Entrevista com Heather Lenz, diretora do documentário que estreia com exclusividade na plataforma Sesc Digital

Por Duda Leite

No mundo de hoje, tornou-se fácil identificar alguns artistas. Andy Warhol e suas Marilyns. Frida Khalo e seus autorretratos. Van Gogh e seus girassóis. Portinari e seus murais. Yayoi Kusama e suas bolinhas coloridas. Porém, nem sempre foi assim. No caso de Kusama, a artista japonesa que atualmente está com 93 anos, ela teve que superar vários preconceitos. Era uma mulher em um mundo das artes ainda totalmente dominado pelos homens. Quando decidiu tentar a sorte em Nova York, no final dos anos 1950, sua intenção era furar a bolha do mercado norte-americano. Mas, além de ser mulher, Yayoi era uma imigrante japonesa que ainda por cima não dominava bem o inglês. Para completar, Kusama sofria de depressão e tentou o suicídio pelo menos uma vez na cidade, o que complicou ainda mais as coisas.

Yayoi teve que esperar pacientemente até o final dos anos 1980, para finalmente começar a ganhar algum reconhecimento. Em 1989, a curadora Alexandra Munroe inaugurou a primeira retrospectiva dedicada a artista em Nova York, Yayoi Kusama: A Retrospective, no Center for International Contemporary Arts (CICA). O fato de ter sido uma curadora mulher a primeira a mostrar o trabalho de Yayoi não passou despercebido pela cineasta norte-americana Heather Lenz. Heather era uma estudante de artes plásticas quando caiu nas suas mãos o catálogo dessa exposição. Este foi o início de uma jornada que levaria dezessete anos, até ela conseguir finalizar seu documentário Kusama – Infinito, que estreou no Festival de Sundance em 2018 e que chega à plataforma Sesc Digital.

Desde o início desse milênio, Kusama tornou-se uma das artistas mais bem sucedidas e reconhecidas do mundo. Ganhou um museu inteiramente dedicado à sua obra em Tóquio, além de diversas  mostras ao redor do globo, incluindo a exposição Obsessão Infinita, produzida pelo Museu Tomie Ohtake, que passou por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 2014. Sua instalação Narcissus Garden é uma das obras fixas do acervo de Inhotim. No início de 2023, Kusama chamou novamente a atenção da mídia após lançar uma nova collab com a marca de luxo Louis Vuitton, que recriou robôs idênticos à artista espalhados por suas lojas, além de uma coleção inspirada pelas suas famosas bolinhas. Tanto Yayoi como Heather são mulheres que lutaram para conquistar seu espaço em um universo dominado majoritariamente por homens.

Leia abaixo uma entrevista exclusiva realizada com a diretora Heather Lenz, sobre seu processo durante a produção do documentário Kusama – Infinito.

DUDA LEITE – Qual foi seu primeiro contato com a arte de Yayoi Kusama?

HEATHER LENZ – Estudei Artes Plásticas e História da Arte. A primeira vez que entrei em contato com sua arte foi quando era estudante, em uma aula de escultura. Meu professor mostrou uma imagem de uma das suas esculturas (de acumulação). Eu amei. Naquela época, só existia um catálogo sobre o seu trabalho. Era sobre a exposição que Alexandra Munroe estava envolvida, no final dos anos 1980, em Nova York. Eu li o livro e fiquei muito curiosa sobre a sua história. E eventualmente, fui estudar mais a fundo sua obra para fazer o filme.

DUDA – O que mais te chamou a atenção na arte de Kusama?

HEATHER – Eu gostaria de acrescentar que o museu local da cidade onde eu vivia, tinha uma escultura de acumulação de Yayoi, então pude vê-la pessoalmente. Na época, estava fazendo aulas sobre escultura e uma das obras que eu fiz era de alguma forma parecida com a escultura de Yayoi. Fiquei fascinada por ela. Estava estudando História da Arte, e tínhamos essas apostilas grossas onde aprendíamos sobre a história e quase não havia artistas mulheres. Comecei a pensar que sua contribuição para a arte nos Estados Unidos não havia sido compreendida ou reconhecida. Esses foram alguns dos motivos que me levaram a fazer esse filme, para contar sua história e fazer com que as pessoas conhecessem melhor sua história. Quando Yayoi viveu aqui nos Estados Unidos, ela participou de protestos contra a Guerra do Vietnã que envolviam nudez. E a imprensa local fez uma cobertura sensacionalista. Isso está retratado no filme. Eles não entenderam o contexto. Yayoi nasceu durante a Segunda Guerra, portanto tinha uma ligação direta com a dor que aquilo podia causar. Eu achei que ela foi mal compreendida diversas vezes, enquanto fazia esse trabalho inovador durante o período em que viveu aqui.

