Ilustração: Rômolo D’Hipólito
Suellyn Ortiz Camargo, licenciada em letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp)/Araraquara, trabalha com produção cultural há 12 anos. É responsável pelo Trabalho Social com Idosos (TSI) na unidade Piracicaba./ por Suellyn Ortiz Camargo
Amparada nas narrativas de tradição oral, a proposta foi voltada exclusivamente para a pessoa idosa. De modo presencial e frequência semanal, não houve necessidade de inscrição – a participação era livre. Contudo, previa um desenvolvimento linear para permear os quatro encontros, sendo que no último a história a ser contada seria construída partir do que havia surgido nos anteriores.
Realizada em janeiro de 2022, primeiro mês de retorno à maioria das ações presenciais do Sesc São Paulo após a quarentena da pandemia da covid-19, sua intenção se relacionava diretamente com o contexto do distanciamento social, como foi expressa na apresentação:
“Nós do Coletivo As Rutes acreditamos que quando o chão se abre e tudo parece desabar, a imaginação, impulsionada por experiências estéticas, nos ajuda a estabelecer uma ponte segura entre o finito e o infinito, entre o cotidiano e o sublime, entre a dureza da vida e a possibilidade de beleza que, de repente, acontece. Queremos saber das pessoas neste momento de confinamento e bastante incerteza em relação ao futuro, quais são os pensamentos, sensações, lembranças e sonhos sobre a finitude e permanência da vida”.
Com tema muito delicado – a finitude humana –, trazia um título instigante e poético: “Do Fio ao Infinito”.
E a provocação seguiu em versos:
Nascemos finitos, isso é certo.
Mas tem algo que permanece.
O que permanece?
Existe o infinito?
Qual o atalho para chegar lá?
HISTÓRICO
No início de 2021, quando o novo coronavírus completava seu primeiro ano pandêmico, recebi uma proposta direcionada à literatura, uma das minhas áreas programáticas. Enviada pela Cristiana Ceschi, do Coletivo As Rutes, tinha por base a oralidade, porém pensada para a plataforma digital devido às demandas de saúde pública de então.
A abordagem, contudo, me parecia ir muito além da linguagem artística a que fora direcionada. Ela falava sobre o ser humano em uma perspectiva mais ampla, com suas angústias, anseios e alegrias possíveis. Falava sobre as vivências e experiências que poderiam, pela sua magnitude, se tornar infinitas. Falava sobre o ser que é finito e a possibilidade de “infinitizar”.
Por conta disso, propus encaminhá-la, também, para o Trabalho Social com Idosos (TSI). Mesmo assim, seguimos em conversa por telefone, e-mail e reunião virtual para executá-la dentro da literatura; as ideias se ampliavam e a vontade de realizá-las idem. Entretanto, os ventos mudaram de direção e, naquele momento, elas não seguiram nenhum dos rumos planejados. Meses depois, no final do mesmo ano, por conta da iminente aposentadoria do colega da unidade responsável pelo TSI, esta pasta passou para os meus cuidados. Sugeri retomarmos o projeto d’As Rutes, dessa vez direcionado à pessoa idosa, e a Cris, aberta a desafios, aceitou. Poderíamos, então, seguir o caminho do fio ao infinito. E seguimos!
Além da Cris, outra artista do coletivo faria parte do trabalho, a Carol Bahiense. Musicista, pessoa de muita sensibilidade e bom humor, ela foi a grande responsável pela trilha sonora e sonoplastia, acompanhada por instrumentos de percussão e acordeom.
DETALHAMENTO DO PROJETO
O primeiro dia da atividade foi também um dos primeiros do retorno às ações presencias do TSI na unidade. Havia felicidade e receio por conta do contato físico, assim como vontade de se divertir e necessidade de cumprir os protocolos sanitários. Havia, ainda, a curiosidade por conta das novas pessoas presentes e pela proposta um tanto diferente daquelas com as quais o grupo estava acostumado.
Em meio a essas ondas de sentimentos, foram lançadas as perguntas iniciais: “Como construir uma ponte entre o finito e o infinito? O que nos ‘infinitiza’? O que faz um momento parecer infinito?”. Diante delas os participantes apresentaram o mar como referência de infinito. Foi então que surgiu um navio, no qual todos embarcaram para seguir por essa viagem.
