Educação financeira é uma importante ferramenta para entender valores pessoais

29/06/2024

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Educação financeira é importante ferramenta para organizar as contas do mês, fechar no azul, entender valores pessoais e ter objetivos claros a curto, médio e longo prazos 

POR LUNA D’ALAMA

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O primeiro salário de Gabriela Chaves, como Jovem Aprendiz, aos 15 anos, foi gasto em apenas dois dias. “Recebi 600 reais e fui direto para o shopping: comprei roupas, um milk-shake e comi num restaurante japonês. Fiquei sem dinheiro até para a condução naquele mês”, lembra. Alguns anos depois, Gaby, como é conhecida, ingressou como bolsista no curso de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Apesar do desconto na mensalidade, a estudante tinha gastos com transporte, alimentação e xerox. Endividou-se até o meio da faculdade, alternando-se entre o cheque especial e o cartão de crédito. “Eu não tinha consciência de que poderia ser diferente. Até que um dia, cheguei para assistir à aula, cansada, e ouvi meus colegas combinando de tirar férias na Califórnia (EUA). Eu não estava indo nem para o litoral paulista, mas decidi ali mesmo que aquilo iria mudar e que eu também faria uma viagem internacional após a formatura”, conta. 

Com uma meta bem-definida em vista, o descontrole financeiro ficou para trás. Nascida e criada em Taboão da Serra (SP), Gaby se organizou durante dois anos, quitou as dívidas, juntou dinheiro para passagem, hospedagem, refeições e passeios, e ficou um mês na África do Sul, praticando a língua inglesa. “Nosso cérebro busca o consumo e o prazer imediato, mas, quando você estabelece objetivos claros e um plano de ação, consegue mudar padrões de comportamento. Se for somar tudo o que já paguei de juros para bancos naquela época, daria um carro”, destaca a fundadora da plataforma NoFront Empoderamento Financeiro, criada em 2018 e voltada para a população negra e periférica – a maioria, feminina. 

Mestre em economia política mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e com experiência de seis anos no mercado financeiro, Gaby hoje ensina outras pessoas a lidar melhor com o dinheiro e planejar o futuro a partir de tomadas de decisão conscientes e responsáveis. “No mercado financeiro, eu só ouvia sobre investimentos, juros, dividendos. Quando voltava para casa, eram só dívidas, boletos, parcelamentos. Por isso, resolvi dialogar com a minha comunidade e para além dela, usando o hip hop, principalmente a discografia dos Racionais MC’s, para refletir sobre educação financeira”, revela.  

Gaby Chaves, porém, não queria falar com seu público numa perspectiva meritocrática, mas considerando a enorme desigualdade social brasileira, a concentração de renda, os salários baixos, as dívidas, o desemprego e a falta de oportunidades profissionais para muita gente. Ela também leva em conta o fato de que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. “Estudei pedagogia e cheguei aos ensinamentos do educador Paulo Freire (1921-1997), que nos trouxe o conceito de empoderamento, de aquisição de poder. Criei seis cursos online, um deles chamado Finanças para quem não teve herança, e abordo componentes de classe, gênero e racialidade. Muitas vezes, o medo do dinheiro é por falta de conhecimento técnico ou por receio de perder tudo o que foi conquistado até agora”, explica. 

Para mudar a mentalidade financeira e a nossa relação diária com o dinheiro, que precisa deixar de ser um tabu, a fundadora da plataforma NoFront ressalta que o primeiro ponto é entender que a economia afeta a vida de todos, quer nos apropriemos de seus conceitos ou não. “Mudanças nas taxas de juros e na inflação impactam diretamente os preços nos supermercados, as vagas de emprego. É uma estrutura da realidade da qual não escapamos, por isso devemos entender a lógica do dinheiro, para que possamos nos beneficiar dela”, aponta a especialista em finanças.  

Segundo Gaby Chaves, muitas vezes é preciso romper padrões familiares negativos, buscar outras referências, apostar em uma reserva de emergência (valor que gira em torno de seis meses do custo de vida, se você for empregado CLT, ou de até um ano, se for empreendedor) e investir, com paciência e sem falsas ilusões, em lucros rápidos.  

Dentro da própria família, Gaby encontrou exemplos de contranarrativa: a avó materna sempre poupou metade do salário e, ao se casar, pagou 50% de um terreno à vista; já sua bisavó que veio do Maranhão comprou a casa própria trabalhando como empregada doméstica. “Nas comunidades de mulheres negras, vemos muitas histórias de sucesso: lavadeiras, costureiras, quituteiras, vendedoras de acarajé. Nosso trabalho precisa trazer frutos e prosperidade individual e coletiva, uma vida com bem-estar. Temos direito a uma mesa cheia e saudável”, enfatiza. 

VIRADA DE CHAVE 

Feita mensalmente, desde 2010, pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) revela que, em maio de 2024, o percentual de famílias que relataram ter dívidas a vencer foi de 78,8%, acima do resultado dos últimos meses. Dos 18 mil consumidores consultados em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal, 17,8% se consideraram “muito endividados”. O endividamento aumentou com a ampliação da oferta de crédito e prazos maiores para pagamento, enquanto a inadimplência (não quitar uma conta até o vencimento) ficou estável.  

