Projeto Velhices Fora da Caixa: A Representatividade e as Diversas Possibilidades na Velhice
Artigo: Flavia Regina Rosa Mazette | Renata Alexandre da Silva | Thais Monteiro de Castro
Este relato de experiência vem apresentar a concepção, os desafios e os resultados da ação Velhices Fora da Caixa, do programa Trabalho Social com Idosos (TSI) do Sesc Rio de Janeiro, realizada em formato virtual durante a pandemia de covid-19. A partir de março de 2020, o programa adaptou suas atividades presenciais para o espaço virtual, incentivando os idosos inscritos a se comunicarem e interagirem de forma sistemática pela internet. Desta forma, apesar de não incluir todos (uma vez que a realidade digital não atende a todos de forma igual) e de alguma resistência, a adesão às ações virtuais superou 40% do público presencial.
Antes de tudo, este texto é uma chamada à reflexão social e principalmente individual do entendimento relativo ao envelhecer, seus limites (se é que existem), suas possibilidades e o olhar da sociedade em torno do tema. Para tanto, foi necessário compreender o emprego e os significados objetivos e subliminares da terminologia velhice em todas as suas aplicações para desbravar ao menos parte deste universo de ideias que circundam o envelhecer, tal como neologias, idealismo, implicações e, também, com um viés um pouco mais abrangente e tangível, as limitações e depreciações tão comumente atreladas à velhice. A ação desmistifica os usos superficiais da terminologia e demonstra de forma prática que, uma vez havendo espaço aberto e diálogo, a pessoa idosa mostra seu potencial e suas capacidades.
O que é velhice?
Por definição linguística, velhice é um substantivo feminino e significa: estado ou condição de velho; idade avançada, que se segue à idade madura; ancianidade etc. E, literalmente, algo que está perto do fim, encerrando seu ciclo.
Partindo da definição acima, temos a corroboração do senso comum: amparados em imposições arraigadas, em falas, atitudes ultrapassadas e estigmas que pendem a um preconceito no qual se definem amarras e limitações que pouco se aproximam da verdadeira base física, psíquica, social e comportamental que permeia o envelhecer.
Textos e artigos acadêmicos há tempos já debatem as questões relativas ao envelhecimento e, via de regra, apresentam um panorama e a afirmação sobre o acelerado envelhecimento populacional brasileiro e o cenário mundial deste fenômeno. Baseados em dados censitários e pesquisas, os números mostram que no mundo todo estamos vivendo por mais tempo. Essas análises trazem uma visão da inversão da pirâmide etária e nos apresentam as teorias e os conceitos sobre a revolução da longevidade partindo dos princípios da evolução da medicina e das taxas de natalidade (dentre outras). Mas, o que os números não nos mostram com clareza é a diversidade e a potência do envelhecer, a trajetória de vida, a quebra cotidiana do preconceito e a solitude vivenciada pelos mais velhos.
Desta forma, foi percebido ao longo do trabalho virtual do TSI no Sesc Rio de Janeiro, em 2020, sem pretensões romantizadas ou demasiadamente rebuscadas, a necessidade de demonstrar e reforçar a grande potência resguardada pela fase idosa e dar a ela o protagonismo da ação.
O não lugar
Antes mesmo de qualquer sondagem buscando razão, fundamento e entendimento acerca da relutância sobre o envelhecer, principalmente no aspecto físico, foi observado ao longo dos anos no TSI que isto não provém somente de uma “situação” imposta como limitante. Esta relutância vem de uma cultura hedonista secular, somada às imensas e estruturais formas padronizadas de enxergar, aceitar e dividir o que é belo, jovem e produtivo do que já não oferece mais esses requisitos. Além disso, os conceitos e preconceitos que muitas vezes ainda observamos dentro dos nossos próprios grupos no Sesc Rio de Janeiro e de idosos para idosos vêm dessas construções históricas, em que o corpo jovem é supervalorizado e o envelhecer é invalidado como vivência e como prosseguimento e qualidade de vida.