O espaço físico foi o palco do teatro, com cadeiras dispostas em roda. Na fantasia, porém, os espaços foram muitos: o porto, o mar – ora calmo, ora agitado –, o navio, sua piscina e o bar, seu salão de festas e também o de jogos, o céu e suas estrelas, as nuvens, a chuva. Cada pessoa escolheu um personagem: comandante, barman, marinheiro, madame na piscina, mulher no carteado, entre muitos outros, estavam a bordo.
As artes visuais entraram em cena no segundo encontro. Todos foram convidados a expor algo marcante da sua vida por meio do desenho ou da pintura. O mar estava calmo, contribuindo para a movimentação das mãos e da memória. Não havia regra, nem métrica; havia apenas a liberdade de a recordação se manifestar por entre os dedos.
A música, executada pela Carol ao longo de todo o trabalho, no terceiro dia abriu espaço em um caraoquê para os passageiros; até a comandante cantou. Era o momento de as lembranças se revelarem pela voz, afinadas pelo coração.
Por fim, o navio aportou no quarto e último dia da atividade. E como último dia, houve baile e muita dança no salão principal – com o mar levemente agitado – para a alegria se expressar por todo o corpo; era a vez de o coração celebrar o retorno à terra firme e aos encontros presenciais. Houve, também, o retorno da palavra em sua forma oral para costurar o fio criado entre o finito e o infinito. Quando o baile acabou, ao invés de irem embora, como comumente acontece nesse tipo de evento, todos voltaram para as cadeiras. Então a Cris, com vocabulário preciso e sensibilidade ímpar, narrou o desfecho dos encontros, amarrando tudo o que fora vivenciado na fantasia ao contexto do momento.
Por conta da covid-19 ainda em abrangência pandêmica, o uso de máscara era obrigatório, cobrindo nariz e boca. No teatro acontece de o adereço do personagem, muitas vezes, não ser material, mas imaginário – imaginado pelo público. Naquele palco-navio, a magia das artes cênicas também se fez presente de outro modo: a máscara real tornou-se invisível na encenação. Essa barreira física para contenção do vírus não conteve os sorrisos, expressos com olhares e gestos, com palavras ditas e não ditas. Ao fim da proposta, os idosos estavam visivelmente muito felizes.
É importante ressaltar que surpresas aconteceram logo no primeiro dia. Segundo As Rutes, muito do que havia sido preparado para o roteiro e os elementos que serviriam de aporte foram ressignificados, pois o grupo do TSI tornou-se um parceiro de cocriação desde o início: artistas e público foram tecendo juntos o trabalho; a expectativa de um fazer coletivamente foi atualizada para cada dia, e não apenas para o último. A atividade aconteceu como a vida acontece: nos encontros, na convivência, na troca, no coletivo; acontecendo, no gerúndio.
Nas palavras da Cris:
“Os participantes estavam tão dentro, tão dentro da proposta, que se tornaram os protagonistas, mesmo. Eles foram os reais condutores do trabalho, foram nos mostrando coisas que nunca poderíamos imaginar. Havíamos nos preparado muito! Com essa imersão e cocriação deles, detalhes das histórias e dos jogos que havíamos selecionados foram aproveitados de alguma maneira, porém sem rigidez.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns pontos parecem ter sido fundamentais para o êxito do projeto. A começar pela abertura à livre expressão e pelo uso da construção ficcional. Segundo Umberto Eco, a ficção:
“(…) nos proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado. A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente” (ECO, 1994, p. 137).
Se, portanto, a ficção contribui na estruturação mental daquilo que vivenciamos na realidade, essa contribuição pode ser ainda mais relevante para a pessoa idosa no que concerne a desconstruir alguns sentidos e estigmas consolidados pela experiência, pelo tempo e contexto cultural, bem como a poder olhar para antigos valores a partir de novos pontos de vista. Soma-se a isso o estímulo à fruição da fantasia, por meio da liberdade de criação e das metáforas instigadas pelas linguagens artísticas. Como afirma Fabiana Rubira, as metáforas “são elementos formadores do pensamento humano, na mesma medida em que são uma forma criativa do uso da linguagem” (RUBI- RA, 2015, p. 42).