DUDA – Sobre essas matérias, você não acha que Yayoi já estava testando a imprensa, buscando formas de chamar a atenção da mídia?

HEATHER – Sem dúvida, ela sabia como chamar atenção inclusive pelo seu visual exótico e pela maneira como se vestia. Ela era muito bonita e chamava muita atenção. Claro que eram os anos 1960, então havia uma relação diferente com a nudez e coisas assim. Sem dúvida, ela estava a frente do seu tempo na maneira de documentar seu trabalho. Se você olhar para outros artistas homens como Jackson Pollock, existem imagens icônicas dele jogando tinta nas suas pinturas. Hoje em dia, com os telefones celulares e as selfies, as pessoas se auto documentam o tempo todo, mas naquela época isso não era algo comum. Foi bem avançado da parte dela. Normalmente, na imprensa, sempre há um texto acompanhado de imagens. E Yayoi sempre prestou atenção nisso, ela sempre criava imagens para acompanhar as matérias. Sem dúvida ela era bem progressista em termos da sua auto imagem.

DUDA – Como você conseguiu convencer Kusama a fazer parte do seu documentário?

HEATHER – Foi um processo bem longo. Além de estudar História da Arte, estudei cinema, portanto já estava produzindo alguns curtas. Mais tarde, quando fui estudar cinema na Universidade, me especializei em documentários. Na verdade, eu havia começado a escrever um roteiro de ficção sobre ela, com atores, etc. Mas sabia que, como uma diretora estreante sem conexões de família no negócio, ninguém iria me dar o dinheiro e me deixar dirigir esse filme que, além do mais, custaria caro, porque envolveria viagens internacionais e recriação de época. E, nessa época, Yayoi ainda não tinha o reconhecimento que ela tem agora. Então, tive a ideia de fazer um documentário, achando que seria bem mais fácil. Claro que foi bem mais complicado do que eu imaginava. Eu tinha a ideia na minha cabeça e estava bem determinada, mas não pensei na hora que seria um filme que precisaria de viagens internacionais, uma língua estrangeira, licenciamento de imagens de arquivo, incluindo fotos de fotógrafos respeitados. Gastamos um tempo enorme tentando decifrar quem detinha os direitos de algumas dessas fotos, portanto foi um projeto bem ambicioso para uma diretora de primeira viagem. Consequentemente, levei muito tempo para finalizar o filme. Foram dezessete anos ao todo. Foi muito difícil conseguir investidores. Mesmo nos últimos anos de produção, quando eu citava o nome dela, muitas pessoas nem sabiam quem era ela. Claro que entre as pessoas do mundo das artes seu nome era conhecido. Mas, entre as pessoas comuns, poucas pessoas sabiam quem ela era. Isso dificultou para conseguir o dinheiro.

DUDA – Como foi seu contato com a própria Yayoi? Como você chegou até ela?