Pondé apud Medeiros (2004) reflete sobre essa questão ao dizer que: “Na sociedade que tem a juventude como valor e é ‘obcecada pelo novo’, a tradição e a memória se dissolvem, o lugar dos velhos é o não lugar” (MEDEIROS, 2004, p. 64). Uma vez que a sociedade não valida a velhice como uma experiência interessante e feliz, o idoso fica à margem por não ter a aparência e as contrapartidas sociais que são destinadas apenas a uma condição de juventude.
Outro ponto importante observado nos grupos e que inspirou a concepção do Velhices Fora da Caixa são os padrões comportamentais e sociais. Ou seja, padrões que ditam como a pessoa idosa deve se portar socialmente, os que as colocam em caixas predefinidas.
A proposta pende para uma reflexão sobre a ampla questão estrutural e preconceituosa que homogeniza o envelhecer dentro de um padrão permeado por questões raciais, religiosas, de classe e afetividade. A falta da aceitação social diante de um idoso que sofre discriminação ou que adota comportamentos classificados juvenis corrobora com imposições, tabus e julgamentos que afetam a vida de quem já passou dos 60 anos.
Vive-se a plena dicotomia de uma sociedade que até então anulou as necessidades de pensar a longevidade e todas as suas demandas, orbitando um capitalismo que lucra e incentiva a grande caçada e as buscas desenfreadas por “fontes da juventude”, em que observamos além da ditadura sob aspectos físicos, também a codificação da ideia de que “até pode ser velho, desde que não pareça velho”. E caso se pareça com um velho, aja de acordo com o que “lhe cabe”.
Somente a partir da virada de chave que devolve ao idoso o direito do proveito dessa fase que por direito é sim de vida, a sociedade começa enxergar a velhice não como um castigo ou sentença, mas como todas as outras fases da vida, que carrega bônus e ônus, mas também permite infinitas possibilidades.
Velhices fora da caixa
O Sesc realiza atividades voltadas para idosos há quase 60 anos e essa atuação se modifica através do tempo. O chamado TSI se ajusta à realidade existente do país e de regiões, municípios e bairros onde estão localizadas suas unidades operacionais. As ações são adaptadas de acordo com o perfil socioeconômico e cultural do público, do espaço geográfico, da diversidade da velhice e das novas tendências e estudos em gerontologia. Durante a pandemia de covid-19 não foi diferente, o trabalho foi adaptado e se renovou mantendo a segurança de todos, a qualidade das ações e atendendo à nova realidade e necessidade vigente no mundo.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os idosos faziam parte do grupo de risco da covid-19 e, consequentemente, essa também foi uma preocupação do Sesc Rio de Janeiro a partir de março de 2020. Na tentativa de conter o avanço da pandemia e a circulação do vírus, a OMS e outros organismos internacionais de saúde emitiram comunicados e diretrizes estabelecendo normas de segurança sanitária que implicavam na redução do contato externo entre as pessoas e na circulação em ruas e espaços públicos, orientando que todos ficassem o máximo possível dentro de suas residências. Desta forma, a diretoria decidiu que as unidades operacionais do Sesc Rio de Janeiro fossem temporariamente fechadas ao público, migrando e adaptando suas ações e programações para o ambiente virtual. O TSI do Sesc Rio de Janeiro iniciou, então, as ações virtuais logo na primeira semana após o fechamento das unidades operacionais, e assim se manteve de forma exclusiva por 1 ano e 6 meses.
Quem são os idosos do Sesc Rio de Janeiro?
Para entender a dimensão da dinâmica dessa mudança e o desafio enfrentado, é preciso mostrar quem e quantos são os participantes dos grupos do TSI do Sesc no estado do Rio de Janeiro em 2020. Os grupos de idosos estão presentes nas 19 unidades operacionais, distribuídas por 12 municípios. São mais de cinco mil idosos inscritos, divididos em 48 grupos, com atividades sistemáticas. A média de frequência por mês é de mais de 15 mil idosos, somando atividades sistemáticas e pontuais (que não precisam de inscrição no grupo).
