Ed. 85 – Entrevista: Ana Maria Carvalho

16/01/2024

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Ilustração: Rômolo D’Hipólito

“Eu tenho 70 anos e brinco o tempo todo. Quero mais é brincar. A minha mãe tem 101 anos. Ela ainda brinca até hoje. A minha mãe passa trote o tempo todo, ela brinca, ela canta, então, isso vem da nossa ancestralidade. Eu acho que nem é daqui do Maranhão. Vem da África, os povos brincavam muito. O tempo todo! E toda essa resistência cultural se transforma, em vez de ficar sofrendo a gente vai se transformando em música, em gesto.”

Ana nasceu no Maranhão, num quilombo, na cidade de Cururupu, e é herdeira direta das tradições populares maranhenses como o Bumba meu Boi, Tambor de Crioula, Cacuriá, Ciranda, Ladainhas do Espírito Santo e Cantigas Tradicionais. Durante 30 anos foi integrante do Teatro Ventoforte e é fundadora do Grupo Cupuaçu, que completou 35 anos em 2021. Em 2019, representou o Brasil no teatro de Artes Cênicas de Setúbal, em Portugal.

Em julho, completa 71 anos e conta para a Revista Mais 60 como encara o próprio envelhecimento e como a cultura popular enxerga a velhice. Sua história representa a vida de muitas pessoas idosas brasileiras. Seu suporte e sua força sempre vieram da cultura ancestral, que apoiou suas andanças pelo mundo, ao mesmo tempo que manteve suas raízes na terra.

Mais 60 Você nasceu no Maranhão, é uma mestra da cultura popular, reconhecida no Brasil e internacionalmente. Gostaria que você contasse das suas lembranças de menina no Maranhão, apreendendo a cultura, como foi isso?

Ana Eu nasci nesse berço cultural. Minha cidade é um quilombo maranhense, um lugar muito rico. Nunca na minha infância eu me senti pobre, com diferença social. Todas as crianças tinham o mesmo cuidado, usavam as mesmas roupas, as mesmas brincadeiras. Então, não tinha alguém de classe social mais alta. Para a gente, aquele universo era olhar no olho do outro o tempo todo, essa troca era contínua. Então, nasci neste berço cultural onde meu pai era mestre popular, minha avó era caixeira do Divino Espírito Santo. Quando tinha sete, oito anos, eu pegava o Divino Espírito Santo e saía pedindo “joia”, que era como uma esmola para fazer a festa do santo. As pessoas davam dinheiro, davam flores, davam ovos, davam o coco para ralar e fazer o bolo. Então, existia muito essa troca. Essa doação, essa coisa do doar, é muito profunda e eu trouxe comigo, porque todas essas vivências, essas experiências da minha infância, eu trago comigo até hoje. Isso está no meu trabalho, porque eu não consigo brincar onde não tem criança. Quando a pessoa fala “mas você tem 70 anos, o que você faz para não parecer 70, a idade que tem”? Eu falo, gente, primeira coisa, não carrego mágoa nenhuma dentro de mim, eu brinco muito, brinco o tempo todo e vivo em comunhão. Eu acho que essa energia do trocar é muito saudável. Acho que a idade não tem um número, a idade para mim é espiritualidade.

Mais 60 Falando de idade, o que é envelhecer para você?
Ana Para mim, a idade é um estado de espírito. Mesmo porque quando eu tinha 19 anos me sentia muito mais velha do que hoje que tenho 70. Hoje não, eu tenho 70 anos e brinco o tempo todo. Quero mais é brincar. A minha mãe tem 101 anos. Ela ainda brinca até hoje. A minha mãe passa trote o tempo todo, ela brinca, ela canta, então, isso vem da nossa ancestralidade. Eu acho que nem é daqui do Maranhão. Vem da África, os povos brincavam muito. O tempo todo! E toda essa resistência cultural se transforma, em vez de ficar sofrendo a gente vai se transformando em música, em gesto. Se você quer fazer um gesto para dar o soco em alguém, ele se transforma na brincadeira, esse gesto que é simples, que é leve, esse movimento vira um abraçar o outro. Então, eu acho que a cultura é fundamental para nossa saúde, principalmente, para mim, é uma cura. Uma época tive [um] problema sério de dor no ciático, e tinha o Tambor de Criola, uma das danças maranhenses que a gente faz, eu falei: “Não vou ao Tambor, porque estou com dor”. E ficava deitada, o Tambor tocando e eu pensava: “Vou levantar só para dar uma olhadinha”, aí eu levantava. Daí chegava lá, começava a dançar e não ia embora. No outro dia eu não tinha dor. Eu acho que a dor envelhece, os problemas envelhecem. Se a gente afasta os problemas, a gente fica mais leve. As pessoas dizem: “Ah, mas você não tem cabelo branco”. Mas sou uma pessoa que vive em movimento e eu colho para mim o que é melhor para mim. O que não me serve eu deixo ir embora.

