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O aprendizado é um movimento constante e presente em diferentes fases da vida humana. No entanto, por muitos séculos, a escola era representada como única responsável pelo ensino de áreas como matemática, ciências, história e literatura. A partir do século 20, o conceito de educação integral passou a incorporar outras instituições, cenários e uma diversidade de atores em coexistência para a formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Derrubada a ideia de que o território não tem importância nesse processo educacional contínuo, constatou-se que é a partir dele que se dão o processo de formação e o desenvolvimento de novos cidadãos.
Para a diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa, ao constatarmos que a relação escola-território é um elemento estruturante, “a Educação Integral entende que o reconhecimento da criança e do estudante – dos seus códigos, desafios e dos valores de sua comunidade – é algo fundamental para uma educação de qualidade”. Dessa maneira, “isso significa compreender nossa diversidade étnico-racial, territorial e cultural e o enfrentamento intencional do racismo, do sexismo, do capacitismo e da exclusão social como matérias-primas por excelência do nosso projeto de educação”, acrescenta Costa.
Neste cenário, a Coordenadora-Geral de Educação Integral e Tempo Integral na Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica, na Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, Raquel Franzim, aponta o desafio às instituições de ensino: “reconhecer que outras instituições, recursos, pessoas e práticas têm seu papel, têm saberes próprios e somam esforços na garantia de direitos na infância e juventude, inclusive no direito à educação”. A esse quadro desdobra-se outro obstáculo, “vincular o currículo de maneira intencional e contextualizada aos agentes, saberes, fazeres e práticas do território”, destaca Franzim.
Neste Em Pauta, Natacha Costa e Raquel Franzim tecem suas reflexões sobre as implicações da educação – à luz de um processo formativo que inclui escolas, outras instituições e práticas sociais – vinculada ao território onde se faz presente.
Por Raquel Franzim
Desde a década de 1930, há debates sobre reformas educacionais com a finalidade de promover o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes em suas diferentes fases de crescimento e, para tanto, a necessária democratização do direito à educação para todos. Nas décadas seguintes, experiências criadas por Anísio Teixeira (1900-1971), na Bahia, e Darcy Ribeiro (1922-1997), em Brasília e no Rio de Janeiro, buscaram materializar a compreensão de educação plena, cidadã e vinculada ao seu território. Estas constam também como as primeiras experiências que tentaram superar a curta jornada de tempo escolar para as classes socioeconomicamente desfavorecidas, o que se entendia, à época, como um dos motivos para os baixos resultados nas aprendizagens dos estudantes.
Os anos que seguiram à reabertura civil, à política do golpe de estado e à ditadura militar (1964-1985) foram marcados por debates internacionais e nacionais de reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas com direitos sociais, econômicos e culturais. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças de 1989 e a Constituição Federal de 1988 estabeleceram a doutrina de proteção integral e o princípio de solidariedade entre famílias, sociedade e Estado no que tange ao asseguramento da vida àqueles entre zero e 18 anos.
Em sua esteira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina um conjunto de direitos a serem primados, como a alimentação, a saúde, o esporte, o lazer, a cultura e a convivência comunitária. A educação, em especial, contou, nesta efervescente década de retomada democrática, com a construção das diretrizes e bases da Educação Nacional – sancionada na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/1996 –, também chamada de Lei Darcy Ribeiro, em face da liderança do antropólogo e senador, à época, no amplo debate que ganhou o país.
Já em seu Artigo 1º, a LDB define a educação como um processo formativo mais amplo do que o que ocorre nas escolas e em coexistência com outras instituições e práticas sociais. Adiante, ao focar na educação escolar, determina como princípio a devida conexão da escola com as práticas sociais, a valorização do extraescolar e a aprendizagem ao longo da vida. A LDB, no que tange a educação em nosso país, é explícita: a educação que se pretende formar para a integralidade da pessoa humana – para o intelecto, social, emoções, físico e para o simbólico e político – deverá ocorrer para além dos muros da escola.
Para alguns, essa pode ser uma afirmação óbvia. É sempre bom lembrar, todavia, que no imaginário social que se tem sobre os processos de ensino e de aprendizagem, a alegoria das quatro paredes da sala de aula, cadeiras e ambientes fechados são majoritários. Em uma concepção e prática de educação integral afirmada na LDB – a qual pressupõe como resultado o desenvolvimento pleno, a formação para a cidadania e o mundo do trabalho –, a comunidade a qual pertence a escola, os diversos territórios e a cidade, propriamente, são elementos essenciais para o alcance desta finalidade.