Um ponto sobre os idosos do Sesc Rio de Janeiro que precisa ser elencado é a análise socioeconômica desse grupo. Dentre os cinco mil idosos inscritos, há um percentual de 73% com renda familiar de até três salários-mínimos e 65% moram de aluguel. Com 32% dos idosos morando sozinhos, é observada uma diversidade nos locais de residência. Existem idosos moradores de favelas, bairros de baixa e alta renda além de moradores de instituições de longa permanência. E, apesar de não se conhecerem e terem diferenças socioeconômicas, não houve quaisquer problemas na interação e não foram identificados problemas ou falta de respeito entre os idosos, pelo contrário, foi percebida uma maior empatia e cooperação em comparação às ações de intercâmbio presenciais realizadas anteriormente.
Diante desse universo, e mesmo com ações voltadas à inclusão digital realizadas anteriormente à pandemia, não havia dados sobre a rotina e o acesso em ambientes virtuais desses grupos, ou mesmo sobre a posse de smartphones e computadores. O único dado que a equipe possuía era o acesso da maioria deles às redes sociais e aplicativos de mensagem, como Facebook, WhatsApp e Messenger.
Sendo assim, o maior desafio da atuação virtual era a inclusão digital a distância e o acesso às ferramentas e aos aplicativos. Mesmo não havendo uma universalização do acesso à internet, tanto no Brasil quanto no estado do Rio de Janeiro, e mesmo diante da falta de familiaridade com o meio virtual, o número de idosos que mantiveram contato e participaram das ações foi superior ao esperado. Mais de 50% dos idosos inscritos nos grupos (cerca de três mil pessoas) mantiveram ações diárias no Sesc Rio de Janeiro por meio dos grupos de WhatsApp e Facebook, lives, salas de Zoom e Google Meet, bailes e videoaulas.
O desafio da inclusão digital foi vencido semana a semana ao mesmo tempo em que proporcionamos maior segurança na participação do público 60+ nas atividades por meio de ações virtuais, contatos individuais e monitoramento. As ações foram fundamentais para manter os idosos ativos e seguros dentro de suas residências, informados, minimizando o impacto causado pelo isolamento social.
Um dos pontos do trabalho virtual foi o constante incentivo ao uso e protagonismo deles nas redes, o que resultou na participação como convidados em lives e a interação e intercâmbio entre grupos de diferentes unidades operacionais e municípios. Nesse inédito intercâmbio virtual e interação entre grupos surgiram propostas de projetos e ações, criando um e amplo campo de conhecimento para pesquisas, observações e atuação profissional do Sesc Rio de Janeiro. Foi também um espaço de escuta que resultou no reconhecimento de pontos e questões em comum, mesmo com a diversidade vigente.
“Cada um na sua”
Quando tratamos da velhice, primeiramente pensamos que é uma etapa do curso da vida, em que através do avanço da idade ocorrem mudanças físicas que afetam as relações do indivíduo com o seu contexto social.
A vida de cada indivíduo é repleta de singularidades que o tornam único, por consequência o processo de envelhecimento se dá de forma diferente para cada pessoa. Sua dimensão existencial, as mudanças no mundo e na sua história pessoal farão com que cada pessoa idosa seja única.
A tradicional representação da velhice associada à aposentaria, à reclusão e ao descanso tem sido modificada, surgindo um novo cenário no qual a satisfação pessoal, a flexibilidade, o aprendizado, os vínculos amorosos e afetivos têm sido constantes. Hoje temos idosos fazendo graduação, mestrado, doutorado, balé, artes plásticas, escrevendo livros, aprendendo a escrever, encontrando um novo amor ou (re)descobrindo sua sexualidade, viajando sozinhos, sendo youtubers, influenciadores digitais, empreendendo. A velhice fugindo da conotação limitante e, em muitos casos, sendo libertadora.
