Por Andresa Caravage de Andrade
Nise: O Coração da Loucura, lançado em 2016, é um filme dirigido por Roberto Berliner que conta a história da médica psiquiatra Nise da Silveira. Nascida em Maceió em 1905, faleceu aos 94 anos no Rio de Janeiro. Apesar de ter sido compulsoriamente aposentada aos 69 anos, a médica se reapresentou no centro psiquiátrico no dia seguinte como a “nova estagiária”, tamanho o seu amor e dedicação na área. Envelheceu ativamente escrevendo diversos livros e artigos até a sua morte. Esta breve apresentação já diz muito sobre essa mulher icônica.
No filme, sua personalidade pode ser percebida logo na primeira cena, em que Nise esmurra a porta do Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro, no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1944. Ao entrar se depara com uma sala cheia de médicos que fazem uso de práticas mais condizentes com a tortura do que com a terapêutica, como o eletrochoque e a lobotomia. Ali, nitidamente os “loucos” eram vistos como cobaias de experimentos médicos, utilizados para satisfazer o ego de homens brancos em uma sociedade ainda mais machista do que a que vivemos hoje.
Nos primeiros instantes nos deparamos com uma mulher forte, madura e determinada. Inspiradora, sua história merece ser lembrada, contada e recontada. O trabalho de Nise não revolucionou somente a psiquiatria no Brasil, mas no mundo. A meu ver, só duas coisas podiam levar Nise a realizar tudo que fez: amor e coragem. Amor para acreditar em si e nas potencialidades do outro – e isso só acontece quando se estabelece uma relação de confiança e respeito. Coragem para enfrentar as próprias sombras e todo pensamento e estrutura opressores, que a tentavam silenciar. Por isso, o título do filme me agrada tanto, o coração da loucura, ao unir, a princípio, o que pode parecer díspar, razão e emoção, corpo e mente, consciente e inconsciente. Assim como a obra de Carl Jung, a qual Nise compartilhava o pensamento. Ambos trocaram diversas cartas com muito entusiasmo, inclusive o próprio Jung inaugurou a exposição do Museu de Imagens do Inconsciente, que reuniu obras desenvolvidas por seus pacientes psiquiátricos, ou melhor, clientes, como Nise preferia chamá-los.
Algo que não é retratado no filme, mas é de extrema importância para entender quem foi Nise da Silveira, é sua trajetória anterior ao hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro. Nise foi a única mulher a se formar em 1931 entre os 157 homens da Faculdade de Medicina da Bahia. Posteriormente, casou-se com Mário Magalhães da Silveira, um colega de turma. O casal não teve filhos por opção, para que pudessem se dedicar ao exercício da medicina. Em 1936, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, Nise foi presa por 18 meses. Acusada de comunismo, dividiu uma cela com Olga Benário. No mesmo presídio também se encontrava o escritor Graciliano Ramos, que a retratou em seu livro Memórias do Cárcere. Por razões políticas ela e o marido viveram na semiclandestinidade até 1944. Nesse período Nise mergulhou na leitura e na escrita sobre a obra de Spinoza.
Ao chegar ao hospital psiquiátrico e ver a prática médica, Nise diz não acreditar na cura pela violência e ser incapaz de reproduzir tais procedimentos. Deste modo, sem poder clinicar, é alocada no setor de terapêutica ocupacional, totalmente abandonado e menosprezado pelos médicos, no qual os pacientes realizavam algumas oficinas e trabalhos ligados à limpeza e à manutenção do espaço. Nise inicia seu trabalho organizando a sala e implantando atividades artísticas para que seus clientes pudessem expressar as manifestações do inconsciente. Ela observa a reorganização do pensamento a partir das obras. A princípio, desenhos abstratos e mandalas são realizadas, depois trabalhos com objetos, animais e representações humanas, com maior complexidade, começam a ser desenvolvidos. A qualidade dos trabalhos artísticos chama a atenção de críticos de arte, em especial Mário Pedrosa, que define o trabalho de Nise como um trabalho científico, artístico e político. O livro O Antídoto do Mal: Crítica de Arte e Loucura na Modernidade Brasileira, de Gustavo Henrique Dionisio, retrata a relação entre eles e os trabalhos artísticos dos clientes de Engenho de Dentro.