Por esse motivo, parte o primeiro desafio às instituições de ensino: reconhecer que outras instituições, recursos, pessoas e práticas têm seu papel, têm saberes próprios e somam esforços na garantia de direitos na infância e juventude, inclusive no direito à educação. A isso, se desdobra outro obstáculo: vincular o currículo de maneira intencional e contextualizada aos agentes, saberes, fazeres e práticas do território. Tal perspectiva transforma a cultura escolar, deixa a escola mais atrativa, significativa e promove, entre estudantes e suas famílias, um sentimento de pertencimento.
É mais inclusiva e diversa ao impregnar o currículo do universo que tradicionalmente não o ocupa: as matrizes epistemológicas de comunidades, povos que nos constituem, como os povos africanos, afro-brasileiros e originários, como as diversas nações indígenas. A Educação Integral “no” e “com” o território (no, na perspectiva de ocupação e com, na perspectiva de mediado por) acorda processos de trabalho em equipe entre profissionais da educação e de outros setores, favorecendo arranjos criativos.
Não à toa, a educação integral exige muito mais do que as habituais quatro ou cinco horas diárias de jornada escolar. Diferentes espaços e saberes no currículo demandam a jornada de tempo integral, meta pactuada pela sociedade brasileira no último Plano Decenal de Educação e reafirmada na recente Conferência Nacional de Educação [em janeiro deste ano]. É mais tempo na escola para se aprender mais com, no e sobre o território que vivemos e ocupamos.
A escola como parte de uma rede de instituições engajadas no desenvolvimento integral de crianças e adolescentes cumpre o papel contemporâneo de promoção dos direitos e na prevenção às violências. Se o ditado “é preciso de uma aldeia inteira para criar uma criança” diz tanto, e há tanto tempo, sobre a necessária integração e articulação da educação com outros setores, a fala do pensador italiano Francesco Tonucci fortalece que é preciso uma cidade inteira para a educação escolar, não apenas a escola.
Não são poucos os casos em todo o país de a escola ser o epicentro de transformações na vida de sua comunidade. Sobre isso, organizei publicação com experiências em todo o país há alguns anos em O Ser e o agir transformador, para mudar a conversa sobre educação, disponível gratuitamente na internet. De lá para cá, o planeta passou a enfrentar novos desafios e ainda maior engajamento das escolas, por exemplo, na delicada situação socioambiental e climática que vivemos.
Em um país marcado por séculos de escravidão, racismo, violação ao direito de habitação com dignidade, saúde, entre outros, há que se entender também quando o território é uma ameaça, reconhecido como precário ou insuficiente. Aqui, o território também é um importante ponto de partida para se aprender sobre ele, para se entender sua história e, de maneira crítica, aprender a propor e agir coletivamente para transformá-lo. O território como conteúdo abordado de maneira crítica é um importante aspecto de uma educação cidadã e emancipadora.
Por isso, a política pública educacional e os demais setores da rede de proteção integral devem pensar na melhoria e no investimento em localidades mais vulneráveis com instituições, profissionais e práticas sociais diversas como o esporte, a cultura, as artes, as ciências e tecnologias, os direitos humanos e a participação social.
A pobreza multidimensional e a alta vulnerabilidade social que impacta infâncias e juventudes, juntamente com suas famílias, é fruto da ausência do Estado. Seu enfrentamento ocorrerá na presença deste, juntamente com movimentos sociais e de famílias – a isso se dá o nome de política intersetorial, um desafio para qualquer um que trabalhe com a política pública, seja na escola ou em gabinetes. O território é sempre o ponto de partida do desenvolvimento integral e da educação para a cidadania.
Por Natacha Costa
É comum que a educação integral desperte uma dúvida: escola em tempo integral é equivalente à educação integral? Bem, ainda que a ampliação da jornada seja parte das aspirações da Educação Integral, há algo mais. Pelo menos para os educadores e educadoras que, à luz da obra, pensamento e trajetória de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, vêm formulando e implementando uma série de políticas públicas em todo território nacional.
Estas políticas têm impulsionado experiências em escolas públicas e organizações sociais, assim como uma extensa produção acadêmica nas universidades brasileiras. Se destacarmos apenas o Programa Mais Educação do Ministério da Educação, tivemos milhares de escolas públicas alcançadas e milhões de estudantes atendidos. Todo este movimento na primeira década dos anos 2000 pautou a Meta 6 do Plano Nacional de Educação (2014-2024) que aponta para a obrigatoriedade da oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos e alunas da educação básica.
