Por Fernanda Silvestre
Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias. Mario Vargas Llosa
Segundo os dados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o país perdeu mais de 4,6 milhões de leitores de 2015 a 2019. A porcentagem atual representa 52% da população brasileira e não parece um mal número, mas, se avançarmos na análise do que a pesquisa retrata, descobriremos que a média de livros lidos integralmente é de 2,5 e, para muitos, a Bíblia é a única fonte de leitura.
Há diversas razões pelas quais as pessoas não leem: preço dos livros, falta de acesso e, claro, o desinteresse e a falta de hábito. O hábito de leitura é construído, normalmente na infância, pela introdução de histórias contadas pelos responsáveis e professores, contudo, nem todos passaram por lares em que tiveram esse estímulo. E os motivos para isso acontecer são diversos. Assim, surge uma preocupação latente quanto à carência do exercício de leitura e suas consequências para a sociedade:
Pessoas que não são leitoras têm a vida restrita à comunicação oral e dificilmente ampliam seus horizontes, por ter contato com ideias próximas das suas, nas conversas com amigos. […] é nos livros que temos a chance de entrar em contato com o desconhecido, conhecer outras épocas e outros lugares – e, com eles abrir a cabeça. Por isso, incentivar a formação de leitores é não apenas fundamental no mundo globalizado em que vivemos. É trabalhar pela sustentabilidade do planeta, ao garantir a convivência pacífica entre todos e o respeito à diversidade. (GROSSI, 2008, p. 3)
Quando se fala em hábito de leitura dos idosos, a taxa é menor. E faz-se necessário destacara baixa ou a falta de escolarização desta faixa etária. Um estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018)
revela que 18,6% dos idosos no Brasil são analfabetos e, dentre os alfabetizados, temos uma média de 3,4 anos de estudo. A Pesquisa Idosos no Brasil II (2020), realizada em uma parceria do Sesc e da Fundação Perseu Abramo, aponta
que 37% dos entrevistados têm algum estudo no ensino fundamental, mas destes apenas 9% completaram os estudos até o 8° ano.
Outro fator importante a ser levado em conta quando tratamos acerca da leitura pelos idosos é o próprio livro, que em meio físico costuma ter fontes pequenas, o que dificulta ou torna impossível a leitura, porque não são raros os problemas oftalmológicos na população acima dos 60 anos, e o e-book, que pode ser customizado com fonte aumentada, porém ainda não é uma tecnologia amplamente utilizada pelos idosos.
Como estimular a leitura diante deste cenário? A resposta encontrada foi a criação de um clube de leitura em que os idosos pudessem compartilhar suas opiniões sobre as obras e tivessem no grupo e entre pares o incentivo para ler.
Clube de Leitura presencial
O convite à leitura foi feito, cerca de 15 inscrições realizadas e formou-se o grupo. Não foi surpresa termos apenas mulheres interessadas, pois existe um imaginário de que leitura é algo feminino, mas esperávamos que, com o passar do tempo, homens desejassem participar ao ouvir os relatos das participantes.
No início de 2020 começaram os primeiros encontros presenciais. A proposta inicial, dado o público inscrito, era a leitura de histórias de mulheres fortes, a fim de que as idosas pudessem se conectar com as narrativas seja pelas
semelhanças ou diferenças entre suas vidas. A primeira obra a ser lida: Senhora, romance urbano de José de Alencar.
O Clube da Leitura passou a acontecer mensalmente, na sala de uso múltiplo da unidade, que era preparada carinhosamente para receber o grupo de forma confortável, com pufes, almofadas, luz mais baixa, telão e até uma mesa de café. Em formato de roda sentavam-se, não sem antes pegarem uma xícara de café e bolachinhas. A mediadora contratada iniciava a atividade com um warm-up antes de iniciar a conversa sobre a obra. O ambiente intimista ajudava na prosa e as participantes sentiam-se bastante à vontade para partilhar suas impressões, favoráveis ou não, das protagonistas.
Mudanças pela pandemia
Ocorreram três encontros presenciais, mas o fechamento da unidade, por conta da covid-19, impossibilitou outros. Houve a tentativa de fazer o quarto encontro on-line, uma vez que as participantes haviam realizado a leitura, mas
a dificuldade de acesso às plataformas virtuais tornou impraticável a continuidade do clube naquele momento.
As medidas de isolamento impediram o empréstimo de livros e, como a leitura em meio digital ainda se configurava um obstáculo, houve um hiato na ação.
Literatura Livre
Meses após a pausa, surgiu uma alternativa: o site Literatura Livre literaturalivre.sescsp.org.br, que tornou acessíveis livros digitais e apresentou a seguinte proposta:
Assim, o projeto Literatura Livre traduz para o português, edita e compartilha essas obras em formatos digitais. Essa biblioteca que formou a consciência humana ao longo de mais de dois milênios é cuidadosamente construída
por meio de recortes temáticos com vistas ao contemporâneo. Nossa missão é equilibrar o antigo e o novo, ajudar no entendimento e admiração recíprocos por meio da aproximação cultural que as histórias promovem. Se histórias são a melhor maneira que encontramos para transmitir conhecimento desde antes da escrita, por que não usar as imortais para criar e recriar os laços que nos unem como um só povo? (Sesc São Paulo, 2020).
