Ilustração: Rômolo D’Hipólito
Resumo
O presente artigo objetiva refletir sobre a importância das ações intergeracionais na efetivação dos direitos das pessoas idosas como uma necessária estratégia de atuação a ser desenvolvida em Instituições de Longa Permanência para Idosos(as) (ILPI). As reflexões apontam algumas contribuições da intergeracionalidade para as velhices institucionalizadas, como a ampliação do diálogo e da convivência, a solidariedade entre as gerações e a criação de canais para fortalecer a convivência familiar e comunitária de idosos(as) institucionalizados(as), visando romper o idadismo, a solidão e o isolamento social, primando, assim, por um envelhecimento digno.
Palavras-chave: pessoas idosas; ILPI; intergeracionalidade.
INTRODUÇÃO
O envelhecimento é um processo biopsicossocial, político e cultural, portanto, diverso, sendo assim necessário falarmos e refletirmos sobre as diversas velhices. Dados sobre o envelhecimento da população brasileira apontam que o número de idosos(as) vem crescendo no país, com tendência à aceleração desse crescimento. Recentes revisões (2019) das projeções da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que o Brasil atingirá em 2045 um total de 229,6 milhões de habitantes, mantendo um crescimento do número absoluto de idosos(as). Aponta-se que em 2075 o número de pessoas com 60 anos ou mais deve chegar a 79,2 milhões e, no tocante quantitativo de pessoas com 65 anos ou mais, os dados estimam 65,9 milhões (ALVES, 2019).
Dito isso, é fundamental que o país desenvolva políticas públicas para o atendimento às demandas e à efetivação dos direitos da população idosa, promovendo ações voltadas à convivência entre gerações, ampliando o diálogo, a integração e a troca de saberes. Essas são algumas estratégias que contribuirão para a superação de estigmas e preconceitos em torno das velhices. E, quando falamos das velhices institucionalizadas, as ações voltadas à intergeracionalidade ocupam destaque no sentido de possibilitar a criação e/ou o fortalecimento dos vínculos dos(as) idosos(as), visando romper a solidão e o isolamento desse público. É o que propomos refletir neste artigo.
ILPI, SOLIDÃO E ISOLAMENTO SOCIAL DE PESSOAS IDOSAS
Na sociedade capitalista, cujo foco está na capacidade de produzir e consumir, a juventude tem lugar de destaque por ser considerada um valor a ser alcançado. Nesse contexto, a velhice passa de uma realidade privada, familiar e incômoda a alvo de uma gestão carregada de contradições, na qual ao mesmo tempo em que é tida como uma questão pública, em que Estado e mercado atuam, é colocada como uma existência sem significado, um peso social refletido na responsabilização individual e familista pela forma como os sujeitos envelhecem, mesclando, assim, socialização e reprivatização da velhice (DEBERT, 2012).
Nesse sentido, Camarano (2020) aponta que as ILPI são, dentre as modalidades de cuidados extrafamiliares, as mais antigas, tanto no contexto mundial quanto no brasileiro. Ainda considerando as contribuições da autora, os asilos na sua origem tinham como missão abrigar miseráveis, mendigos(as), órfãos(ãs), velhos(as), loucos(as), dentre outras pessoas em situações de risco social, não havendo à época distinção de público nessas instituições. Tal diferenciação teve início a partir do século XVIII, quando essas instituições, inspiradas nas ideias iluministas, passaram a se especializar, realizando divisões de seus públicos, destinando, assim, crianças a orfanatos, loucos(as) a hospícios e pessoas idosas a asilos (CAMARANO, 2020).
No Brasil, uma das primeiras instituições para pessoas idosas foi o Asilo São Luiz para a Velhice Desamparada, fundado na cidade do Rio de Janeiro, em 1890, com o objetivo de prestar atendimento à população idosa pobre, atuando na perspectiva da filantropia. A criação dessa instituição consistiu em um marco no reconhecimento da velhice como público de intervenção institucional, dando visibilidade à velhice desamparada – uma população com características específicas e que demandava uma preocupação social diferente dos demais tipos de mendicância ou risco social (CAMARANO, 2020).
