por Danilo Cymrot
“Reparou como os velhos vão perdendo a esperança com seus bichinhos de estimação e plantas? Já viveram tudo e sabem que a vida é bela.” Os melancólicos versos de Cazuza fazem parte da letra da canção “Só as mães são felizes”, um título irônico que ironicamente serviu também de título para a biografia do cantor (ed. Globo, 1997), escrita por Regina Echeverria e baseada no depoimento de Lucinha Araújo, retratada como uma mãe superprotetora de um filho único morto aos 32 anos de idade. Já é clichê dizer que a pior dor que existe é a morte de um filho, algo visto como antinatural. Chico Buarque escreve em “Pedaço de mim” que “a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. O mesmo Chico, no entanto, escreve em “Uma canção desnaturada”, versos em que uma mãe lamenta ter se desdobrado tanto para cuidar de uma filha que nunca deveria ter saído da escuridão do ventre.
Versos aparentemente tão opostos desaguam em É sempre a hora da nossa morte amém (Nós, 2021), novo romance de Mariana Carrara, finalista do Prêmio Jabuti com Se deus me chamar não vou (Nós, 2019). No seu mais recente romance, conhecemos Aurora que, aos 75 anos de idade, bem longe da aurora de sua vida, é encontrada desmemoriada e desorientada à beira de uma estrada, segurando uma coleira vazia e chamando por uma Camila que pode ser sua filha, sua melhor amiga, sua cachorra, todas as alternativas anteriores ou nenhuma delas. Acolhida em um abrigo público para idosos, Aurora passa a receber visitas de Rosa, uma assistente social em busca do passado da protagonista, para “devolvê-la” para sua casa e sua família. Rosa, em certo sentido, é uma “curadora” de memória, não tanto no sentido de curar Aurora, mas no de selecionar quais pontos da memória caótica e contraditória de Aurora podem ser respaldados pela história que a burocracia estatal, em seus cartórios e arquivos, conta sobre uma pessoa.
Assim como num desenho do Papa-Léguas, em que o Coiote morre com uma bigorna caindo em sua cabeça para logo depois reaparecer vivo, apenas para morrer novamente de uma maneira ainda mais estúpida, Aurora narra diversas versões diferentes da morte de sua filha Camila ao longo do livro. Não só não quer morrer jamais como tenta recorrentemente, exaustivamente e inutilmente antecipar todos os riscos possíveis para a vida de sua filha, tendo em vista que, na sua (falta de) lógica, desde o momento em que nascemos, permanecer vivo é que é profundamente antinatural, o que consequentemente torna sem sentido colocar um filho no mundo. O destino pregará uma peça, ele morrerá antes da mãe, o esforço de mantê-lo vivo até então terá sido em vão, a dor e a culpa serão insuportáveis. Somos frágeis, carentes, avessos a despedidas. A vida é um sopro e talvez justamente por não ter controle sobre a vida e a morte é que a ateia Aurora, uma professora de português, se apegue tanto a regras gramaticais que tentam trazer um pouco de segurança e previsibilidade para o mundo, mas que no fim também perdem completamente o sentido diante da inevitabilidade da morte, que pode chegar das formas mais súbitas, inusitadas e absurdas. Essa sensação de
vulnerabilidade e falta de controle acentua-se ainda mais na velhice, não tanto pela maior probabilidade de se estar mais próximo da morte (Aurora despreza as estatísticas), mas pelo fato que de idosos, ainda mais institucionalizados
em abrigos, muitas vezes perdem o controle de suas próprias vidas: do que comer, do que fazer, das pessoas com quem conviver, do que lembrar, de suas funções fisiológicas.
Da mesma forma, não é garantido que aqueles filhos, a quem as mães dedicam tantos anos de suas vidas, tantas noites mal-dormidas e tantos cuidados, excessivos ou não, irão retribuir cuidando delas quando precisarem de cuidado, companhia e afeto. Ter filhos, nesse sentido, mais do que um investimento a longo prazo, é sempre um salto no escuro. Além do risco de o filho não sobreviver até os 40 anos, a idade ideal de um filho-amigo, segundo Aurora, falta muitas vezes “combinar com os russos”. Afinal, o pacto geracional pode ser quebrado unilateralmente pelos filhos, que criam asas e vão viver as próprias vidas, fazendo com que a solidão paire como uma ameaça permanente para muitos idosos, não apenas para os que não tiveram filhos ou cujos filhos morreram tragicamente.