Junto ao Literatura Livre alia-se o tempo transcorrido, que permitiu aos idosos se tornarem íntimos de plataformas de comunicação como Zoom, Meets, Teams e outras. Foram tantos tutorais compartilhados e atividades feitas por meio delas que propor um Clube de Leitura on-line era uma ação possível, agora que estavam confortáveis com essas novas ferramentas.
Aproveitando então a oportunidade, o projeto foi repensado e adaptado ao contexto pandêmico. A volta do clube se daria com a sugestão de contos pequenos, que requerem menos tempo de atenção e que garantem a leitura íntegra da obra, além de serem uma ótima alternativa para quem nunca teve ou perdeu o hábito de leitura. E buscando um tema para a escolha das obras, decidiu-se fazer um passeio pelo globo, começando com a Tanzânia. Foi selecionado um conto do livro Contos Folclóricos Africanos, volume 1, chamado Por que os Bodes São Animais Domésticos?, disponível no Literatura Livre. Nesta nova fase, optou-se pela troca de mediador, que contribuiria com a nova dinâmica, apostando na intergeracionalidade.
Um novo convite à leitura fora feito aos grupos de idosos de todas as nossas unidades e assim se iniciou a segunda temporada do projeto com um público misto, tanto de origem quanto de gênero, que passaria a se reunir mensalmente pelo Teams para discutir os diversos assuntos que os contos escolhidos proporcionavam.
As leituras
A proposição de realizar a leitura de contos, um gênero mais breve e propício para a familiarização de todos com a atividade literária, foi a primeira questão pontuada na escolha dos textos. Outra questão muito importante foi deixar
todos os participantes confortáveis em ler títulos e autores consagrados pelo cânone, como também autores mais desconhecidos, tornando a literatura um objeto acessível e fonte de novas descobertas. Logo, a leitura de contos
ajudou a dar o pontapé de retorno ao âmbito literário e filosófico, além de talhar caminhos para encontros ancorados em autores como Machado de Assis, Borges, Poe, Tchekhov e Sui Sin Far.
Também há outras questões que balizam as escolhas textuais, são elas: a nacionalidade dos escritores, promovendo, assim, a pluralidade de referências culturais; e as narrativas folclóricas e de gênero, que garantem a diversidade, valor
tão caro para o projeto. Cada escolha possui o objetivo de imergir os leitores em contextos inusitados, em práticas ainda não experimentadas e propiciar a leitura de novos cenários.
O repertório dos encontros já trabalhou as obras: Por que os Bodes São Animais Domésticos?, de Robert Hamill Nassau; Crianças da Paz, de Sui Sin Far; O Gato Preto, de Edgar Allan Poe; A Cartomante, de Machado de Assis; O Outro, de Jorge Luis Borges; e História Alegre, de Anton Tchekhov. São seis meses de trocas, com a proposta sutil de se reconhecer no outro, de se encontrar em um novo ambiente e poder perceber o vasto mundo que permite congruências inimagináveis aos vícios rotineiros nos quais a vida se submerge atualmente.
A ideia é fundamentar o projeto nos princípios da escritora argentina María Teresa Andruetto, que acredita na hipótese de uma boa leitura ser formada pelo momento oportuno no qual a acessamos. Uma boa leitura pode ser algo muito simples, porém, capaz de nos resgatar ou nos reconectar com algo ou alguém, promovendo, desse modo, uma experiência excepcional.
Os objetivos
As ações do Trabalho Social com Idosos (TSI) sempre são pautadas em diretrizes bem definidas e que conduzem todo o processo. Com isso em mente, buscou-se o caminho da transversalidade para que fosse possível atingir os objetivos
do projeto. Os escopos do projeto presencial eram o estímulo à leitura, a construção de conhecimentos e o incentivo ao protagonismo, mas com o advento da pandemia, tornaram-se secundários, uma vez que os idosos são um dos grupos mais atingidos pelo distanciamento social. Portanto o foco do clube priorizou a socialização pelos encontros virtuais e pelas interações no grupo do WhatsApp e a promoção da saúde mental, tão prejudicada pela conjuntura, por meio do prazer da leitura, das conversas e da mediação do professor. Dessa maneira, ficam mais claros os objetivos da escolha de cada obra e, principalmente, da importância da literatura como instrumento de socialização e de melhora da saúde mental dos idosos nos contextos pandêmicos. Todorov pontua que a literatura pode transformar o indivíduo e, mais do que isso, tem um papel a cumprir:
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir, mas para isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. (2009, p. 76).
É dessa maneira que o Clube da Leitura procura atuar em seus conceitos, práticas e anseios, com a promoção da atividade literária em constante fluxo crítico-reflexivo e com o desenvolvimento de um percurso que faça sentido para o leitor participante e que seja objeto de outras possibilidades, conhecimentos e descobertas.