É possível, assim, compreender que o histórico das origens dessas instituições remete ao abandono, à invisibilidade, à fragilidade, à pobreza e à solidão, cabendo considerar que essas características passaram a ser atribuídas historicamente a esses espaços, marcados por estigmas muitas vezes reforçados nas práticas institucionais adotadas.
Nessa direção, Britto da Motta (2018) aponta que a solidão pode ser vivenciada por pessoas de todas as gerações, sendo marcada pelo sentimento de falta de apoio, conexão, significado social, afeto e aceitação. Ela acontece de diversas formas, entretanto na velhice a solidão tem características específicas por poder remeter à invisibilidade que, material ou simbolicamente, deixa essas pessoas à margem, consideradas como estranhas e desinteressantes.
Para Paim Filho et al. (2020) essa desvalorização da velhice nos ditames capitalistas tem por base a visão de que a pessoa jovem é mão de obra e fonte de lucro para o sistema, visto apresentar maiores condições de produzir em relação ao sujeito idoso. Ademais, esse processo de marginalização da população idosa consiste em um fenômeno com múltiplas determinações sociais, políticas e econômicas, carregando ideais de segregação e inferiorização (PAIM FILHO et al., 2020).
Esse contexto é forjado também por aspectos como desinformação, isolamento etário, pouca convivência intergeracional, individualismo e luta pelo poder, inclusive entre as gerações, salientando que as violências, dentre elas o idadismo, também se expressam através de cuidados equivocados que cerceiam direitos e limitam a autonomia e a independência. Também se materializam em infantilizações e ações assistencialistas fundamentadas na ideia de que envelhecer é sinônimo de declínio, perdas e adoecimento; além da ocorrência das práticas de overhelping, ou seja, o suporte excessivo para a pessoa idosa e por ela indesejado, apostando na sua incapacidade em fazer o que pretende (BRITTO DA MOTTA, 2018).
Ademais, a solidão de pessoas idosas deve ser pensada tanto no âmbito das que possuem casa, referências familiares e renda, como, e especialmente, das que vivem em ILPI, visto que são ainda mais afetados por essa questão (BRITTO DA MOTTA, 2018). Cabe destacar que a segregação pode ocorrer tanto quando a pessoa idosa está inserida em determinado espaço social, mas não participa dele de forma efe- tiva, como pode estar representada de forma concreta e física, como em casos presenciados em ILPI, nas quais o(a) residente perde sua autonomia e submete sua rotina às normas institucionais, o que muitas vezes impacta na sua liberdade, no seu direito de ir e vir e na sua participação social (PAIM FILHO et al., 2020).
Sobre isso, Britto da Motta aponta dados de suas pesquisas nessas instituições, ressaltando aspectos como organização rígida de horários, poucas visitas às pessoas idosas, ausência de reciprocidade entre residentes, rotina esvaziada de sentido, escassas atividades, falta de privacidade, confinamento homogeneizado e solidão. Nesses cenários, salienta a autora, o relacionamento distante e por vezes conflituoso entre residentes é oposto ao que se observa em relação aos(às) visitantes, dentre eles(as) os(as) que comparecem para pesquisas e realização de trabalhos filantrópicos, havendo para com esses(as) uma postura amigável e aberta ao diálogo, como se nesses momentos o silêncio e a solidão da rotina institucional fossem supridos pela presença de pessoas externas ao contexto das ILPI (BRITTO DA MOTTA, 2018).
Camarano (2020) contribui afirmando que tradicionalmente essas instituições são percebidas como locais para descanso e não para trabalho, sendo associadas à repouso, proteção, abrigo, mas também à afastamento da vida social. Assim, a autora questiona se as pessoas idosas são, em muitos contextos institucionais, segregadas socialmente por estarem em ILPI ou se também estariam segregadas caso morassem com suas famílias, ou seja, se o que determina esse contexto de isolamento da vida em sociedade é onde a pessoa idosa reside ou sua condição de pessoa idosa, ativa ou frágil. A autora envida esforços para compreender porque houve a diferenciação de instituições específicas para pessoas idosas das demais instituições, refletindo ainda se existe relação entre ILPI e aposentadorias, visto que ambas as situações, institucionalização e aposentadoria, representam uma perda de participação e de papéis, sejam eles familiares ou sociais.