Mais 60 Você acredita que as pessoas saem diferentes desse encontro com a cultura popular proporcionado pelas suas apresentações?
Ana Uma vez, no final do show, um senhor veio falar comigo. Ele disse: “Quando você começou a cantar, eu fiquei muito emocionado. Eu me lembrei da minha casa lá no interior. Eu lembrei da minha mãe coando café, lembrei da minha mãe lavando a roupa e, ao mesmo tempo que fiquei triste, foi me dando uma alegria muito grande, porque você me fez voltar para a minha casa, onde eu morava com minha mãe. E minha mãe faleceu um tempo desse”. Então, a importância desse trabalho é justamente que as pessoas resgatem a memória afetiva, as lembranças da infância, as brincadeiras. Tudo bem que ele não faça a mesma brincadeira, mas ele vai lembrar outra brincadeira que a avó fez, então é esse movimento. E isso é um presente para a gente manter a nossa infância, a nossa criança viva.

Mais 60 Então você é quilombola? E as pessoas velhas que viviam lá com você? Você lembra delas? ana Sim. Sou quilombola de quilombo maranhense. Naquela época as pessoas não falavam quilombo, hoje eu sei que nasci em um quilombo. Eu lembro da minha avó paterna, foi a única avó que conheci. Eu não conheci meus outros avós, nem meu avô paterno e nem meus avós maternos. A minha avó era caixeira do Divino Espírito Santo. Ela rezava ao Divino Espírito Santo, tocava caixa, fazia ladainha para o santo, e ela era muito próxima, porque eu era a única neta dela. Eu era a única filha da minha mãe, de meus pais, até nascer a minha irmã, a diferença é de oito anos. Então, era um chamego com a minha avó, era um cuidado, de almoçar com ela de domingo, dela ficar cantando para mim, fazendo renda de bilro e conversando comigo. Eu tenho essa lembrança afetiva da minha avó.

Mais 60 As suas lembranças do quilombo, de seus pais e avós, quando comparadas com os velhos que adoecem por viverem isolados, sozinhos, principalmente com a pandemia e o confinamento, fazem pensar que envelhecer nas culturas tradicionais é diferente. Então, qual a função da pessoa velha na sua tradição quilombola?

Ana A função do velho, primeiro, é passar essa memória, porque se ele para os mais novos não têm como ter essa memória afetiva, a função dele é manter essa memória viva e que essa história não morra. O velho é superimportante por isso. Eu vejo pela minha mãe, que vai fazer 101 anos e ela conversa o tempo todo com os netos, com os bisnetos. É muito importante a relação dos netos com os avós. Então, eu acho que a função do velho é manter essa raiz viva, atenta, puxar esse povo que está nascendo e que pode manter essa história. Essa história é muito oral, a cultura popular é oral, é oralidade o tempo todo. Então ela canta, ela dança, ela conta história… Eu tinha, por exemplo, um avô que era tio da minha mãe, chamava ele de vovô porque ele gostava. Ele contava histórias para a gente toda a noite. E meu pai também contava histórias. Ele ou meu pai se deitavam na rede, nós éramos cinco filhos, colocavam uma rede grande e contavam histórias para a gente até a gente dormir. Depois da gente dormir, ele colocava a gente na nossa cama. Ele contava histórias enquanto minha mãe limpava a cozinha e essa experiência com meu pai, para a gente, foi um alicerce. E todos nós temos essa fortaleza que veio de nossos pais, de nossos ancestrais. Sabe, no convívio, no alimento, a minha avó cozinhava muito. A comida é uma referência que tenho da minha família. O alimento, o celebrar o alimento. Preparar junto o que a gente plantava. Então a gente plantava, a gente colhia, esse cuidado de não pegar fruta verde, a fruta não está boa, vamos esperar. Porque o tempo é importante também. Até para envelhecer o tempo é importante. A gente não precisa correr para o tempo envelhecer. Vamos com calma, vamos aproveitar. Claro que nós vamos envelhecer, mas vamos com calma, vamos viver o dia a dia. Vamos aproveitar esse dia a dia, vamos brincar.