Ainda que desde 2017 esta agenda tenha sofrido graves retrocessos em nível federal, sua aposta seguiu viva nos municípios e escolas brasileiras. Por sua vez, o governo Lula retomou esta agenda em 2023 com o lançamento da política Escola em Tempo Integral do Ministério da Educação, que prevê a indução da oferta de um milhão de matrículas em tempo integral já em 2024.
Nesse contexto, para além da questão da jornada escolar, a Educação Integral se apresenta como uma concepção que afirma ser direito de cada criança e de cada estudante brasileiro uma educação que garanta a aprendizagem e o desenvolvimento integral. Isso significa que para além da formação intelectual, é papel da educação garantir o desenvolvimento social, físico, emocional e cultural. Não é, portanto, o tempo que define uma educação integral. É o compromisso com o direito a uma formação integral.
Ainda, por reconhecer a diversidade de infâncias, adolescências e juventudes e as desigualdades sociais, raciais, de gênero e territoriais a que estão submetidas, a Educação Integral tem como eixo estruturante a relação escola-território. Esta compreensão parte do pressuposto de que para garantir a aprendizagem e o desenvolvimento integral de crianças e estudantes é fundamental ir além do que tradicionalmente o modelo escolar oferece (disciplinas, aulas, avaliações de desempenho), e contextualizar as práticas educativas.
Assim, ao afirmar que a relação escola-território é um elemento estruturante, a Educação Integral entende que o reconhecimento da criança e do estudante – dos seus códigos, desafios e dos valores de sua comunidade – é algo fundamental para uma educação de qualidade. Isso significa compreender nossa diversidade étnico-racial, territorial e cultural e o enfrentamento intencional do racismo, do sexismo, do capacitismo e da exclusão social como matérias-primas por excelência do nosso projeto de educação.
Nesse sentido, o território na Educação Integral vai além de sua noção espacial, em uma perspectiva alinhada àquela da geografia crítica de Milton Santos (1926-2001), que define que o território deve ser compreendido a partir do que ele chama de “território usado”, ou seja, de sua dimensão física associada à identidade. Deste modo, articular escola e território não se limita a deixar o espaço físico da sala de aula para aprender na praça ou embaixo da árvore de modo a tornar a experiência “mais divertida”. Trata-se de investigar, compreender e incorporar espaços, agentes e saberes dos estudantes, de suas famílias e comunidades para construir uma escola comprometida com a constituição crítica-reflexiva dos sujeitos.
As experiências orientadas por esta perspectiva de educação integral mostram que a articulação entre a escola e o território cria condições para quatro aspectos fundamentais: a ampliação e diversificação das interações educativas com a articulação de novos tempos, espaços, agentes e linguagens ao cotidiano formativo; o engajamento das famílias e das comunidades nos processos educativos de crianças e jovens; a aprendizagem em contexto, com enorme ganho em relação ao sentido do que se aprende; e a possibilidade da escola se articular a uma rede de proteção social (assistência social, saúde) que garanta direitos para além do que cabe a ela.
Deste modo, em síntese, a Educação Integral propõe além da ampliação da jornada também uma reorganização curricular que supere o “mais do mesmo”. Ou seja, não se trata de manter as aulas de 50 minutos de forma fragmentada e incluir no dia a dia atividades de contraturno. No lugar disso, trata-se de superar a “escola de turnos”, como denunciava Anísio Teixeira, e promover a integração das experiências dos estudantes e da comunidade – linguagens, território e agentes – às diferentes áreas do conhecimento.
Nesse sentido, a Educação Integral propõe um conceito de qualidade que reconhece a singularidade dos sujeitos e territórios, compreende o estudante como sujeito social, histórico, multidimensional e competente, suas famílias e comunidades como aliadas dos processos educativos, os professores como profissionais que pesquisam, desenvolvem suas práticas e conhecem seu contexto de atuação melhor do que ninguém, e a escola como parte de um ecossistema educativo articulado e plural. A proposta da Educação Integral, portanto, é que cada escola vá além dos seus muros e se converta em um território educativo feito de aprendizagens significativas e transformadoras.
Jaqueline Moll, intelectual de referência no tema da Educação Integral, afirma que há muitos jeitos de ser escola e que o projeto de educação que orienta o modo de ser de cada escola reflete um projeto de sociedade. Os desafios sociais, econômicos, ambientais e políticos que se interseccionam no Brasil apontam para a persistência das desigualdades estruturais que desde sempre submetem uma grande parte de nossa população a uma condição de cidadania incompleta marcada pela violação de direitos. Esse contexto demonstra que efetivar uma educação integral, democrática, inclusiva e antirracista para todas as pessoas não é apenas um imperativo ético, mas também uma tarefa urgente.
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