Portanto, quando a pessoa passa a ser considerada idosa apresentam-se formas de gestão do seu envelhecimento, inclusive na forma de morar, embasadas na ideia de que envelhecer é adoecer e depender e essa perspectiva promove o distanciamento intergeracional tanto socialmente, com a aposentadoria e a diminuição da participação social, como espacialmente, com a institucionalização das pessoas idosas em ILPI (CAMARANO, 2020).
Assim, muitas vezes a institucionalização acaba por reforçar o isolamento das pessoas idosas do convívio em sociedade e, consequentemente, com as demais gerações ao limitar a rotina dos(as) residentes a um espaço repleto de normas e controle. Entretanto, convém salientar que tal isolamento não é restrito às ILPI, mas também se apresenta nos contextos familiar e social (PAIM FILHO et al., 2020).
Legalmente as ILPI são definidas como “instituição de longa permanência para idosos, governamental ou não governamental, destinada à moradia coletiva de pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, com ou sem suporte familiar” (BRASIL, 2021), devendo prestar tratamento individualizado e atenção às pessoas idosas, bem como garantir seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e individuais. Entretanto, o que se observa é que em grande parte dessas instituições alguns direitos acabam por serem violados na tentativa de garantir a segurança das pessoas idosas, tais como o direito de ir e vir, de liberdade, de privacidade e de convivência comunitária, dentre outros. Outrossim, ao invés de propor um plano de atenção individualizado, como previsto pelas legislações, no intuito de prover atividades e intervenções que atendam às demandas e potencialidades das heterogêneas velhices institucionalizadas, percebe-se em muitos contextos institucionais que cabe aos (às) residentes adaptar suas preferências e rotinas ao contexto da instituição, que estabelece cuidados e padrões a serem adotados (PAIM FILHO et al., 2020).
Camarano (2020) salienta a fragilidade dessas instituições, visto que apesar de fazerem parte da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social (Suas) brasileiro, em nosso país as ILPI não foram criadas dentro de um contexto de uma política pública de cuidados atenta às necessidades da população idosa, mas sim para atender uma demanda comunitária, o que implica nas dificuldades para fiscalização dos serviços e na sua qualidade.
Adensando o complexo contexto da crise de cuidados, temos o contexto neoliberal, no qual o Estado tem seu papel reduzido, priorizando a economia em detrimento das demandas sociais. Assim, são escassos os investimentos nas políticas públicas de cuidado, sendo praticamente inexistentes os Centros Dia e o Serviço de Proteção Social Básica em Domicílio para Pessoas Idosas e com Deficiência, dentre outros serviços e programas previstos na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, que contribuem para a efetivação dos direitos da pessoa idosa a cuidados e proteção social (BRASIL, 2014).
Ademais, a busca por ILPI tende a aumentar visto o crescente envelhecimento populacional e a redução da capacidade das famílias em prestar cuidados, considerando as diversas configurações familiares que requerem do Estado e do mercado atendimento a suas demandas. Cabe refletir que com a crise sanitária e o agravamento da conjuntura social e econômica do país no cenário de pandemia de covid-19 a adoção de medidas de distanciamento social, expansão da pobreza e a demanda por cuidados foram ampliados. Esse cenário de pandemia de covid-19 também chamou a atenção da sociedade para as ILPI, suas fragilidades e invisibilidades (CAMARANO, 2020). Outrossim, considera-se nessa realidade o insuficiente suporte do Estado às famílias e pessoas idosas (PAIM FILHO et al., 2020).
O distanciamento social em contexto pandêmico mostrou-se uma medida essencial para a prevenção de contágio pela covid-19, porém também reforçou a solidão, o abandono e a segregação de pessoas idosas pela suspensão de visitas às ILPI, intensificação do idadismo, interrupção de atividades sociais e comunitárias, ampliação da violência ou por outras limitações (CAMARANO, 2020).
