Quando me perguntam o que é a educação indígena, minha primeira opção de resposta é dizer que é a educação dos sentidos. Aquela recebida desde a infância nas comunidades ou nos núcleos familiares extensivos (que são formados pelos pais, avós, tios, primos), o que parece ser um pouco diferente da ‘vida moderna’, vivida nas cidades e em outros territórios habitados por não indígenas, onde a base familiar já é nuclear (pais e filhos).
Educar os sentidos, nesse tipo de formação para a vida que é a educação indígena, é permitir que entendamos quem somos e qual nosso lugar na sociedade, pois, em termos gerais, esse processo educativo é igualitário e comunitário, gerando uma integração gradual, participativa e contínua dos indivíduos em sua comunidade.
Dessa forma, os indivíduos crescem e tornam-se agentes socializadores, pois toda a ação tem uma eficácia socializadora, já que a educação ocorre durante toda a vida de uma pessoa indígena, através de processos de interiorização e transmissão de valores de geração a geração, mantendo, assim, a cultura viva.
Educação indígena – educação dos sentidos – começa muito cedo, desde a barriga da mãe, onde os cuidados para a vida desse novo individuo já se desenha. Por isso, dizemos que a educação indígena não se resume ao ambiente escolar. O aprendizado se inicia muito antes de se adentrar as salas de aulas. Muitos outros professores e mestres compartilham saberes cotidianos. Nesse sentido, reforço, portanto, a ideia de que o ambiente escolar passou, com o decorrer do tempo, a fazer parte da educação indígena – e não o contrário.
Na vida não indígena também é assim, embora muitos de nós considerem a educação recebida na escola como fundamental para a formação do indivíduo, esquecendo-se de outras camadas, tão importantes quanto o conhecimento escolar, para a construção desse quebra-cabeça que é o ser humano e a vida em sociedade. Afinal, não se pode delegar somente à escola atos educativos que devem partir de contextos familiares e comunitários.
Convido, então, cada um a pensar o que é a educação e como ela é importante para as nossas relações e para a vida em sociedade. Como temos construído nossas histórias e memórias? Como fomos preparados e preparamos para propiciar relações equilibradas dentro da sociedade em que vivemos, ao mesmo tempo em que garantimos a dignidade humana? Qual tempo temos tido para praticar a vida coletiva, oferecer atenção aos nossos entes mais próximos ou, até mesmo, construir oportunidades de experimentar o mundo em que vivemos? Poderia a educação indígena nos fornecer algum ensinamento que nos auxilie no nosso anseio de bem-viver? Existem semelhanças e similaridades nos modos de educar dos indígenas e dos não indígenas? Qual o lugar da educação dos sentidos para a sociedade contemporânea? Esta é uma reflexão que nos provoca uma revisão da maneira como tratamos e realizamos a educação em contexto não indígena.
No sentido de uma reflexão mais profunda, ressalto que não se trata de dizer que este modelo é melhor ou pior que aquele; não se trata de dimensionar o mais especial, numa escala que qualifica/desqualifica os demais existentes pelo mundo. Trata-se de oportunizar aprendizado coletivo. Trocas e construções conjuntas. Conhecer e reconhecer esse outro espaço pedagógico, que é a vida indígena. Ver um pouco mais de perto quais desafios e oportunidades que ela nos traz.
Posso garantir que essa maneira de educar desafia o próprio tempo dos adultos, já tão sobrecarregados das demandas da vida contemporânea. Desafia, porque a educação feita pelos povos indígenas se dá através do tempo e do espaço. Desde que acordamos até a hora que dormimos, nós aprendemos vivendo. Os aprendizados se processam através da participação, imitando e colaborando com os mais velhos. Nas sociedades indígenas a educação mobiliza o senso coletivo, sem descartar as habilidades individuais.
Isso permite, desde muito cedo, que cada indivíduo compreenda suas relações mais íntimas com o universo que habita, respeitando e interagindo com ele de maneira equilibrada. É vendo e convivendo com as práticas rituais, aprendendo cantos e danças, as pinturas e manualidades, entre outras práticas, entrelaçando com tudo aquilo que vem da vida não indígena, mas que já faz parte das nossas ações cotidianas. As manifestações estéticas indígenas têm grande participação nesses ciclos. Cantos, danças e produção de ornamentos representam uma série de conhecimentos compartilhados e que retratam o mundo para os indígenas.
É na coleta da matéria-prima que se estabelece a ideia de um equilíbrio entre o mundo animal, vegetal e os entes de um mundo espiritual, o que faz com que os indivíduos indígenas busquem relações de subsistência que não atinjam de maneira precária o ambiente em que vivem.
O que cada leitor pode pensar nesse momento é que estamos no século 21 e que tudo o que foi dito, até agora, parece não fazer sentido, diante da realidade em que vivemos. Cabe dizer que não há nenhum equívoco nessa contestação, porém, existem nuances a respeito dela.
Com o contato extensivo com os não indígenas e suas outras maneiras de educar, muito dessa pedagogia de educar pelos sentidos, sem dúvida, se transformou. Outras linguagens e outros modos de ver o tempo certamente alteraram muito a vida indígena, até porque a cultura é circular e vai se readequando em sua própria existência. Porém, os diversos povos indígenas no Brasil carregam memórias e conhecimentos importantes e suficientes para reafirmar suas existências e, por isso, permanecem vivos. Essa menção me faz lembrar uma frase bastante dita pelos próprios indígenas, chegando a ser vista como uma frase de efeito: “povos indígenas são povos com passado e com memórias presentes”.
or isso, os processos de resistência ainda se mantêm firmes neste século 12 e não foram inundados pelo imenso vazio que a industrialização e avanço tecnológico e de consumo impõe a todos nós. Resistência tão firme que é passível de compartilhamento com aquelas pessoas que não são indígenas, mas que pretendem reconhecer essa outra forma de vida, aprender e conviver com ela
E isso se torna possível a partir dos encontros. Encontros esses que possibilitam o acesso a essas diferentes maneiras de educar, entendendo a importância de difundir tais práticas e a importância destas para que utilizemos os nossos sentidos. E não me refiro meramente aos sentidos humanos (olfato, audição, tato, paladar e visão), mas a sensibilidades, à educação do sentir. Do fazer sentido, do sentimento, do ser.
E é de olho nesse encontro que conecta diferentes protagonistas que você poderá acessar, com a ação Agosto Indígena, uma série de atividades desenvolvidas pelo Sesc São Paulo, instituição que privilegia o encontro com as diferentes formas com que a educação indígena se manifesta e faz sentido. Cria-se a oportunidade do encontro, onde a vida se faz trânsito coletivo, abre caminhos e novas perspectivas a partir da participação de diferentes povos e artistas indígenas em um mundo em transformação.
Educar aos moldes indígenas é fazer com que noções de mundo, tempo e espaço se articulem para o equilíbrio do corpo e do pensamento. Nos possibilita a todo instante a oportunidade de repensar nossas relações e propicia alternativas capazes de construir caminhos para o bem-viver, porque nos oferta uma educação dos sentidos. Aquela que toca profundamente em nossas relações e nos propõe visões com maior dimensão da vida.
Reconhecer a força da educação indígena é promover uma formação sensível à realidade e à diversidade em que vivemos. Abre para nós caminhos positivos e necessários para os tempos atuais.
Naine Terena é mestre em artes, doutora em educação, graduada em Comunicação Social (UFMT). Pesquisadora, professora Universitária, curadora e artista educadora. Empreendedora cultural na Oráculo comunicação, educação e cultura.
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