HEATHER – Bom, no início eu era muito ingênua. Tinha uma grande paixão e acreditava muito no meu projeto. Eu tinha um amigo que falava japonês, consegui localizar o número de telefone do estúdio dela no Japão. É claro que a primeira coisa que eu devia ter feito, deveria ter conseguido permissão, e tudo isso, mas se tivesse feito tudo na ordem correta, provavelmente o filme não teria sido feito. Em vez disso, fiz meu amigo anunciar que estávamos fazendo o filme. Eu estava tão animada e achei que eles também ficariam. E que Kusama também ficaria, mas, claro que não foi o que aconteceu. Eles tinham muitas perguntas, como “em qual canal o filme vai passar?”, “em qual cinema será exibido?”, não entendiam o processo de um filme independente. Não entendiam que a minha paixão era tão grande que eu criaria uma dívida no meu cartão de crédito e trabalharia de graça por todos esses anos. E nunca tive dinheiro suficiente. Eles realmente não entendiam esse processo. Me toquei que seria um pouco mais difícil do que eu imaginava. Mas estava determinada. Se tivesse uma bola de cristal e soubesse as dificuldades que teria, o filme provavelmente não teria sido feito. De qualquer forma, sem saber nada disso, acabei me associando a uma produtora e começamos a filmar um teaser do filme, para atrair fundos. Comecei a gravar entrevistas com alguns curadores locais e através de um deles conheci Hart Perry, que fez a direção de fotografia do filme. Perry já havia trabalho em alguns documentários indicados ao Oscar. E, uns quatro anos após aplicar para vários fundos, ganhei meu primeiro, que envolvia uma viagem ao Japão. Finalmente tive a chave de ir para o Japão e me encontrei com Kusama. E a pessoa que deu esse fundo, também tinha uma produtora baseada nos EUA e no Japão. Então, ela viajou comigo e me ajudou com a tradução. Finalmente, quando nos encontramos, ela percebeu que eu havia feito minha pesquisa, e que não era uma novata em termos de arte, ou sobre a carreira dela. Acredito que o fato de eu ter feito perguntas relevantes ajudou. A maior parte dos fundos para documentários é para filmes com um apelo social. Apesar de que, existem questões sociais nesse filme, como a luta anti guerra, o sexismo, o racismo e o preconceito que ela teve de enfrentar trabalhando em Nova York. Mas são questões que chamam menos atenção. Algumas pessoas me diziam: “por que você não busca apoio de colecionadores ricos?”, mas claro que não existe uma Páginas Amarelas com uma lista de colecionadores. Ou seja: foi uma luta.

DUDA – Yayoi Kusama é sem dúvida uma mulher a frente do seu tempo. Quando você começou a fazer o filme, o nome dela ainda não era muito conhecido. Hoje podemos afirmar que ela finalmente tornou-se mainstream. Por que acredita que levou tanto tempo para que a arte dela ganhasse esse reconhecimento?

HEATHER – Por uma série de razões. No início, ela estava trabalhando no Japão. E tinha uma visão para sua arte que era fora dos padrões. Ela não se encaixava. Quando chegou aos EUA, havia uma imensidão de desafios. Naquela época as galerias e museus não exibiam artistas mulheres. Também acho que existia a barreira da língua em termos de comunicação. Havia muitos desafios. Tenho que dar crédito a Alexandra Munroe por ter trazido ela de volta. Foi Munroe quem permitiu que o público a descobrisse nos Estados Unidos. Com a exposição que ela fez no CICA (Center for International Contemporary Arts), que aparece no filme. Isso foi muito importante. E, apesar de não ser exclusivamente, muitas pessoas que ajudaram a redescobrir sua arte eram  mulheres. A sociedade teve que mudar muito para que essas curadoras pudessem chegar a posições de poder para mostrar um tipo de arte diferente. Na época que eu comecei a estudar cinema, não me dei conta de como a indústria do cinema tratava mal as mulheres. Muitas coisas tiveram que mudar para que sua arte se tornasse popular. E fazer com que as pessoas finalmente tivessem um olhar diferente para a arte sendo produzida. E estivessem numa posição que pudessem elevá-la ao seu nível.

DUDA – Já que você mencionou o fato da discriminação contra mulheres na indústria do cinema, você sente que houve alguma melhora na indústria?

HEATHER – Eu acho que você tem que olhar os números. Em documentários é verdade que existe um número maior de mulheres mas, nesse caso, as próprias mulheres podem se auto proclamar diretoras, como foi o meu caso. Claro que, em filmes com orçamentos maiores, ainda existe um enorme desequilíbrio. É evidente que existem modas e acredito que muitas pessoas estejam focadas na diversidade nesse momento. Apesar que não é algo direcionado exclusivamente para mulheres. Mas também para pessoas da comunidade LGBTQIA+, para que contem suas histórias. Não apenas americanos brancos. Mas, certamente não acredito que seja algo exclusivo para mulheres diretoras. É algo maior do que isso. Mas se você olhar apenas os números a discrepância ainda é chocante.

DUDA – Voltando ao filme, você menciona algo interessante: Andy Warhol teria visto uma instalação imersiva de Kusama, e teria tirado daí a ideia para sua sala com o famoso Papel de Parede de Vacas. Como era a relação dos dois? Tenho a impressão de que havia uma grande admiração entre eles, mas também uma forte competição.