Dito isso, é importante pensar que as solidões e suas causas se diferenciam, mas que em todas elas o idadismo concorre diretamente para que ocorram. O idadismo muitas vezes é ocasionado pelo distanciamento entre as gerações, o que gera desconhecimento sobre a velhice e, devido a isso, as pessoas a temem, isolando os velhos, os discriminado e violando seus direitos. Essa situação pode ser minorada pela educação para o envelhecimento e pelas iniciativas intergeracionais, tanto em caráter individual como social e institucional, uma vez que a partir dessa interação as diferentes gerações podem saber como as pessoas idosas vivem, sentem, constroem e contribuem, facilitando a comunicação, a interação e o aprendizado entre elas (BRITTO DA MOTTA, 2018).
Além disso convém mencionar que, para as mulheres, o isolamento e a solidão impactam ainda mais, posto que são mais longevas que os homens, porém envelhecem mais pobres, menos escolarizadas e mais sozinhas. Portanto, ao viverem mais, podem acumular dependências e fragilidades, contribuindo para adensar sua solidão e seu encaminhamento às ILPI, visto não contarem com fontes de cuidado, até por terem sido, na maioria das vezes, elas mesmas as cuidadoras em seus contextos familiares (BRITTO DA MOTTA, 2018).
Assim, é necessário frisar que essa questão deve ser objeto de intervenção estatal, de forma a assegurar os direitos da pessoa idosa, prevenindo suas violações e ao mesmo tempo promovendo ações voltadas à educação intergeracional para construir uma sociedade para todas as idades.
Na sociedade brasileira assistimos a um discurso de respeito às diferenças que convive com práticas discriminatórias, violações de direitos e desrespeito àqueles(as) que expressam diversidades. Bosi (2012, p. 76) reflete que “em nossa sociedade, os fracos não podem ter defeitos, portanto os velhos não podem errar”. A autora observa que na sociedade atual o sentimento de continuidade inexiste, as mudanças ocorrem em um ritmo acelerado e o que é construído hoje pode não existir amanhã. Além disso, os estereótipos de improdutividade e de ineficácia das pessoas idosas são tão naturalizados que podem ser absorvidos por elas próprias, reproduzindo a equivocada e perversa lógica idadista de que não contribuem para a sociedade e representam um peso às demais gerações.
Logo, a sociedade atual rejeita a velhice. A partir da perda da força de trabalho, a pessoa velha perde lugar social, devendo ser tutelada como uma criança. O discurso dominante difunde o respeito às pessoas idosas, mas a real intenção é afastá-las das tomadas de decisões e submetê-las a um papel passivo de meras espectadoras (BOSI, 2012); discurso esse que se intensifica em contexto institucional, no qual muitas vezes o protagonismo da pessoa idosa e a intergeracionalidade ficam comprometidas diante da escassez de iniciativas que as incentivem e das normas adotadas pelas instituições, apesar das legislações priorizarem tais questões. Vejamos o que preconizam algumas dessas legislações.
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO? FORTALECIMENTO DE VÍNCULOS FAMILIARES, COMUNITÁRIOS E INTERGERACIONAIS
A Organização Mundial de Saúde (OMS), no ano de 2005, abordou o tema envelhecimento ativo, que consiste no processo de otimização das oportunidades de saúde, participação, segurança e educação ao longo da vida com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida em que as pessoas ficam mais velhas. Essa abordagem baseia-se no reconhecimento dos direitos das pessoas idosas e nos princípios de independência, participação, dignidade, assistência e autorrealização estabelecidos pela ONU. Esse documento trouxe maior visibilidade à velhice com foco em direitos humanos.