Nesse contexto, o mar como metáfora do infinito pode ter contribuído para dar vazão a sensações e sentimentos semelhantes aos vividos com o distanciamento social: o medo diante de um gigante desconhecido (seja esse gigante o mar ou a pandemia), a turbulência (marítima e também a emocional), o desejo de controle (da embarcação e do vírus) ou de relaxar (no Sesc ou na piscina do navio), a (re)descoberta da nature- za (na sonoplastia da chuva ou dentro de casa), a alegria do encontro (no baile ou no palco do Sesc).
Outro ponto a ser evidenciado é a escuta. As artistas estavam atentas a cada fala dos participantes, que era correspondida e aproveitada na composição da atividade, colaborando para o desenrolar do enredo e colocando aqueles no lugar de protagonistas. Quando se escuta, se diz para o outro que ele existe. Ao se olhar para o outro com atenção, olha-se para sua individualidade e, portanto, para sua existência.
Em 1970, quando escreveu sobre o envelhe- cimento, Simone de Beauvoir já evidenciava a importância de se ter algo que faça sentido para a pessoa idosa.
“Para que a velhice não seja uma irrisória pa- ródia da nossa existência anterior, só há uma solução – é continuar a perseguir fins que deem um sentido à nossa vida (…). Contrariamente ao que aconselham os moralistas, é preciso dese- jar conservar, na última idade, paixões fortes o bastante para evitar que façamos um retorno sobre nós mesmos. A vida conserva um valor enquanto atribuímos valor à vida dos outros, através do amor, da amizade, da indignação, da compaixão” (BEAUVOIR, 2018, e-book posi- ções 10582 e 10588).
Mais recentemente, em 2007, na pesquisa Idosos no Brasil, o ramo do estudo voltado à cultura e ao lazer também reforça a importância de as atividades realizadas por esse público terem um propósito para além de mero passatempo. De acordo com Johannes Doll, elas “precisam ter significado vital (…). Para que uma atividade seja significativa, ela precisa ter algum vínculo com a identidade da pessoa: profissão, biografia, metas, ideias, valores” (DOLL, 2007, p. 111).
Quando se propõe um espaço para a livre expressão e escuta atenta, aliadas à fruição da fantasia, cria-se um espaço para fazer sentido. Esse espaço ganha ainda maior amplitude se for voltado à pessoa idosa, cujas habilidades, capacidades, competências e conhecimento, comumente, são subestimados ou colocados em dúvida, em decorrência, sobretudo, do preconceito advindo do etarismo. Na atividade realizada pel’ As Rutes, todo esse potencial dos idosos foi considerado. Naqueles quatro dias, por mais breves que tenham sido, os encontros alcançaram naquelas pessoas cama- das mais profundas; eles fizeram-lhes sentido.
O tempo da fantasia se sobrepôs ao do relógio. Vivências reais construíram uma ficção. Teve histórias narradas, lembradas e inventadas. Teve pegadinhas para adivinhar qual fato real era mentira. Teve risada e dor interna exteriorizada. Teve música, dança, desenho e pintura. Teve teatro e literatura. Teve encontros consigo e com o outro. Teve muita alegria e alguma tristeza também. Para tudo isso que teve, teve a arte fazendo a sua parte: de nos orientar nas nossas próprias narrativas de vida, nos momentos de tempestade e de calmaria. Ali foi possível “infinitizar”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução: Maria Hele- na Franco Martins, 3. edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. E-book posições 10582 e 10588, de 11327.
ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção. Tra- dução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, p. 137, 1994.
DOLL, Johannes. Educação, cultura e lazer: perspec- tivas de velhice bem sucedida. In: NERI, Anita Liberalesso (org.). Idosos no Brasil: vivências, de- safios e expectativas na terceira idade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Edições Sesc/ SP, 2007, p. 111.
RUBIRA, Fabiana de Pontes. Imaginar: outra forma de pensar, ensinar e aprender. Revista Trilhas Peda- gógicas, v. 5, n. 5, p. 42, ago. 2015.
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