A estética negra na obra visual de Abdias Nascimento como lugar político de fortalecimento e resgate das tradições africanas e afro-brasileiras
Por Ana Cristina Pinho
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Para algumas religiões de matriz africana, Xangô é o orixá da justiça, aquele que equilibra sabedoria e força para encarnar a luta por direitos e dignidade. Abdias Nascimento (1914-2011), que tinha Xangô como referência em discursos e criações, perseguiu, ao longo da vida, tanto a restituição da identidade cultural negra como transformações importantes nas relações raciais no Brasil.
Nascido 26 anos após a abolição jurídica da escravização, em 1914, na cidade de Franca (SP), era filho de Georgina Ferreira do Nascimento, conhecida como Dona Josina, doceira, ama de leite e especialista em plantas medicinais; e José Ferreira do Nascimento, Seu Bem-Bem, sapateiro. Teve seis irmãos. Abdias cresceu em um contexto de extrema desigualdade, cujos ecos da escravatura eram bastante presentes. Em suas palavras: “Nas fazendas que visitávamos, praticamente todos os negros (…) eram crias, filhos, netos e ex-escravos que trabalhavam em serviços domésticos. Não se chamavam eles como escravos, mas a estrutura do regime escravocrata ficava mantida ali, como se fosse imutável”, relatou em entrevista para a revista Acervo, publicada em 2009.
Aos 14 anos, mudou-se para a capital e participou do front paulista na Revolução Constitucionalista de 1932. Também foi a reuniões da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das primeiras organizações do século 20 a exigir igualdade de direitos para a população negra. Pouco depois, ao viajar por países da América Latina, Abdias Nascimento foi duramente impactado em Lima, no Peru, ao assistir à peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill (1888-1953), na qual um ator branco havia pintado o rosto de preto para interpretar o personagem principal.
Indignado, voltou ao Brasil e fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), cuja atividade cênica influenciou uma geração de cidadãos negros por meio da conscientização racial, da crítica ao etnocentrismo europeu e da valorização da herança cultural africana. De acordo com Júlio Menezes Silva, jornalista no Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, o Ipeafro, “o Teatro Experimental do Negro foi um momento de ruptura que permitiu que se passasse a considerar a atuação da pessoa negra dentro das artes cênicas. Foi a primeira companhia de teatro a possibilitar a atuação de negras e negros na condição de protagonistas, pensando o espetáculo do ponto de vista cênico, da direção, da produção”.
Além de dramaturgo, ator, escritor e professor, Abdias se dedicou também às artes visuais, depois dos 50 anos de idade. Como curador, liderou o desenvolvimento do Museu de Arte Negra, para divulgar a influência africana na arte moderna ocidental e representar a pluralidade da produção artística da diáspora negra. Sua obra visual como pintor é carregada de simbolismo africano e afro-brasileiro, explorando temas como ancestralidade, resistência, religiosidade e a força cultural dos povos africanos e seus descendentes. “A produção de Abdias como artista é um reflexo da produção dele como intelectual, como escritor, como dramaturgo, como ator. Ele faz um resgate das religiões de matrizes africanas na pintura, pensando que a religião, os orixás, não são deuses estagnados, eles são a vida, uma outra filosofia. São o vento, o mar, o rio”, destaca Douglas de Freitas, curador coordenador do Instituto Inhotim.
A multiplicidade de caminhos trilhados por Abdias alcançou a política. Suas propostas como deputado federal, senador e secretário de Estado influenciaram leis e políticas públicas em vigor hoje. “Ele propôs cotas na admissão às instituições de ensino superior, no mercado de trabalho, no funcionalismo público; também o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana não só na educação básica, como também na educação superior; e a designação do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra”, relembra Elisa Larkin Nascimento, fundadora, com Abdias, do Ipeafro.
Aos 97 anos, Abdias Nascimento faleceu em maio de 2011. Tal qual o martelo de Xangô, ele forjou na força e na sabedoria o equilíbrio entre arte, política e resistência, não apenas para restituir a cultura afro-brasileira ao seu lugar, mas para reavivar a esperança de um país que um dia possa honrar, plenamente, suas verdadeiras origens.
Exposição no Sesc Franca retrata a obra e a trajetória de Abdias Nascimento
Pan-Africanismo e Quilombismo são conceitos que visam resgatar e fortalecer a ancestralidade africana, promover a autonomia cultural e política, e construir um futuro em que a população negra possa existir plenamente.
O primeiro amplia a solidariedade e a resistência entre afrodescendentes numa perspectiva internacional, enquanto o segundo propõe um modelo de organização política e social inspirado na memória dos quilombos históricos, como o de Palmares. Na exposição Abdias Nascimento – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, em cartaz até 29 de junho de 2025 no Sesc Franca, essas concepções ganham forma e cor, traduzindo-se em uma linguagem visual e simbólica.
Em suas telas, elementos como máscaras, orixás e formas geométricas remetem a tradições culturais, não como elementos distantes, mas como forças vivas que conectam o passado ao presente e reivindicam um lugar legítimo das heranças culturais negras na construção da identidade brasileira. Para Douglas de Freitas, curador coordenador do Instituto Inhotim, a exposição que agora chega a Franca: “É um recorte de pinturas do Abdias, então é, de maneira geral, focado na produção pictórica, tendo em vista essa questão da religião como um movimento de luta antirracista e de resgate”.
A curadoria é assinada coletivamente por Douglas de Freitas, Deri Andrade e Lucas Menezes do Instituto Inhotim, e por Elisa Larkin Nascimento e Julio Menezes Silva do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro. Ambos os institutos foram responsáveis pela primeira versão da montagem, em Brumadinho (MG), e agora se unem ao Sesc, triangulando essa construção institucional coletiva de valorização de todo o legado de Abdias.
Da combinação de Pan-Africanismo e Quilombismo nas pinturas de Abdias Nascimento, presente na mostra, evoca-se a ideia de uma rede global de resistência e apoio mútuo, em que os valores de solidariedade e autonomia se entrelaçam. Assim, suas obras não apenas celebram a cultura africana e afrodescendente, mas também se tornam convites para um movimento coletivo em defesa dos direitos humanos e da liberdade.
FRANCA
Abdias Nascimento – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista
Curadoria: Douglas de Freitas, Deri Andrade e Lucas Menezes, do Instituto Inhotim, e Elisa Larkin Nascimento e Julio Menezes Silva, do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro
Programação de inauguração: de 28/11 a 1/12. Quinta a domingo, 10h às 18h30.
De 3/12 a 29/06/25. Terça a sexta, 9h30 às 21h30. Sábados, domingos e feriados, 10h às 18h30. GRÁTIS.
Saiba mais: sescsp.org.br/franca
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