Por João Paulo Lima Barreto
O processo de educação indígena é fundado na sua dimensão filosófica que envolve conhecimentos imateriais, práticas sociais, cuidado da pessoa, cuidado do corpo, cuidado coletivo e tecnologias que são desenvolvidos de acordo com as noções, concepções, ética e valores de cada grupo social.
Para educação da pessoa, os avós e os pais são equivalentes a instituições de educação, pois têm a missão de formar pessoas de acordo com as noções, concepções, ética, valores, pensamento e conhecimentos específicos de seu grupo. Além dos pais e avós, a comunidade à qual a pessoa pertence também é responsável pela educação, tornando-se uma responsabilidade coletiva.
O processo de educação começa desde a gestação e se estende até o fim da vida. Desde o nascimento, a proteção coletiva da pessoa é assegurada. Uma criança que acompanha sua mãe e seu pai em atividades domésticas já está sendo educada, cuidada e protegida. Ao estar com os pais, avós e irmãos, seja em atividades domésticas ou no roçado, as crianças amadurecem e aprimoram seus conhecimentos sobre as concepções, regras sociais e noções de ética do seu grupo.
À medida que crescem, elas passam a participar da vida coletiva com os adultos, desfrutando do cuidado e proteção dos membros da sua comunidade. O sentido de pertencimento é construído e mantido através de relações abertas entre as sociedades e outras gentes e coletividades. A educação indígena, portanto, é um processo contínuo de construção e transformação.
Existem conhecimentos considerados vitais para um grupo social, incluindo conhecimentos imateriais, materiais e tecnológicos. Os estudos antropológicos do alto Rio Negro mostram que, para os povos Yepamahsã (Tukano), existem três dimensões fundamentais para a construção da pessoa e dos conhecimentos vitais que pertencem à dimensão imaterial: Kihti-ukuse, Bahsese e Bahsamori.
Kihti-ukuse, traduzido como mitos, mitologias, lendas, narrativas e fábulas, são histórias que resultam das tramas sociais vivenciadas pelos demiurgos e seus feitos para o surgimento das coisas, dos seres e de tudo o que existe no mundo terrestre, bem como a organização do mundo, da humanidade, dos seres, das coisas, das técnicas e das paisagens. Essas histórias explicam a construção do mundo pelos seres que habitam no cosmo desde sempre e o surgimento de todas as coisas que existem no mundo terrestre. Nelas, encontramos lições, regras sociais, obrigações, etiquetas, conceitos e noções sobre a origem das doenças e fórmulas de cura.
Bahsese é a tecnologia de cuidado de saúde e cura, traduzido como benzimentos. Bahsese são fórmulas metaquímicas e metafísicas evocadas pelos especialistas para proteção e cura. A evocação é uma manipulação metaquímica de produção de remédio e manipulação metafísica de proteção das pessoas. As explicações sobre as origens das doenças e as fórmulas de bahsese são extraídas do kihti-ukuse e também envolvem a evocação de elementos vegetais, animais, da terra, 15da água, do ar, do fogo e da força vital da pessoa por meio da oralidade. Essa tecnologia de evocação é feita na forma de sopros nos elementos agenciadores, cantos, danças e movimentos corporais.
Bahsamori, traduzido como rituais, é um conjunto de práticas sociais que atualizam os feitos dos demiurgos, seja em festas, danças ou na formação de novos especialistas. Bahsamori envolve festas e outras atividades cotidianas como a construção do roçado, plantio, construção de armadilhas de captura de peixes e proteção da aldeia e das pessoas de acordo com a transição das constelações.
Kihti-ukuse, Bahsese e Bahsamori são conhecimentos considerados essenciais e fundamentais pelos povos indígenas do noroeste amazônico. Cada geração deve aprender, praticar e viver esses conhecimentos, que são os bens imateriais mais valiosos para a existência das sociedades indígenas.
Existem outras dimensões que fazem parte do processo de educação e constituem o sistema de educação indígena. Aqui, vamos elencar algumas de modo didático.
As crianças, desde cedo, são educadas a desenvolver cuidados com os hábitos alimentares, sendo orientadas e acompanhadas a consumir certos alimentos de forma moderada. Algumas regras incluem evitar o consumo excessivo de peixes assados, alimentos quentes, além de peixes considerados gordurosos ou remosos. O cuidado com a alimentação é essencial, pois contribui para a aprendizagem e memorização fácil, o desenvolvimento de um corpo ativo, um espírito intuitivo aguçado e um estado de disposição sem preguiça.
Outro aspecto importante da educação indígena é o cuidado com os seres que habitam a terra, floresta e água. Desde pequenas, as crianças são ensinadas a respeitar os seres que vivem em ambientes como cachoeiras, rios, lagos, matas e na própria terra, pois são considerados responsáveis por cuidar de tudo que existe no território. A falta de cuidado, proteção e respeito a esses seres pode resultar em ataques às crianças e às pessoas. Assim, as crianças são orientadas a respeitar cada lugar e ambiente por onde circulam, garantindo uma qualidade de vida sem doenças e conflitos, assegurando, dessa maneira, a abundância de recursos necessários.
O respeito e cuidado com as pessoas também é uma dimensão fundamental da educação indígena. As crianças são ensinadas a respeitar seus pais, avós, tios, irmãos e parentes que vivem na mesma comunidade ou em outras comunidades. Nesse sentido, é importante que a criança aprenda comportamentos adequados e uma linguagem apropriada para interagir com outras pessoas. O respeito é ensinado no dia a dia, com base em noções de ética, educação e relações interpessoais e com outros seres que habitam diferentes domínios.
O cuidado com o corpo é outra dimensão essencial da educação indígena. Todos os dias, ao amanhecer, as crianças são orientadas a tomar banho e a se movimentar na água para fortalecer o corpo, ganhar força para as atividades diárias e limpar o estômago. Esse cuidado inclui a ingestão de sumo de um cipó específico durante o banho matinal. Além disso, manter o corpo protegido com pinturas corporais é fundamental, pois se acredita que a desproteção pode causar sérias doenças.
Atualmente, a educação indígena está imersa em novas realidades. As instituições indígenas foram dizimadas e desestruturadas, com os corpos indígenas sendo moldados pelo modelo de educação ocidental. O enfrentamento de conflitos externos traz grandes transtornos para a continuidade dos povos e suas práticas sociais. Diante desse novo contexto dinâmico, o papel dos educadores e o domínio de conhecimentos sobre diferentes modelos de educação tornam-se uma necessidade urgente para superar discriminações e promover diálogos entre os modelos de educação. O desafio é complexo, mas é necessário enfrentá-lo.
João Paulo Lima Barreto é indígena do povo Yepamahsã (Tukano), nascido na aldeia São Domingos, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Graduado em Filosofia e Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas. Pós-doutorando bolsista CAPES. Recebeu o Prêmio CAPES de Tese, Edição 2022, na área de Antropologia/ Arqueologia. É fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, fundador da Casa de Comida Indígena Biatuwi, membro do SPA – Science Panel for the Amazon (Painel Científico para a Amazônia), da Academia Brasileira de Ciência, membro do Comitê Científico SoU_Ciência e da OTCA – Organización del Tratado de Cooperación Amazônica.
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