Mais 60 Você é uma mulher idosa, negra, artista que segue no seu ofício e encanta as pessoas por onde passa. Você acredita que inspira o público que te assiste, que serve como um exemplo de resistência?

Ana Sim, eu sirvo mesmo. Uma vez eu estava fazendo um espetáculo no Centro Cultural São Paulo, um espetáculo chamado O rio que vem de longe do Ventoforte, e era a única atriz negra. Fizemos o espetáculo para uma escola e daí uma menina veio e falou assim para mim: “Na minha casa é todo mundo negro, meu pai, minha mãe, meus irmãos, todo mundo é negro”. Eu falei: “Nós, negros, a gente pode estar onde quiser. A gente pode realizar todos os nossos sonhos. A gente tem que ir aonde quiser”. Não falei “não deixe o outro te atrapalhar”, só falei: “Realize o seu sonho”. Só isso. Vou em frente. Eu ouvi várias vezes na vida as pessoas falarem: “Ah, porque eu nunca vi negro fazer teatro”, que a minha voz era feia para cantar, eu ouvi tanta coisa, mas tanta coisa, sabe? Eu vou em frente.

Mais 60 Você veio do Maranhão direto para o Teatro Ventoforte?
Ana Não. É uma longa história. Eu saí do Maranhão e fui morar em Belém com uma tia que estava grávida e precisava de uma menina para ajudar com a nenê que ia nascer. Em Belém eu fiquei três anos cuidando do meu primo. Depois fui para o Rio de Janeiro com minha tia. A tia Noca era cozinheira em uma casa e tinha uma vizinha que estava grávida também. Olha aí, sempre a criança. E a vizinha precisava de uma pessoa que pudesse a ajudar para ir para Manaus e ficar lá com ela. Eu falei, “eu vou, estou aqui sem fazer nada”. Fui com ela para Manaus, ser babá do menino. Fui, fiquei dois anos em Manaus. Depois, ela voltou para São Paulo e eu com ela de babá. Aí ela resolveu voltar para Manaus e eu decidi ficar. Fiquei em São Paulo, encontrei meu irmão que trabalhava no Ventoforte, o Tião, que mora até hoje no Morro do Querosene, e aí eu conheci o Teatro Ventoforte. Eu fui ver um espetáculo e o Ilo estava desesperado. Ele iria estrear um espetáculo, a costureira tinha sumido, estava tudo atrasado, costurar é outra coisa também que eu sempre fiz na minha vida. Eu comecei a bordar e ao mesmo tempo a costurar. Eu tinha uma tia que era costureira, e eu pegava e ia fazendo as roupas. Ela dizia: “Ana Maria, estou atarefada aqui, você não quer pegar na máquina?”. Eu pegava e comecei a costurar com ela.

Eu sempre fui independente, desde os 12 anos. Eu bordava, costurava, fazia minhas coisas, com 15 anos meu pai já não se importava tanto em me ajudar. E mesmo em Belém, quando eu morava com minha tia, eu costurava. E cheguei no Ventoforte, o Ilo falou que estava precisando de costureira, e falei: “Olha, senhor, eu costuro, não sou costureira de teatro, mas eu faço”. Ele falou: “Vem querida, está ótimo. Então me ajuda”. E no Ventoforte eu fiquei 30 anos.

Mais 60 E como foi a transição da babá, costureira, para a atriz?
Ana Então, aí que está, porque a minha vida é um bordado. Eu nunca falei, vou parar isso daqui para começar isso, sabe? Eu sempre vou. É um fluxo, sabe maré? E aí eu estava costurando e cantando. Antes desse momento, eu morava no Morro do Querosene e tinha um grande ami- go meu, que era do Maranhão, e ele ia correr na cidade universitária. E ele me chamou pra cor- rer. Eu respondi não vou correr, estou muito cansada. Então eu levava um livro, ficava embaixo da árvore lendo. E ele me incentivou a entrar no Coral da USP. Eu disse que não sabia cantar. E ele me disse se você sabe falar, você sabe cantar. Foi o primeiro empurrão que eu tive para cantar. Aí, fiz o teste, passei. Fiz cinco anos do coral da USP. Aí, cantando no Ventoforte, cantando como as trabalhadeiras, tipo as cantadeiras, porque as pessoas da cultura popular sempre trabalham cantando. Daí o Ilo ouviu e disse que eu cantava bonito e perguntou se eu não queria cantar no espetáculo. Comecei cantando. E aí pronto, porque era muito raro o Ilo pegar um ator para fazer espetáculo no Ventoforte. Ele pegava praticamente somente pessoas comuns. Eu entrei no teatro assim.