Em 2002, na II Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento da ONU foram elaborados dois documentos, a Declaração Política e o Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, que tratam sobre os desafios do envelhecimento da população no século XXI e a promoção do desenvolvimento de uma sociedade para todas as idades. A temática da solidariedade intergeracional é destacada quando se reconhece a sua necessidade e a interação entre as gerações, considerando as particularidades das gerações envolvidas nesse processo. Segundo o Secretário Geral da ONU à época (2002), sr. Kofi Annan, “se criarmos redes de apoio e ambientes propícios, poderemos conseguir que a sociedade em geral se interesse por estreitar a solidariedade entre grupos de gerações e combater o abuso, a violência, a falta de respeito e a discriminação de que são vítimas os idosos”.
O referido plano de ação se constitui como um guia para as políticas sobre o envelhecimento, apontando recomendações para a adoção de medidas com ênfase em três orientações prioritárias: pessoas idosas e desenvolvimento, promoção da saúde e bem-estar na velhice e criação de ambiente propício e favorável. O documento ressalta que através de medidas de equidade e reciprocidade se fortalece a solidariedade intergeracional, que é fundamental para a conquista de uma sociedade para todas as idades.
No tocante às legislações brasileiras, merece destaque a Política Nacional do Idoso (BRASIL, 1994), que em seu artigo 4o trata das dire- trizes e aponta a “viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso, que proporcionem sua integração às de- mais gerações”. A partir dessa perspectiva, estimula-se a participação e o convívio da pessoa idosa com outras gerações, visando a integração e valorização do seu saber e de sua experiência de vida.
Ainda sobre a implementação da Política Nacional do Idoso (PNI) pelos órgãos públicos, o documento salienta a importância de “valorizar o registro da memória e a transmissão de informações e habilidades do idoso aos mais jovens, como meio de garantir a continuidade e a iden- tidade cultural”. Trata-se da valorização do saber e experiência de vida da pessoa idosa, resgatando o seu conhecimento construído ao longo da vida e o ressignificando para a contemporaneidade.
Outro importante marco legal para a defesa dos direitos da pessoa idosa foi a aprovação da Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003, o Es- tatuto da Pessoa Idosa (BRASIL, 2003), que representa um avanço na garantia desse segmento social, contribuindo para o acesso à cidada- nia e aos direitos fundamentais. No artigo 21 do Título II dos Direitos Fundamentais, capítulo V, que trata da educação, cultura, esporte e lazer, a lei aponta que “o Poder Público criará oportunidades de aces- so da pessoa idosa à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados”, enten- dendo como fundamental a adaptação metodológica para oportunizar o acesso dos(as) idosos(as) aos projetos educacionais.
No parágrafo 2o ressalta que “as pessoas idosas participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural para transmissão de co- nhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identidade culturais”. Assim como consta na Políti- ca Nacional do Idoso, a transmissão de conhecimentos e vivências, no sentido da preservação da memória, é evidenciada como fundamen- tal para a transmissão dos saberes às demais gerações.
Ainda tratando do Estatuto da Pessoa Idosa, essa legislação estabe- lece no artigo 49 que as ILPI devem adotar, dentre outros princípios, a preservação dos vínculos familiares e a participação da pessoa idosa nas atividades comunitárias, de caráter interno e externo. Tal questão também é observada na Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária no 502, de 27 de maio de 2021 (BRASIL, 2021), que dispõe sobre o funcionamento das ILPI em caráter residen- cial. A referida resolução estabelece no artigo 6o as premissas a serem
Artigo 4
Instituições de Longa Permanência para Idosos(as) (ILPI) e intergeracionalidade: caminhos para o cuidado
atendidas por essas entidades, constando dentre elas a promoção da integração das pessoas idosas nas atividades comunitárias locais, o desenvolvimento de atividades intergeracionais, o incentivo à parti- cipação da família e da comunidade na atenção às pessoas idosas, bem como o desenvolvimento de ações para prevenir violências e discrimi- nações contra os(as) residentes(as).
Nesse sentido, entendemos que as legislações estabelecem impor- tantes elementos para pensarmos a intergeracionalidade nos diversos espaços sociais, dentre eles as ILPI, sendo as relações entre as gerações um direito social e um aspecto fundamental para prevenir o idadismo e o isolamento social das pessoas idosas. Além disso, a intergeracio- nalidade proporciona ganhos a todos(as) os(as) envolvidos(as), como veremos a seguir.