Na falta de um marido que se foi, vivo ou morto, melhor se socorrer no amor incondicional de cachorros ou na companhia de um jabuti que, longevo, sobreviverá ao dono. No romance, Aurora disputa a tão ansiada companhia de sua melhor amiga Camila com o marido dela. Não surpreende que seja junto de amigas igualmente viúvas, de marido vivo ou morto, que muitas mulheres idosas encontrem companhia. Se Aurora convive com uma acumuladora no abrigo, de certa forma ela também é uma acumuladora, de amor, precauções e versões de sua história.
A forma como É sempre a hora da nossa morte amém é narrada – em primeira pessoa, por uma protagonista com quadro de confusão mental, desmemoriada ou simplesmente com um “distúrbio poético”, como define Rosa – faz não só com que nossa consciência se limite à consciência de Aurora e sejamos enganados ou confundidos, mas que ao longo da leitura sintamos cada vez mais empatia por ela, com suas lembranças, fantasias, angústias e neuroses. Seu drama ganha ares de filme de terror, mas também tem pitadas cômicas. Adentrar na mente de Aurora traz uma experiência profundamente humanista, de certa forma semelhante à que vivemos ao assistir ao filme Meu pai, dirigido por Florian Zeller, estrelado por Anthony Hopkins e premiado em 2021 com as estatuetas do Oscar de melhor roteiro adaptado e ator. No filme, vemos o mundo exatamente na perspectiva de um idoso com Alzheimer que, embora tente disfarçar, tem dificuldade de entender onde vive, as mudanças em sua rotina, quem são as pessoas que encontra em sua casa e os planos de sua filha de viver longe, apesar de terem sido repassados com ele tantas vezes.
É simbólico, assim, que a personagem de Anthony Hopkins confunda os rostos de sua filha e de sua cuidadora, por um lado, e que Aurora, por outro, diga que gostaria que a assistente social Rosa fosse a sua filha-amiga de 40 anos de idade. Muitas vezes são esses profissionais que acabam exercendo o papel de filhos, cuidando, dando afeto e fazendo companhia. Abandonados, solitários e vistos como estorvos, muitos idosos sentem-se mortos em vida. Têm medo
de esquecer, mas também de serem esquecidos. Não só lembrar do passado, portanto, mas também ser lembrado no presente e ter uma perspectiva de futuro é o que faz alguém se sentir vivo. Na animação da Pixar Viva – A vida é uma festa (2017), dirigida por Lee Unkrich e Adrian Molina, a memória é um tema central. Vemos como na cultura mexicana é fundamental lembrar dos mortos de uma maneira festiva para que eles permaneçam vivos no outro plano. Por outro lado, Inês, a bisavó do protagonista Miguel, apresenta problemas de memória, mas uma canção especial, que marcou sua infância, é capaz de fazê-la lembrar de seu pai, entregando o momento mais comovente do filme.
De fato, muitos idosos com problemas de memória preservam apenas a lembrança de seus anos mais longevos e da música, assim como dos aromas, que têm uma capacidade sinestésica impressionante de despertá-los, acionando sinapses nos caminhos misteriosos do cérebro. Não é à toa, assim, que Aurora investe na releitura de livros para tentar recordar seu passado, lembrando em que fase da vida estava quando os leu pela primeira vez, com quem estava etc. Algumas lembranças, no entanto, podem ser bastante traumáticas e dolorosas. Em algumas ocasiões, a memória de um país pode ser falsificada em Institutos Médicos Legais pela repressão política. Em outras, para nos protegermos, nós próprios as falsificamos e preferimos inventar uma vida que não vivemos para esquecer a que vivemos. Afinal, se
lidar com a morte é difícil, é ainda mais assustador saber que é sempre a hora da nossa vida.
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