Mais 60 E a festa do Boi? Como ela entrou na sua vida?
Ana Então, nós somos filhos de mestre do Bumba meu Boi. Na região que a gente nasceu, tem vários ritmos de Bois, ritmos diferentes. Tem o Costa de Mão, tem o Zabumba, tem o Boi de Baixada, que também é chamado de Boi de Pindaré, tem o Boi da Ilha, que é chamado também de Boi de Matraca. E tem o Boi de Orquestra, que falam que nasceu depois, que tinha um grupo de Bumba meu Boi tocando em algum lugar, na periferia pequena, e todo dia passava um policial e via aquele povo tocando e ele saiu e pegou o saxofone dele e começou a tocar ali. Aí foram se aproximando os instrumentos de corda, sopro, daí criou o Boi de Orquestra. Mas geralmente essas danças, essas manifestações culturais, elas surgem assim, igual a dança do Coco, a pessoa está aqui aterrando a casa, batendo o chão e cantando como sempre canta. Também voltando na coisa da idade, quando você trabalha cantando, no final do dia você está muito menos cansada do que se você ficasse ali reclamando, porque o trabalho está difícil, entendeu? Você passa mais leve, saudável, e isso ajuda em tudo.

Mais 60 E a festa popular do Bumba meu Boi, realizada na comunidade do Morro do Querosene, no bairro do Butantã, em São Paulo, como surgiu? Você é uma das criadoras?

Ana O Tião já trabalhava no Ventoforte, ele criou um grupo e começou a dar aula. Um grupo de alunos que fazia teatro, ele resolveu formar um grupo e dar aula de cultura popular. Com esse grupo ele começou a brincar lá no Morro do Querosene. E a gente brincava. Uma coisa que sinto falta, quando eu falo de cultura, é que a minha cultura é como se fosse um alimento para mim, que eu trouxe da minha terra, e eu tenho o cuidado de manter ele todos os dias e também dividir com as pessoas próximas de mim. Não só essa metáfora de metacultura, mas também dentro da minha casa. Na minha casa a gente faz comida direto. Vem pedreiro, vem pessoa ensaiar, eu sempre sirvo alimento, porque é fundamental dentro da cultura, esse ritual do alimento, porque ele também é saudável, é o alimento, a cura.

Mais 60 E a festa do Morro do Querosene, o Grupo Cupuaçu, surgiu dessa tradição de compartilhamento dos alimentos que alimentam o corpo e a alma?

Ana A gente brincava lá no Morro. Porque lá no Maranhão, a gente brinca Boi. Sou brincante de Boi. E a gente brincava, sem intenção de ter um grupo. E aí, de repente, eu e a Erica Marques, a gente improvisou uma roupa para o Tião. Aí a gente fez um peitoral, bordamos e fizemos um saiote. Foi a primeira roupa do Boi Cupuaçu. Então, o Cupuaçu nasce daí. E começamos a brincar. Como eu falo para as pessoas, eu moro em São José dos Campos e a dona Ângela Savastano, que é a diretora do museu cultural, Museu do Folclore, ela fala: “Ana, faz o seu Boi”. E eu respondo: “Dona Ângela, Boi não se faz, Boi nasce, eu não tenho como fazer o Boi, o Boi nasce”. Sabe, é como uma criança em que a mãe está grávida, ela vai fazendo o enxoval, vai avisando os amigos, entendeu? Assim é o Boi. Ele não pode surgir de uma hora para outra, que ele não vinga. Na festa, a gente faz o nascimento, que é no sábado de aleluia, a gente faz o batizado, que é na segunda quinzena de julho, e a morte do Boi, que é igual a nossa, a gente não sabe, ele que faz, pode ser em outubro, em novembro. Encerra o ciclo. E esse Boi do Querosene foi aos poucos, foi fazendo, foi fazendo, com batalha, não tinha sede. O Boi não tinha lugar para dormir, punha na minha cama, e eu dormia com o Boi. E quando eu tinha que namorar falava: “Boi, você vai sair daqui, porque hoje eu vou namorar”. E agente lutou muito. Fazia vaquinha para comprar figurino, rodava chapéu na praça para comprar material, então foi uma luta muito grande para esse grupo ir se fortalecendo e hoje ter 40 anos.