CONTRIBUIÇÕES DA INTERGERACIONALIDADE PARA AS VELHICES INSTITUCIONALIZADAS E POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO
As relações intergeracionais consistem em um assunto cada vez mais presente em estudos e proposições para o trabalho com as pessoas ido- sas, inclusive nas ILPI, visto que essa interação gera benefícios para todas as gerações envolvidas.
A ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2000, criou um documento sobre os Programas Intergeracionais (PIs), abor- dando o seu potencial para promover relações e intercâmbios entre jovens e idosos(as) como parte da política social pública. E definiram os Programas Intergeracionais como:
Espaços que oferecem oportunidades para trocas de experiências e aprendizagem das diversas faixas etárias para benefícios individuais e sociais, considerando a aproximação de gerações como um instrumento eficaz, com efeito de inclusão social e desenvolvimento da comunida- de (HATTON-YEO, 2000, p. 6).
A partir dessa iniciativa, o desenvolvimento de PIs tornou-se mais popular por se entender que a abordagem intergeracional é um instru- mento eficaz e inclusivo para os programas de educação continuada, em que as gerações envolvidas se beneficiam com a troca de experiên- cias e aprendizagem, acarretando benefícios individuais e sociais, com efeito de inclusão e respeito intergeracional.
Esses programas têm o objetivo de valorizar o saber e a experiên- cia de vida das gerações envolvidas, sendo, para as pessoas idosas, uma busca por ressignificar o seu conhecimento construído durante o cur- so de vida e, para as demais gerações, a valorização da transmissão de saberes contemporâneos aos(às) idosos(as), tornando assim uma via de mão dupla. Dessa feita, é possível observar que as relações intergeracionais são fundamentais em qualquer cultura, criando benefícios para todas as gerações, dado o potencial de reverter os estereótipos e prevenir o idadismo, além de possibilitar o desenvolvimento de laços afetivos, a troca mútua dos saberes, a coeducação e, ainda, retomar o senso de coletividade e solidariedade em oposição ao individualismo predominante na sociedade contemporânea neoliberal.
A promoção das atividades intergeracionais contribui, assim, para a coeducação entre as partes envolvidas, promovendo a o diálogo e o respeito entre as gerações, fomentando o desenvolvimento de novas aptidões, a ressignificação da identidade social, o sentimento de pertencimento e dando suporte de diversas naturezas, como transmissão cultural, fortalecimento dos saberes, estímulo ao resgate de brincadeiras e histórias tradicionais, coeducação, construção de conhecimentos em conjunto e prevenção à violência (FERRIGNO, 2003 e 2013).
A realização de PIs nas ILPI permite o contato das pessoas idosas com outros grupos etários, visando romper com a solidão e o isolamento social e proporcionar a todos uma coeducação intergeracional, garantindo, por exemplo, o direito à convivência familiar e comunitária. Além de proporcionar à comunidade a publicização da velhice e a educação para a convivência com ela, bem como para a vivência do próprio processo de envelhecimento. Nesse sentido, os programas intergeracionais têm como objetivo estimular as relações entre as gerações, promovendo o intercâmbio de conhecimentos e valores entre elas e o respeito às diferenças, buscando encontrar soluções coletivas para os desafios grupais. Para tanto, requer o estabelecimento de relações igualitárias, com foco na qualidade da interação e não nas fragilidades, devendo contar com uma equipe de apoio instrumentalizada teoricamente e tecnicamente (FERRIGNO, 2003 e 2013).
Isso posto, as atividades de caráter intergeracional, sejam elas com familiares, profissionais, estudantes, voluntários(as) ou a própria comunidade, devem ser previamente planejadas, tendo objetivos e metodologias definidas com base no conhecimento do perfil, na realidade dos(as) participantes e na identificação de suas demandas e potencialidades. Assim, o programa deve promover a autonomia dos(as) idosos(as) e valorizar o convívio e a troca de saberes, contribuindo para prevenir a solidão, o preconceito e a estigmatização da pessoa idosa na família e na comunidade (LIMA, 2008).
