Ed. 84 – O manifesto das Espécies Companheiras

10/02/2023

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Por Octávio Weber Neto

Quem é esta Senhora escritora? Donna Haraway, mulher, companheira de cães de compa- nhia – ou melhor, da cadela Cayenne, que a inspirou nesta escrita revolucionária –, cientista, bióloga, filósofa e expoente teórica feminista, nasceu em Denver, Estados Unidos, em 1944.

Especializou-se em zoologia e fez doutorado em biologia comportamental na Universidade de Yale. Realizou diversas pesquisas relacionadas ao estudo feminista das ciências, lecionando na Universidade do Havaí, Universidade Johns Hopkins e Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Tornou-se a primeira professora de teoria feminista com estabilidade e reconhecimento nos Estados Unidos. Aposentou-se em 2010, mas segue pesquisando e atuando como grande ativista americana e filósofa contemporânea, inspirada na ecóloga e bióloga Lynn Margulis, que referencia muitas de suas pesquisas.

Haraway apresenta reflexões e manifestos sobre uma vida mais possível de ser vivida para todas as espécies, mesmo diante de todas as diferenças que nos tensionam e nos identificam como indivíduos. Acredita que essas diferenças não deveriam separar ou desconectar uma necessária convivência simbiótica entre humanos e não humanos em sociedade.

O Manifesto das Espécies Companheiras, obra recente de Haraway, apresenta uma saborosa crítica canina sobre a implosão da natureza e da cultura gerada a partir desta aproximação entre espécies companheiras. Fernando Silva e Silva, que brilhantemente faz o posfácio do livro, enfatiza que entender esta delicada e aparente relação amorosa entre cachorros e humanos é historicamente complexa e repleta de descobertas singulares e profundas. Sobre a parceria entre essas espécies ditas companheiras, ele arrisca dizer que são parceiras no “crime da evolução humana”, já que os cachorros, desde o início, foram astutos como os coiotes – promovendo um novo e atento pensamento, que Haraway chama de “alteridade significativa”, um respeito mutualista que leva a uma possível vida multiespécie, um caminho factível para um futuro de sociedades mais justas para todas as formas de vida da Terra.

Haraway abre seu manifesto se intitulando como uma pessoa “híbrida” meio canídeo, meio hominídeo; animal de estimação de outros animais; professora, cadela, mulher; atleta- -condutora de agillity – esporte realizado entre humanos e seus cães, que percorrem um circuito de habilidades com premiação no final, envolvendo técnica, obediência, reciprocidade e respeito mútuo, muito praticado nos Estados Unidos. Ela faz uma incrível análise das históricas relações humanas com os cachorros, além da parceria e intimidade doméstica e urbana nos dias de hoje, mas que no passado centrava-se no campo, no pastoreio de ovelhas por cães, na vigília contra lobos, como tração de trenós e contra a invasão de coiotes. A autora chega a mostrar que há DNA canino em nosso sangue e vice-e-versa, apresentando esse contato milenar e ambíguo de beijos, pelos, mordidas, carícias, afetos e desafetos na vida em família com esses animais.

Desta parceria ancestral, nascem algumas indagações da autora – seria mesmo um amor incondicional? Um amor bruto e despretensioso? Ou apenas uma convivência respeitosa e mútua, em que a obediência é construída na parceria diante das diferenças e fronteiras entre as espécies?

Donna Haraway, de 78 anos, vem estudando há mais de 30 anos a vida contemporânea e a tecnociência imperialista do Antropoceno (ou melhor, Plantationceno), segundo o qual estamos vivendo uma era planetária, em que se critica o porquê de ainda sermos o centro das questões e não questionarmos o sistema econômico em que escolhemos viver e nossa consequente desconexão com a natureza.


Pessoas idosas, pessoas com baixa visão ou cegas, na maioria urbanas, em muitos lugares do mundo, usam cachorros como seus cães de serviço, como cães-guia, de guarda ou essencialmente de companhia. Isso revela parte deste mutualismo multiespécie, ora mais positivo, ora mais questionável e repetidor das desigualdades do sistema social humano.

Em 1985, publicou o Manifesto Ciborgue na tentativa de compreender de maneira feminista esta implosão da natureza e da vida cada vez mais inviável entre espécies no nosso planeta, sugerindo duvidarmos desta dependência ingênua e submissão irresponsável até mesmo com as inteligências artificiais ciborgues, levando a refletir sobre caminhos possíveis para que tecnologias e natureza caminhem juntas e não em lados opostos. Com ambas em comunhão podemos fazer uma sociedade vivível para todos e tornarmo-nos espécies companheiras em conexão.