Mais 60 E o que a festa do Boi representa? ana Então, tem várias lendas a respeito do Boi. Tem uma lenda que João, ele faz aniversário no dia 24 de junho, né? No Maranhão é cheio de lendas. João tinha um boi de estimação. Era mui- to querido, e todo aniversário dele ele brincava na festa, todas crianças, todo mundo brincava com esse boi. Daí um certo dia, Pedro pediu esse boi emprestado. E João não emprestou, “é um boi de estimação, não empresto”. Daí, empresta, não empresta, João emprestou. Na festa do Pedro, o boi brincou, dançou, as crianças ficaram felizes, todo mundo ficou feliz, e aí chegou Marçal, que dizem ser um santo maranhense, São Marçal. O dia de São Marçal é 30 de junho, quando se celebra a festa do Boi lá em São Luís, onde tem a avenida São Marçal, a estátua de São Marçal bem grande, em frente ao boiódromo, que faz todos os Bois do Maranhão naquela avenida no dia 30 de junho. E nisso São Marçal pediu o boi emprestado, no meio da madrugada as pessoas começaram a sentir fome, desesperadas, não pensaram duas vezes, mataram o boi. E alimentaram todo o povo. E aí João: “Pedro, meu boi, Pedro, meu boi”. E Pedro não tinha boi para devolver, e João, “quero meu boi, quero meu boi”. E o povo fala que vai ter que dar um jeito, porque João está muito triste. Ficou quase em estado de óbito. A gente vai ter que dar um jeito do João ser um brincante, uma pessoa alegre como ele é, porque ele ficou muito arrasado com a morte do boi. Eles resolveram fazer um boi de brinquedo todo bordado de canutilho e missanga, e levaram para São João. E por isso que fazem Boi para São João.

Mais 60 A história do Boi é um resumo de tudo que você contou da cultura popular, ele alimenta as pessoas?
Ana E o Boi alimentou. E no Maranhão eles fazem mesmo, matam um boi, mata[m] o porco, servem alimento. O Boi sai dessa avenida São Marçal, ele vai para a comunidade. E na comunidade, janta lá. No Maracanã, que era do mestre Humberto, por exemplo, eles servem comida não sei para quantas mil pessoas. Outra coisa, comida de santo nunca falta. A festa de São Benedito é parecida, a Congada. É maravilhoso, é sempre em abril. A Congada, o que acontece? São várias Congadas do Sudeste inteiro. Muita Congada, criança, que é essa coisa também na cultura, que a criança e o adulto vão nesse fluxo ao mesmo tempo, tem as crianças brincando aqui, ao mesmo tempo dançando, e aí, no final, têm aqueles espaços de alimentos que são quase do tamanho dessa sala. E eles servem alimento para a multidão. É muita comida. E parece que quando é comida de festa, eu já nem sei se é profana ou sagrada, porque misturam o profano e o sagrado, elas se misturam tanto que até o profano tem que ter o sagrado. Por isso que antes da gente começar a festa do Boi, a gente monta nosso altar, reza para todos os santos, a gente reza para São João, a gente reza ladainha, a gente celebra e, aos poucos, a gente vai começando a tocar aqueles pandeirões, aquecendo em volta da fogueira e dançando e saindo um pouco para esse lado profano em que o cara começa a cantar, o cara não, porque eu também canto: “Eu já falei com os olhos que te amo, você não ouviu, eu já falei com as mãos que te quero, você não sentiu, eu já fui até a lua pra tentar te convencer, acabei conquistando a lua, só não conquistei você”. Então, já saiu do sagrado, mas é o sagrado que dá essa fortaleza para você celebrar o profano. Ele se renova, ele morre, em dezembro ele é guar- dado, fechou, e aí só vai nascer no próximo ano.

Mais 60 Você percebe alguma diferença dessa menina que veio lá do Maranhão, costurar para o Ilo, depois cantar, dessa mulher que se apresenta hoje? Quais são as diferenças? Dessa mulher de 70 anos, que viveu tudo isso? Naquela época você não tinha essa bagagem, você tinha vontade, né?