HEATHER – Warhol já tinha muito sucesso e poder nessa época (os anos 1960), portanto se existia alguma rivalidade, seria de apenas um dos lados. Ele não estava lutando para pôr seu pé na porta. Warhol já era um artista bastante estabelecido, portanto não havia nenhuma rivalidade do lado dele. Não acho que ele estivesse muito preocupado com o que outros artistas estavam fazendo. Mas sim, é claro que quando você é um artista lutando por reconhecimento, e você encontra alguém que já está bem estabelecido, sempre pode existir uma sensação de estar menos satisfeito. Mas, não posso falar por ela. Apenas o que parece evidente até pelas datas de cada exposição. Mas isso não aconteceu apenas com Andy. Lucas Samarastambém criou uma sala de espelhos após a Yayoi. Basta ver as linhas do tempo.

DUDA – No filme você também toca no tema da doença mental de Yayoi, algo que é público. Um tema que sempre me surpreendeu na sua biografia foi o fato dela ter se auto internado numa instituição para pacientes com doenças mentais. E também sobre sua tentativa de suicídio em Nova York, onde ela caiu em cima de uma bicicleta, isso foi quase que uma performance. Como foi abordar esses temas com ela?

HEATHER – Ela foi muito aberta sobre todos os assuntos. Parte disso, eu acredito que teve a ver com o fato de eu ter feito muita pesquisa sobre ela antes das entrevistas. Quando finalmente a encontrei, já estava trabalhando no filme por muitos anos. Eu já havia entrevistado muitas pessoas que a conheciam. Isso tornou o processo mais fácil. Sabia algumas palavras em japonês, mas estava longe de ser fluente. Durante o processo do filme, eu me casei com uma pessoa japonesa. De qualquer forma, eu tinha um tradutor que ficava sentado numa outra sala, e que fazia a tradução simultânea para mim. Eu tinha duas câmeras, e ele ficava traduzindo ao vivo o que ela dizia, e isso facilitou muito o processo. Eu acho que isso ajudou muito. Dessa maneira, eu sabia o que ela estava dizendo. E isso ajudou bastante a deixar a conversa fluir.

DUDA – Você acha que ela está feliz?

HEATHER – Mais uma vez, eu nunca poderia responder por outra pessoa. Mas concordo com você: acho que ela conseguiu um ótimo arranjo com essa situação de morar na instituição. Muitos aristas lutam com suas tarefas cotidianas, e ela definitivamente não precisa se preocupar com isso. Incluindo como ganhar dinheiro para se manter, algo que te afasta da sua arte. Ela conseguiu montar um arranjo incomum, mas isso só foi possível graças ao seu talento. Com certeza ela conseguiu o apoio que ela precisava para criar sua arte. Em termos criativos sem dúvida foi um arranjo que deu muito certo para ela.

DUDA – Separei uma declaração de Kusama no filme que gostaria que você comentasse: “O tempo está finalmente com seus olhos voltados para mim, mas isso pouco importa, porque eu já estou a caminho do futuro”.

HEATHER – Foi muito difícil terminar o filme, porque a cada novo momento, Kusama estava fazendo um novo projeto bem interessante. E nós queríamos incluir no filme. Me parece que você tem uma interpretação otimista sobre a frase. Mas eu posso ver também um lado mais sombrio, ela está sendo finalmente reconhecida mas “a caminho do futuro”, também pode significar que o tempo está passando para ela. Ela poderia ter sido reconhecida antes e realizado mais projetos, mas felizmente conseguiu realizar bastante coisa. Nos seus últimos anos, quando muitos artistas estão desacelerando, ela está fazendo justamente o contrário. Sua produção está aumentando.

DUDA – Para terminar, você acha que a arte pode salvar vidas?

HEATHER – Sim, com certeza. É algo que as pessoas fazem com muita paixão. Eu me formei em Artes Plásticas e meu filme é sobre arte. Quando você está imerso num universo artístico, você pode esquecer dos outros problemas da vida e coisas ruins que estão acontecendo e se concentrar no seu trabalho. Eu acredito que a arte pode ser algo muito poderoso.

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KUSAMA – INFINITO
Dir.: Heather Lenz | EUA | 2018 | 80 min | Documentário | 14 anos

A vida e a obra da artista Yayoi Kusama, nascida em uma família conservadora, na área rural do Japão. Em 1958, ela se mudou para Nova York e, embalada pela revolução política e social americana dos anos 1960, produziu esculturas ousadas e protagonizou protestos contra a Guerra do Vietnã. O documentário explora a infância difícil de Kusama, o preconceito, o machismo que sofreu em seu trabalho e sua internação voluntária numa clínica psiquiátrica.

Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa

Disponível até 28.06.2023