Já nesta obra recente, Haraway entrevistou e escutou histórias de diversas mulheres e seus cachorros, incluindo sua própria história de vida com sua parceira, a cadela Cayenne, para tecer outras ecologias e narrativas decoloniais, que atravessam culturas, natureza, corpos diversos e alteridades. A autora faz um apanhado da “cachorrolândia” – um mundo peludo em que a velhice canina seria a adolescência humana (entre os 14 a 16 anos), mostrando que este aparente paralelismo é falso, pois a sabedoria dos cachorros é anterior a nossa maturidade social e evolutiva. Convida a analisarmos criticamente esta parceria de forma inédita, duvidar de uma relação apenas afetiva, construída de forma intencional e estrutural na sociedade, e suspeitar sobre haver uma misteriosa ética entre cachorros e humanos para que esta mútua convivência dê certo de fato. Mostra haver uma construção paulatina de respeito e não apenas uma suposta obediência comportamental e behaviorista de ação e reação, com apenas uma troca de petiscos, abrigo e recompensas.

Haraway enuncia em sua pesquisa que o cão não é um objeto feito para ser companheiro de humanos, mesmo que historicamente modificado geneticamente ao longo de milhares de anos pela ação humana, transformando-o para o pastoreio e até como arma de guerra. Os cachorros existem como nós, como seres vivos distintos, são espécies diferentes de nós que habitam o mesmo planeta; não podem ser vistos como “crianças peludas”, que simplesmente nos amam reciprocamente, como ela cita, em provocação ao afetuoso modo que ela mesma questiona.

Pessoas idosas, pessoas com baixa visão ou cegas, na maioria urbanas, em muitos lugares do mundo, usam cachorros como seus cães de serviço, como cães-guia, de guarda ou essencialmente de companhia. Isso revela parte deste mutualismo multiespécie, ora mais positivo, ora mais questionável e repetidor das desigualdades do sistema social humano. A autora lembra que não à toa existem adjetivos humanos cria- dos para rotular vira-latas em qualquer idioma, enaltecer pedigrees ou aposentar cães de servi- ço e ao mesmo tempo executar ou castrar cães abandonados e de rua.

A pesquisadora cita que são na maioria mulheres brancas, de meia-idade e de classe média as que praticam o agility, o que ela sinaliza como um outro exemplo de que há um racismo estrutural até mesmo neste companheirismo humanos-cachorros. É sempre uma relação de benefícios e afetos para humanos, mas é também uma relação de respeito e alteridade significativa para cães. Sabemos o que somos a partir do outro, numa relação de qualidade e aprendizado mútuo, a partir de um respeito que não é reduzido a apenas amor. Por meio do adestramento canino Haraway faz uma reflexão de como podemos aplicar uma filosofia de vida que visa uma nova relação entre todas as demais formas de vida que temos contato no planeta, incluindo outros humanos.

A visão filosófica com a qual a escritora finaliza a obra – que abre outras mobilizações e pensamentos – trata de uma atual era relacional entre espécies distintas, essencialmente entre humanos e cães, no ápice do capitalismo, que ela chama de “chthuluceno”, remetendo ao mitológico monstro de muitos tentáculos que vem das profundezas e quer se apropriar de tudo, e ao agility. Esse esporte tem sua origem no schutz- bund, em que cachorros e humanos praticam consciente e inconscientemente uma constante prova de obediência, proteção, rastreio e comandos que dependem de um respeito mútuo para que a convivência seja o objetivo evolucional entre espécies realmente companheiras e não mais a exploração e a construção cultural egocêntrica humana sobre as espécies para seu bel-prazer, aparentemente afetiva, mas que transforma esse “companheirismo” na perda da produção do diferente, em imagem e semelhança humana, em detrimento da alteridade de outras formas de vida. Esta seria uma coevolução crítica, que construirá nossa co-história de vida, como Ha- raway menciona!

Que esta leitura seja uma inspiração à você, leitora e leitor da revista Mais 60, e que o envelhecimento e as relações sejam vistos também como um processo biopsicossocial natural conectado com a natureza, que duvidemos da empatia por si só, ou do adestramento para a vida em sociedade, e que as espécies companheiras humanas e não humanas sejam um caminho para pensarmos na qualidade de vida de quem cuida e de quem é cuidado, como seres vivos que necessariamente dependem de respeito mútuo e de uma alteridade significativa ao longo da vida. Um viva à alteridade como um valor ético para a compreensão mais profunda sobre o outro!

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