De fato, quando se entende a trajetória de Nise e o contexto histórico-político do período se percebe a dimensão política da sua prática profissional, embora isso não seja explorado durante o filme. Nos hospitais não estavam apenas pessoas com transtornos psiquiátricos, lá era um depósito de gente, de todo tipo de gente, que não era bem-vista socialmente. Lá estavam os ditos inválidos: pessoas com deficiência, velhos, prostitutas, bêbados, vagabundos, mulheres solteiras que engravidavam, homossexuais, desafetos políticos. Na “faxina social” os indesejados eram depositados nesses espaços institucionalizados e validados pelo Estado. Qualquer relação com o que presenciamos hoje com a população carcerária, predominantemente preta e pobre, não é mera coincidência, e sim um projeto político. Inclusive, muitas das instituições especializadas, como orfanatos, asilos, manicômios e centros de reabilitação, têm sua origem como entidades filantrópicas, frequentemente ligadas a instituições religiosas e à caridade, justamente para cobrir a ausência da ação do Estado, mas que eram por ele legitimadas.
O Hospital Colônia de Barbacena, por exemplo, possuía 200 leitos e chegou a ter cerca de 5 mil pessoas internadas. A superlotação desse e de outros hospitais psiquiátricos deixava claro que o projeto político não era a cura e sim o extermínio daqueles que não se enquadravam nos padrões normativos da sociedade. Tanto que o psiquiatra italiano Franco Basaglia, responsável pela reforma psiquiátrica na Itália na década de 1960, em visita ao Colônia em 1979, chegou a compará-lo aos campos de concentração nazistas. Estima-se que dos 60 mil mortos do Colônia cerca de 70% não tinham diagnóstico de transtornos em saúde mental. Esse período é retratado brilhantemente em O Holocausto Brasileiro, livro e documentário da jornalista Daniela Arbex.
Não à toa superlotação, condições de higiene precárias, práticas de tortura, experimentos médicos e extermínio de pessoas “indesejadas” eram reproduzidos em hospitais psiquiátricos. Tais práticas tinham vínculo com os experimentos nazistas contra judeus, ciganos, prisioneiros de guerra, homossexuais e pessoas com deficiência. O Aktion T4, programa nazista com práticas higienistas e de eutanásia contra pessoas com deficiência, operou oficialmente entre 1939 e 1941, embora a prática tenha seguido até 1945. Cerca de 70 mil pessoas com deficiência foram vítimas, em sua maioria crianças. No Brasil, muitos dos médicos contemporâneos de Nise simplesmente reproduziam essa prática e se orgulhavam de utilizar o picador de gelo para a lobotomia, enquanto a acusavam de comunismo por ter como ferramenta o pincel e a arte.
Com o fim do regime nazista em 1945, infelizmente, essas práticas médicas não foram abolidas. Embora houvesse um movimento internacional para que tais atrocidades não se repetissem, como a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, e a transformação de hospitais psiquiátricos em comunidades terapêuticas na Itália durante a década de 1960, conduzida por Franco Basaglia. No Brasil, somente com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir da Constituição Federal de 1988, que a violência deixou de ser institucionalizada pelo Estado e a atenção em saúde passou a ter como diretriz a humanização do cuidado e os direitos humanos. Porém, a luta pela Reforma Psiquiátrica no Brasil se iniciou na década de 1970.
Um dos representantes do movimento foi Austregésilo Carrano Bueno, autor do livro autobiográfico Canto dos Malditos, que inspirou o filme, Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky. Ele foi internado em 1974 aos 17 anos pelo próprio pai, após ter encontrado um cigarro de maconha em sua jaqueta. Em sua passagem por hospitais psiquiátricos sofreu tortura, eletrochoques e sedação. Ainda que hoje tais práticas não sejam mais permitidas por violarem a dignidade humana, muitas das instituições, sejam elas voltadas para crianças, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, reproduzem a desumanização ao não compreender os pacientes em sua individualidade. Ser uma pessoa institucionalizada é estar submetida às dinâmicas e regras do local, com pouco ou nenhum controle sobre suas escolhas como, por exemplo, os horários de dormir e acordar, os horários das refeições ou as atividades que deseja ou não participar. Não é possível realizar verdadeiramente o cuidado em saúde em espaços em que não haja escuta, acolhimento e poder de escolha.
A pauta permanece atual e é debatida constantemente por profissionais de saúde, embora nos anos 1940 Nise da Silveira já trouxesse para a prática profissional o debate ético e político e o olhar cuidadoso e acolhedor para aqueles tão estigmatizados socialmente. Hoje, falar sobre deficiências, principalmente as intelectuais e sobre saúde mental ainda é tabu. Mas como disse Nise, a loucura está em nós, precisamos nos indignar com as injustiças. Só assim podemos agir com o coração.
Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…
Viva hoje e sempre Nise da Silveira!
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