orgulho disso. Tenho uma filosofia de trabalho muito clara, estou aqui como se fosse meu primeiro dia e tenho consciência de que pode ser o último. Estou, portanto, a mil por hora. Estamos construindo novas unidades, desenvolvendo nosso quadro de funcionários da melhor forma possível, vamos entrar em uma nova campanha agora, uma ação efetiva em relação a todas as diversidades, especialmente a racial. E, falando em diversidades, no que se refere ao trabalho social com idosos há uma coisa sobre a qual eu sempre argumentei bastante: velho também tem futuro, velho não é um ex-cidadão. E criança não é um futuro cidadão. Devemos falar em um cidadão criança. Um cidadão velho. Um cidadão homem. Uma cidadã mulher. Um cidadão ou uma cidadã trans. Somos todos cidadãos. Esse é o sentimento mais profundo da igualdade absoluta, que para mim é um valor fundamental do processo civilizatório. Processo civilizatório para mim não é tecnologia, nem desenvolvimento puramente econômico ou puramente ambiental. Tudo isso faz parte, mas trata-se da percepção efetiva da absoluta igualdade entre homem e mulher, algo que não está resolvido no mundo até hoje, entre raças e entre gêneros, e entre todos.
Mais 60 Muito obrigada, professor.
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