Além disso, com os avanços nas discussões sobre o envelhecimento também ocorre a visibilidade das diferentes velhices, como a velhice negra periférica, a velhice indígena, a LGBTQIA+, a de pessoas com deficiência, a dos idosos que residem em instituições de longa permanência, onde são discutidas formas de acesso a direitos de proteção social, como assistência, saúde pública, educação e cultura.
Mas, mesmo com todo esse cenário ainda era visível no processo de intercâmbio virtual entre os idosos dos grupos que eles precisavam se reconhecer, falar e conversar sobre toda essa quebra de paradigmas. Como já dizia Simone de Beauvoir: “Queiramos ou não, acabamos por rendermos ao ponto de vista de outrem” (1990, p. 353). Nesse caso, além do ponto de vista, era necessário se reconhecer no outro, ter essa representatividade.
Ao longo das interações sociais virtuais realizadas na pandemia, ficou evidente que mesmo na peculiaridade singular de cada um existe a falta da representatividade e do espaço de mostrar que estigmas e tabus podem ser modificados.
Diante das problematizações expostas, sentimos a necessidade de dar voz a esse novo olhar diante do conceito velhice e da representatividade existente. Assim nasce o Velhices Fora da Caixa, atividade que entre tantos objetivos direciona o idoso a um lugar de fala e pertencimento de maior grandeza, visando a demonstração ativa e prática das muitas possibilidades iniciadas ou continuadas na fase idosa.
Fora da caixa
Dentro dos próprios grupos havia conceitos que visivelmente não faziam parte da linha de pensamento dos idosos, mas que os cercavam e que sempre os faziam pender para frases como “eu não posso fazer isso”, ou ainda, “estou muito velho para isso”, mas por diversas vezes as frases tendiam a uma ridicularização e discriminação estrutural e pessoal apenas ao pensar em situações ditas mais ousadas. Desejos e pensamentos que eles guardavam e que conflitavam o tempo todo no íntimo. Pela força motriz ao qual sempre se baseou o TSI não só no estado do Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil, os participantes são estimulados o tempo todo a exercer e litigar seus espaços e protagonismo e notoriamente muitos deles acatavam a ideia, se fortaleciam dentro dos grupos, mas não encontravam espaço para que suas idealizações
e sonhos se tornassem palpáveis.
Foi nesse momento que surgiu a proposta de trazer para a realidade de todos a concretude desta fala incansável sobre o protagonismo, sobre a quebra de tabus e sobre as mais diversas formas e infinitas escolhas de como cada um poderia exercer seu papel. Muito além de trazer exemplos e vivências, a intenção era dar prioridade às vozes, buscando dentro dos próprios grupos, em âmbito regional, a maioria desses relatos. Motivando não só o dito transcender de pensamento, mas vivificando os ganhos de troca de grupo para grupo, colocando a todos, idosos e analistas do Sesc Rio de Janeiro, em contato tangível e próximo com essas valorosas experiências.
O Velhices Fora da Caixa chega como proposta de prática para composição da grade de atividades do Sesc alusivas ao Dia Internacional do Idoso, em 1° de outubro, no atípico e desafiador ano de 2020.
Já no primeiro encontro notamos seu grande potencial e perpassamos de uma atividade que teria começo, meio e fim para o entendimento de que seria contínua e ampliável a desdobramentos futuros, com as mais diversas temáticas apresentadas, muitas vezes como laboriosas em qualquer fase da vida, mas exemplificadas, realizadas e compartilhadas por idosos que não aceitaram ou têm trabalhado para a não aceitação de rótulos sociais, discriminatórios, tolhedores e cerceadores de desejos, capacidades e sonhos.
O projeto na prática
A ideia primária partia de uma edição única, por meio de um bate-papo via Zoom, onde reuniríamos os iguais e os diferentes. Com duração de 2 horas e com 10 minutos de fala para cada apresentador, a mediação de cada edição teve o desafio de conectar as falas e terminar os encontros com uma reflexão sobre os temas discutidos e debatidos por todos. O tema inicial era idosos praticantes de esportes radicais, danças e atividades consideradas “exóticas”, com algum protagonismo cultural de grande expressão, para compartilhar suas experiências com o grupo, tirando dúvidas e sanando curiosidades. Mas a crescente da ação tomou tamanha proporção que foi necessária a criação de edições semanais ampliando também as temáticas.