Segundo dados de abril da agência Serasa Experian, 73,42 milhões de brasileiros estão hoje em situação de inadimplência, o que representa 44,6% da população adulta, principalmente entre 26 e 60 anos. Esse cenário se soma ao fato de que o Brasil é, segundo um estudo feito em 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o segundo pior país do mundo em mobilidade social, em um ranking com 30 nações. Isso significa que, na nossa sociedade, os descendentes dos 10% mais pobres demoram até nove gerações para alcançar a renda média (R$ 2.979, em 2023).  

Para virar essa chave, a jornalista baiana Amanda Dias fundou a plataforma de emancipação financeira Grana Preta, com foco em pessoas de baixa renda. Desde 2018, ela já orientou mais de 6 mil pessoas. “Esse projeto surgiu com o propósito de ajudar quem, muitas vezes, não teve experiências positivas com o dinheiro e de provar que é possível ressignificar esse passado”, avalia. Criadora e apresentadora do curso a distância Mentalidade Financeira, disponível na plataforma EAD Sesc Digital [leia mais em Planejamento em ação], Amanda recomenda que, antes de tudo, seja feito um diagnóstico para o cálculo do custo de vida de cada pessoa: qual o valor da hora–trabalho, quais são as despesas essenciais, o que pode ser cortado, poupado ou negociado (como anuidades e taxas bancárias) e se é necessário aumentar a renda.  

Segundo a consultora, tudo deve ser registrado em uma planilha ou caderno, e o orçamento mensal ideal pode se dividir desta forma: 60% para gastos essenciais (como moradia, alimentação e transporte), 10% para reserva de emergência, 10% para planos de médio prazo, 10% para a aposentadoria e 10% para gastar como quiser, como uma espécie de “dízimo pessoal”.  

Outro ponto essencial para conquistar a liberdade financeira, na visão de Amanda Dias, é ter clareza sobre seus valores (pessoais, morais e monetários) e criar metas de curto, médio e longo prazos. Assim como ocorreu com Gaby Chaves em sua viagem para a África do Sul, estabelecer valores e objetivos ajudaram Amanda em diversas decisões. “Os valores que as pessoas mais citam são: segurança, organização e liberdade. Alguém que prioriza a segurança vai dar mais valor para a estabilidade, a casa própria ou um carro, enquanto o indivíduo que ama a liberdade pode aceitar um emprego em outra cidade, estado ou país, além de querer mais flexibilidade nos horários e local de trabalho”, explica. É por isso que, segundo a especialista, a área de finanças comportamentais considera influências psicológicas, emocionais, sociais e cognitivas para compreender como funciona a nossa relação com o dinheiro. 

De acordo com Amanda Dias, as pessoas precisam entender a dinâmica da economia e do dinheiro para tomar melhores decisões, inclusive políticas, como na hora de votar. A consultora é neta de uma empregada doméstica, que começou a trabalhar aos 10 anos, e faz parte da primeira geração da família que pôde “apenas” estudar e ser criança. “Minha avó sempre me incentivou a trabalhar, a ser independente e me espelhar em uma prima mais velha, que virou minha referência. Cheguei a ter dois empregos para me manter, minha história é reflexo da maioria dos brasileiros”, conta a consultora.  

“Todos nós merecemos um mimo, um luxo, mas devemos nos perguntar se podemos naquele momento. Por outro lado, precisamos repensar o que são gastos supérfluos, pois, para a população negra, por exemplo, a forma como você se veste e aparenta determina como será tratado(a) na sociedade. Portanto, roupas, terapia e autocuidado também são importantes, assim como o capital cultural, isto é, investimentos em educação, conhecimento, idiomas e viagens”, ressalta Amanda. “Mas não podemos viver apenas na chave da sobrevivência, senão o risco de endividamento é enorme. Por isso, incentivo a mentalidade próspera e gosto de citar o rapper Emicida na música ‘Levanta e anda’: ‘Jamais volte para a sua quebrada de mão e mente vazias’”, finaliza. 

QUAIS SÃO SEUS SONHOS? 

A planejadora financeira Myrian Lund, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em cursos na área de finanças, acredita que um erro muito comum é olhar apenas para o mês vigente ou o passado e o quanto gastou em cada compra. Sua dica é sempre analisar o cenário anual. “Recomendo fazer um fluxo de caixa pessoal, o quanto entrou e o quanto saiu a cada mês. A planilha é o seu GPS. E, sempre que possível, não parcelar as compras. Quando você começa a fazer muitas prestações, pode acabar endividado ou superendividado (quando uma pessoa não consegue pagar as dívidas sem comprometer seu sustento básico). O risco desse comportamento é a perda do controle das finanças”, alerta.  

Há três anos, o Brasil criou a Lei do Superendividamento (nº 14.181/2021) justamente para ajudar indivíduos e famílias em situação de extrema dificuldade financeira. Inclusive, o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) produziu, em 2018, um documentário para explicar esse cenário complexo. A indicação é que as pessoas busquem auxílio no Procon, na Defensoria Pública ou no Tribunal de Justiça de sua cidade.  