A dinâmica da ação
Reunidos em um grupo de WhatsApp, os idosos recebem um material visual para lembrá-los da data do encontro, além do nome da obra e do autor. Recebem também um arquivo em PDF com o conto em duas versões, a original e a com fonte aumentada, a fim possibilitar maior acessibilidade às leituras feitas. Esse grupo também serve para dúvidas, avisos, comentários e socialização, além de ser um espaço de compartilhamento de vídeos, áudios, textos e links que ampliam as conversas que acontecem nos encontros virtuais.
Nas reuniões mensais, o objetivo principal é fomentar a conversa, numa prática de discursos horizontais que oportunizam a fala de todos e o diálogo reflexivo. Tudo acontece por meio de uma breve apresentação do conto e dos autores, realizada pelo mediador, e todos são chamados a apresentar suas impressões ao longo do bate-papo. Os idosos, em suas argumentações, citam as considerações feitas por pares, seja para corroborá-las, seja para refutá-las ou, ainda, para adicionar reflexões, em um exercício de escuta e fala qualitativa. Cada contribuição é valorizada não apenas pelo mediador, mas pelo grupo, o que os estimula a exporem suas ideias sobre a leitura. Este exercício de alteridade contribui de forma substancial para a autoestima de cada participante.
As discussões sempre são direcionadas por análises livres que transitam entre o literário, o afetivo, o imaginário e o crítico, e também captam traços da cultura e da linguagem presentes nos textos. É sempre uma surpresa a direção que os discursos tomam, afinal cada leitor participante parte de seu universo imediato para delinear a leitura que lhe foi possível ao longo do mês.
O exercício parece muito complexo, contudo, não é nada hermético para os membros, que sempre se deixam levar por suas mentes férteis e pela generosidade da partilha. É exatamente essa a dinâmica do clube: a partilha. Todos repartem
seus saberes e saem desta experiência de mediação abastecidos pelas transformações que a literatura é capaz de promover.
Um convite:
Encerramos este relato esperando que tenha sido frutífero e que germine novas iniciativas de clubes de leitura voltados para o público idoso em diversas instituições. Ficamos à disposição e estendemos o convite à leitura a todos os interessados em participar dos encontros, saber mais sobre a ação e fazer parte do projeto. Convidamos todos a adentrarem em novos mundos e compartilharem conosco essa viagem!
Meu clube, nossos livros, o Sesc de todos e a sabedoria
O Clube de Leitura TSI foi criado por iniciativa do Sesc pela Fernanda Silvestre no dia primeiro de março de 2021, para que as águas de março fechassem o verão com chave de ouro. Sabedoria poética. Arlete fez a ponte e nos integramos aos contos e às dicas da Fernanda Silvestre. E a literatura me levou às aulas de violão e a outros encontros. Nós embarcamos juntos para, em junho, namorar com textos no contexto. Com toda graça, para dizer o mínimo, de Grazia Deledda. Sabedoria literária. Quando soubemos o porquê de os bodes serem animais domésticos e um gato preto cruzar nosso caminho, passamos a ler Poe, Machado, Borges e até Tchekhov. Cidadãos do mundo. Sabedoria universal. Muita gente conheceu gente, entrou em atividades sugeridas pelo grupo, se encantou com a mediação generosa da Fernanda e a didática instigante do professor João Paulo ao apresentar autores e interpretar textos, ouvindo atento cada uma das opiniões e percepções dos textos. Sabedoria didática. Nos resta agradecer e participar cada vez mais.”
João Júlio e Arlete Almeida
“O convite para mediar o clube de leitura foi algo muito inusitado. Minhas experiências como mediador se limitavam à arte-educação para jovens e adultos e também às atividades convencionais de literatura em sala de aula. No entanto,
foi incrível e está sendo cada vez mais.
Os participantes sempre estão empolgados e são imensamente bondosos em compartilhar suas análises e experiências com a leitura. Como professor e amante da literatura, me realizo a cada
encontro e, para mim, tem sido uma grande válvula de escape na qual eu respiro em meio ao caos dessa pandemia interminável.
É uma ótima prática de escuta e uma oportunidade singular de se reconhecer no outro, ainda que haja fronteiras subjetivas a serem enfrentadas. Os participantes sempre me ensinam muito e fazem com que eu saia cada vez mais
questionador de cada texto lido e compartilhado.
Acredito muito que os professores têm o importante papel de mediadores do conhecimento. Assim, como aponta Martins (1984, p. 34):
A função do educador não seria precisamente ensinar e ler, mas a de criar condições para o educando realizar sua própria aprendizagem, conforme seus próprios interesses, necessidades, fantasias, segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta.
Sendo assim, procuro estender minha base profissional para essa atividade não formal desenvolvida no clube de leitura. Incentivar a leitura através da singularidade de cada um é o a gênese do projeto. Acredito que será cada vez melhor e nos proporcionará grandes e boas surpresas, como já vem acontecendo até então.”
João Paulo Moda Paladino
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