Entre muitas temáticas trazidas pelos idosos, tivemos: velhice solidária, velhice radical, velhice literária, velhice teatral, velhice que dança, do meu terreiro cuido eu, velhices na linha de frente, velhices LGBTQIA+, velhice prateada e corpo na velhice e autoaceitação. A cada encontro ficava mais evidente o aumento da adesão e a repercussão das histórias compartilhadas.
Semanalmente apresentávamos o tema aos grupos de idosos de todas as unidades e abríamos inscrições para os que tinham interesse em se apresentar no projeto. Com a mediação de um profissional do Sesc Rio de Janeiro e, por algumas vezes, convidados externos, cada idoso trazia sua trajetória de vida e testemunho sobre o tema. Após a explanação, abríamos a discussão para o grupo ouvinte, sempre refletindo sobre os padrões e as diversas possibilidades na velhice. A participação dos apresentadores e ouvintes era estimulada o tempo todo, encorajando a troca de experiências.
O material originado desses encontros foi de valor inestimável e pedia continuidade, desdobramentos e uma visibilidade ainda maior. Era nítido que a nossa “prata da casa” tinha densidade e riqueza e que até então era ainda pouco conhecida de forma aprofundada. A atividade ilustrou as potencialidades dos grupos, principalmente a partir das trocas e vivências, ainda mais importantes no momento da pandemia. A ação ajudou a agregar e amenizar os impactos do isolamento social vivenciado pelos idosos.
A equipe pôde perceber o impacto que a atividade teve nos grupos através da devolutiva dos idosos, durante e depois dos encontros, por meio de depoimentos:
Depoimento lindo da Emília, me senti representado e encorajado a fazer mais ações solidárias. Parabéns pelo trabalho e quem sabe, um dia, possam juntar seu grupo com o nosso (Truperapeutas do Riso) e fazermos uma grande “bagunça” com as crianças, né??! Um grande abraço ao grupo Doando Amor de Barra Mansa! (Marco Braga, Barra Mansa – tema velhice solidária).
Minhas rugas, sinais do que vivi. Os bons e maus momentos deixaram no meu rosto as marcas de expressão. Tais rugas, para mim, comparo a ornamentos do meu próprio viver em plena exposição (Ana Regina, Niterói – tema corpo na velhice e autoaceitação).
Religião é parte da vida de qualquer pessoa (Damiana, Duque de Caxias – tema do meu terreiro cuido eu).
Com dez encontros em 2020, discutimos e ouvimos histórias sobre o exercício da solidariedade através do voluntariado, da descoberta da literatura e da realização pessoal e a coragem de publicar seu primeiro livro aos 83 anos, a descoberta da paixão pelas artes cênicas e dança e o desafio de se apresentar em um teatro, mesmo sem o apoio familiar, dentre tantas outras. Conhecemos idosos que na maturidade participaram de maratonas, voaram de asa delta ou iniciaram atividades circenses e hoje vivem com mais saúde e disposição do que antes, participando e ministrando palestras motivacionais a jovens e adultos. Uma dupla quebra de preconceitos ao ouvirmos as histórias sobre as idosas que vivem a sua ancestralidade através das religiões de matriz africana, e em seus terreiros inspiram uma nova geração. Sobre a aceitação do corpo e da beleza ao envelhecer, eles contaram e discutiram sobre a liberdade do exercício da afetividade e sexualidade, seja ela qual for, e como foi viver a luta e a resistência para ser quem são.