As experiências intergeracionais em ILPI desenvolvidas pelo setor público ou privado promovem diferentes formas de relacionamento entre as gerações com objetivo de minimizar o distanciamento intergeracional, combater o idadismo e promover a inclusão e a solidariedade entre as gerações.
Para o desenvolvimento dos PIs entende-se como estratégia o estímulo à escuta e à participação sem uma intervenção direta na dinâmica das relações, buscando debater sobre temas que distanciam as gerações envolvidas. Também realizar ações socioculturais, palestras, oficinas sobre os mais diversos temas, rodas de conversa, contação de histórias, atividades recreativas, debates, exibição de filmes, dentre outras atividades de interesse mútuo das gerações envolvidas (LIMA, 2008).
Alguns programas são baseados no desenvolvimento de atividades de arte e lazer com os idosos das ILPI e crianças de creches e escolas, com a participação de artistas com habilidades para conectar pessoas. Também existem programas de extensão universitária com jovens estudantes que desenvolvem ações de saúde e direitos com as pessoas idosas, promovendo atividade física, dança, yoga e orientações, dentre outros. Outras interessantes iniciativas intergeracionais dizem respeito a ações que envolvam atuação em rede com os serviços do território, estabelecendo parcerias com escolas, universidades, projetos culturais, sociais e esportivos, no sentido de promover a interação entre as gerações, a troca de visitas nos territórios de cada comunidade (residentes das ILPI em universidades, por exemplo, e vice-versa), o intercâmbio de atividades, as atividades escolares sobre envelhecimento, entre outros. Há a possibilidade, também de haver a atuação de grupos voluntários que se propõem a fazer visitas em ILPI para conversar, ler livros, cantar, passear, ou seja, realizar atividades lúdicas que conectam os(as) idosos(as) afetivamente.
Além dessas alternativas, é possível ainda elencar como estratégias para a promoção da intergeracionalidade ações com foco na valorização do saber, da experiência e da participação de todas as gerações; das memórias individuais e sociais; iniciativas intergeracionais de valorização da velhice e de aprendizado entre as gerações; ações socioeducativas em espaços de educação formal e informal sobre o tema; políticas públicas que garantam direitos de todas as gerações, dentre outras que não se esgotam neste escrito e que são construídas e reconstruídas na realidade vivenciada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões trazidas pelos(as) autores(as) e as legislações citadas neste artigo reforçam a importância da promoção de ações públicas e privadas voltadas ao convívio e à solidariedade entre as gerações, fomentando a perspectiva do envelhecimento digno para todos(as).
Atividades intergeracionais são espaços para o exercício da cidadania e do diálogo, são canais que proporcionam e fomentam o respeito entre as gerações, contribuem para o fortalecimento e a transmissão de fazeres e saberes, mas também são espaços de efetivação de direitos e de ruptura do isolamento social, da solidão e do idadismo.
Quando pensamos nos desafios na atuação das ILPI é possível afirmar que um dos caminhos para os minorar tem relação direta com programas intergeracionais que venham a proporcionar engajamento da família e da comunidade, prevenindo a solidão e fomentando ações voltadas ao protagonismo e à autonomia das pessoas idosas.
Por fim, cabe reforçar que a construção de uma sociedade mais justa perpassa também, e necessariamente, pela promoção da difusão de informações, debates e diálogos sobre o processo de envelhecimento, sobre as velhices e sobre a educação para a convivência intergeracional, de maneira a vivermos em uma sociedade para todas as idades.
Autores:
Ingrid Rochelle Rêgo Nogueira – Assistente social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), especialista em gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e mestranda em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Maria Clotilde Barbosa Nunes Maia Carvalho – Assistente social, mestra em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), especialista em programas intergeracionais pela Fundación General Universidad de Granada, mestra em gerontologia pela Universidad Autónoma de Madrid e especialista em gerontologia pela SBGG.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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