Ana Eu acredito que nem a vontade era clara, me vejo essa menina, ela veio com o vento, então, assim, eu lembro de duas coisas que aconteceram na minha vida, ah, mas vou voltar uma coisinha. Quando eu saí do Maranhão a primeira vez, um amigo meu foi me levar até o aeroporto para ir para Belém. Quando a gente chegou no aeroporto, o avião tinha acabado de sair, eu perdi o voo. Aí eu dormi. Quando foi de manhã, eu acordei, deu no jornal que o avião tinha caído, morreu todo mundo. E fiquei um tempo tentando me reestabelecer, tentando voltar, e quando voltei eu não era a mesma pessoa. Eu voltei com muito agradecimento a Deus e agradeço todos os dias pelos momentos da minha vida. Por isso que talvez eu tenha esse olhar para a vida, porque nasci de novo. Eu não fui naquele voo. Se Deus me deixou aqui, está ótimo, eu quero é mais celebrar a vida todo dia, a cada dia, sabe? O que não me serve vou deixando passar. Eu não guardo mágoa, rancor, nada. Só agradecimento, só agradecimento mesmo. Tem um altar na minha casa. As pessoas chegam lá, tem uma Nossa Senhora Aparecida grande, né, que eu ganhei do mestre Chico Abelha, que foi fazer uma entrevista e me levou a santa. Aí, a pessoa chega e me diz assim: “Nossa, Nossa Senhora Aparecida”! Daí, olha assim: “Saci? Iansã, Oxalá?”. Lá tem de tudo, sabe? Todos os seres… é isso.

Mais 60 Ana, tem uma coisa que a gente questiona muito, porque as pessoas dizem que o velho só tem passado, mas a gente sabe que o velho, para viver, precisa olhar para o futuro também. O que você espera para seus próximos anos?

Ana Minha mãe tem 100 anos, uma vez ela falou: “Você sabe que eu tinha uma prima que viveu 200 anos”? Eu falei: “O que, mamãe?”. “É, ela viveu 200 anos”. Então, sinceramente, sou muito consciente de tudo que está acontecendo no mundo. Eu tenho consciência disso. O que eu quero mesmo, o que peço, é celebrar cada dia, cada momento com dignidade, com saúde, independentemente de quanto tempo. Eu não sei. Eu quero estar em harmonia com meu próximo, com minha família, com meus amigos, porque não sei quanto tempo vou estar [aqui].

Mais 60 Ana, resumindo, o que é envelhecer para você? O que é a velhice?
Ana A velhice é um estado de espírito mais consciente. Você está consciente de cada passo que você vai dar. Por exemplo, gente, não dá para eu andar correndo em uma escadaria. Eu desço no metrô com as meninas mas, gente, não vou pela escada. Eu sou velha, nesse momento eu sou velha. Eu vou de elevador. Tem coisas que não posso fazer, então eu tenho essa consciência. Do meu limite. Eu tenho consciência do meu limite com a minha velhice. A criança fica quieta agora, é a velha que está falando. Sabe, eu tenho meus limites.

Mais 60 Você consegue olhar dessa forma para as outras velhices? Porque você está muito bem encaixada na cultura popular. Para mim e para todo mundo que te vê é uma harmonia muito grande. Inclusive da sua família, do Tião, da sua mãe. Quando você olha para os outros velhos da sociedade hoje, o que você vê?

Ana Eu gostaria muito que eles tivessem oportunidade de estar com esse olhar, com essa força, com essa coordenação motora, com essa alegria, porque falta. As pessoas veem o velho como se não prestasse mais. Não é isso. Eu fui tirar cartei-inha do metrô no Poupatempo e a moça veio de lá e me deu o braço. Sabe, ela me olhou assim e ficou sem graça, mas porque ela está acostumada a olhar o velho e pensar tem que ficar quieto. Tem que respeitar o velho, minha sobrinha diz que não é velho, mas é velho sim, nós somos velhos, mas a gente tem que ter respeito, é no elevador, é no posto de saúde, é na farmácia, é no restaurante, a gente tem que ter esse olhar para o velho e comparar, saber que hoje somos nós os velhos, amanhã são vocês. Então, a gente tem que olhar com esse respeito para o velho. Mas é isso que falta, esse olhar para o velho não como se fosse um objeto a ser largado. Um olhar humano, digno.

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