Um ponto de destaque e emoção do projeto foram as experiências de quem esteve à frente no combate ao coronavírus durante a pandemia. Enfermeiras e auxiliares de serviços gerais dos hospitais do Rio de Janeiro contaram como foi o processo de superação do preconceito com a idade, relataram o orgulho do trabalho realizado e o desafio de conviver tão próximas à doença, sendo do grupo de risco. Essas falas deram subsídio para o debate sobre a vacina e a importância de acreditar na ciência. Assunto necessário diante das dúvidas de alguns idosos, que não estavam confortáveis em se vacinar.
Os idosos contavam suas histórias em formato livre e a equipe elaborava um conjunto de três perguntas sobre o tema para direcionar e estimular a fala. Desta forma, mesmo os idosos que tinham se inscrito como apresentadores, mas que não tinham traquejo para contar sua história, narravam seu percurso de forma a despertar a curiosidade dos demais.
Nosso receio era que os idosos não soubessem contar sua própria história, esquecendo ou omitindo sem querer partes importantes que engrossassem o caldo da discussão. Fazíamos então um roteiro prévio com perguntas para que as falas ficassem com todos os detalhes (Thais Castro).
Destacamos aqui a emoção das histórias de vida, superações e posicionamento de cada um dos apresentantes sobre o tema, que levou a um processo de representatividade e reconhecimento dos ouvintes. A partir de cada história, os demais participantes se encorajavam para contar as suas ou mesmo comentar e debater.
Em algumas edições ficou claro que existiam preconceitos e tabus dentro deles mesmos, e era corajoso vê-los abrir o microfone, contribuir com a fala do apresentador e falar coisas do tipo: “Eu nunca pensei que isso era preconceito”, “Eu sempre quis fazer isso, é libertador” ou “Nunca pensei que outra pessoa passasse por essa mesma situação” (Renata Alexandre).
Nessas nove edições foi construído um processo de intercâmbio e troca de saberes muito rico e, em alguns momentos, houve até quebra de paradigmas e preconceitos, pois a heterogeneidade dos grupos e o universo social e cultural em que cada idoso está inserido em muitos momentos os impedia de refletir sobre suas próprias limitações em relação a si e ao outro.
E nesse processo de participação e escuta das experiências e histórias de vida, relacionados a cada tema proposto, foi possível perceber o processo de reflexão e ressignificação de atitudes e visões de mundo através das devolutivas posteriores que os membros dos grupos relatavam para os analistas do Sesc Rio de Janeiro.
Considerando o processo de isolamento social, era visível também a necessidade que eles tinham de falar e serem ouvidos. Eles estavam em um espaço seguro, rodeado de pessoas e histórias parecidas, eles queriam esse espaço e precisavam “pôr para fora” tudo aquilo que viveram e sentiam (Flavia Mazette).
Foram necessários momentos de planejamento, avaliação e reavaliação da atividade, principalmente na questão do acesso dos idosos às plataformas digitais. A devolutiva dos dois primeiros encontros foi primordial para que toda a equipe pensasse em formas de alcançar o maior número de participantes possíveis. Através do acompanhamento realizado pelos analistas com os grupos, percebeu-se que o Youtube era a plataforma que eles tinham mais facilidade de acesso, pois já tinham o hábito de assistir a nela. A partir de então, realizamos a atividade no aplicativo Zoom com transmissão simultânea no Youtube, possibilitando maior alcance. Toda a equipe se mobilizava a cada edição, se dividindo na operação das duas plataformas, repassando as perguntas realizadas no chat do Youtube para o Zoom, para que nenhuma oportunidade de troca fosse perdida. E o resultado foi percebido na transmissão simultânea, com um aumento de 50% na participação possibilitando, assim, um alcance de público de quase quatro mil participantes em todas as edições.
O partilhar proporcionado pelo Velhices Fora da Caixa entusiasmava a todos e adicionalmente nos brindou com a humanização de tudo o que os idosos podem fazer, e de fato eles podem muito! O Velhices Fora da Caixa foi transformador em muitos aspectos para todos nós, não somente para os grupos. Cada edição foi desafiadora desde a curadoria do tema e convidados até a execução com os idosos. Não foram só os idosos que saíram da caixa, nós também saímos.
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