Do ponto de vista psicológico da relação com o dinheiro, Myrian Lund explica que a economia deixou de ser vista como algo meramente matemático há cerca de 40 anos, a partir das pesquisas do economista e psicólogo israelense-americano Daniel Kahneman (1934-2024), Nobel de Economia em 2002.  “O cérebro humano tem dois sistemas de pensamento: um rápido, intuitivo, animado, que faz contabilidade mental; e outro lento, preguiçoso, que elabora planilhas. Este só é ativado pelo primeiro, e quando estamos em perigo. Por isso, nossas escolhas e compras precisam ser conscientes, registradas. Para juntar dinheiro, por exemplo, o ideal é que seja no débito automático ou descontado em folha. É como fazer exercício físico: aonde quero chegar lá na frente? O que preciso fazer hoje para isso?”, ensina Myrian. 

A economista Ione Amorim, coordenadora do programa de Serviços Financeiros do Idec, complementa que as pessoas tomam decisões financeiras a todo momento, desde a hora que acordam. Se vão trabalhar presencialmente ou em home office, se vão se deslocar a pé, de carro, metrô ou ônibus – tudo isso impacta as finanças. “O dinheiro, em si, não é mal nem bom: é necessário. Somos dependentes dele. Também somos seres sociáveis e, por meio do dinheiro, exercemos nossas competências na vida coletiva, garantimos nossa sobrevivência, o que comemos, onde moramos, por onde circulamos. Uma boa gestão desse montante, portanto, faz com que nossa relação com as finanças seja mais amistosa e saudável”, avalia Ione.

A especialista, que atua no Idec desde 2008 ministrando oficinas de capacitação e orientação financeira, diferencia endividamentos ativos (compras em excesso, descontrole, resposta a estímulos de propagandas e do mercado) dos passivos (dramas familiares, doença, falecimento, desemprego, divórcio) e alerta que o sistema bancário, a indústria, o setor de serviços e o comércio varejista, com o aumento da oferta de crédito e a prática de juros abusivos, também têm sua parcela de responsabilidade nas dívidas pessoais. “São mais de 73 milhões de brasileiros endividados. Não basta renegociar dívidas e, daqui a um ano, essas pessoas voltarem para as estatísticas. Problemas financeiros mexem com a nossa estabilidade emocional, autoestima e sono, além de gerar uma sensação de irresponsabilidade e incompetência. Mas o sistema só te conduz quando você não sabe para onde ir. Por isso, é preciso saber se comportar em relação ao crédito (que não é um vilão por si só, mas um instrumento financeiro), se organizar, mudar a mentalidade, pagar à vista o que der, guardar dinheiro e ter uma vida mais planejada, com alguma reserva. Viver na emergência será sempre um ambiente tenso, desesperador, sem margem para negociação”, aconselha Ione Amorim, do Idec.

NOSSO CÉREBRO BUSCA O CONSUMO E O PRAZER IMEDIATO, MAS, QUANDO VOCÊ ESTABELECE OBJETIVOS CLAROS E UM PLANO DE AÇÃO, CONSEGUE MUDAR PADRÕES DE COMPORTAMENTO 
Gabriela Chaves, fundadora do NoFront Empoderamento Financeiro 

PLANEJAMENTO EM AÇÃO 

Curso online Mentalidade Financeira, disponível na plataforma EAD Sesc Digital, ensina a organizar finanças, quitar dívidas, poupar e traçar metas  

Lançado pela plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo, o curso Mentalidade Financeira, apresentado por Amanda Dias, busca aproximar as pessoas (principalmente as de baixa renda, periféricas e empreendedoras) de conteúdos e orientações sobre educação financeira, com dicas e técnicas fáceis de pôr em prática. Em seis aulas online, a especialista ensina a calcular o custo de vida, entender quais são os gastos essenciais de uma pessoa e do núcleo familiar, estabelecer categorias para cada despesa, criar o hábito de quitar dívidas e economizar.Além disso, as aulas mostram como fazer investimentos de baixo risco para assegurar um futuro estável financeiramente. 

Um dos 20 cursos disponíveis na plataforma de EAD do Sesc – e um dos cinco mais acessados –, Mentalidade Financeira inclui material de apoio, como vídeos extras, exercícios e os e-books Plano de quitação de dívidas, Jornada da emancipação e Tecnologias africanas que vão revolucionar a sua vida financeira.   

Segundo Fernando Amodeo Tuacek, gerente do Sesc Digital, o curso tem um potencial transformador, com impacto positivo e direto sobre a vida das pessoas. “O acesso à educação financeira é um direito e, também, uma questão de utilidade pública para brasileiros(as) dos mais diferentes contextos. A virada de chave da mentalidade financeira passa por mudarmos a forma como lidamos com o dinheiro e, ainda, por discutirmos o que é prosperidade para cada um”, destaca.  

Saiba mais sobre esse e outros cursos disponíveis gratuitamente na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo: sescsp.org.br/ead 

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