Foto: Flavia Valsani
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Texto: Gabriel Vituri
Em uma tarde de segunda-feira, Rénée Londja espera em pé o início de um evento sobre imigrantes para o qual havia sido convidada a participar. Alta, negra e com um sorriso amistoso, fica ao lado de uma mala grande que está repleta de bonecas, vestimentas e outras peças confeccionadas com tecidos coloridos originários da África, criações suas que motivaram o convite para esse evento específico da Universidade de São Paulo (USP), mas que também a levam a diversas outras feiras sobre imigração que ocorrem na cidade.
Os traços africanos não deixam dúvidas sobre suas origens ancestrais, mas Rénée, de 45 anos, é latino-americana, mais precisamente da Guiana Inglesa, um pequeno território de colonização britânica localizado ao norte do continente. A identificação com as peças que expõe e comercializa também pode fazer parecer que se trata de uma atividade presente em sua vida há muitos anos, possivelmente décadas. O ofício, no entanto, é tão recente quanto a sua vinda para o Brasil, cerca de seis anos atrás; uma decisão tomada por causa de uma relação amorosa, e não por problemas que justificassem a fuga e a busca por um novo país para reconstruir a vida.
Como a Guiana não está na lista dos países cujos conflitos justificam pedido de asilo em território brasileiro, Rénée, tecnicamente, não é mesmo uma refugiada. Mas seu marido, Lambert Shesa, é. O geólogo, que trabalhava em grandes companhias de mineração, chegou aqui em 2011, quando precisou deixar para trás seu país de origem, a República Democrática do Congo. Durante a entrevista, com receio da repercussão da reportagem, a entrevistada pede que detalhes da história do refúgio de Lambert não sejam revelados por questões de segurança.
Quando o congolês precisou abandonar o continente africano, ambos escolheram construir juntos uma nova realidade em um país até então inexplorado pelos dois. “Ele veio me visitar na Guiana, conheceu a minha família, e depois que o pedido de asilo dele foi aceito, decidimos que eu iria para o Brasil”, ela conta. Rénée e Lambert se conheceram online e se corresponderam por cartas e e-mails durante seis anos até finalmente se mudarem para o mesmo lugar. Em dezembro de 2011, estabelecendo-se aos poucos no novo território, o casal se mudou para a cidade de Manaus e formalizou a união.
Bonecas negras
Em Georgetown, capital da Guiana, a mulher que é hoje artesã exercia uma atividade muito mais burocrática: gerenciava um restaurante, executando tarefas administrativas. “Quando cheguei ao Brasil, eu tinha a barreira da língua, que precisava aprender, e que ainda estou aprendendo”, lembra. Segundo conta, essa condição dificultava sua empregabilidade, pois “as pessoas falavam e eu não entendia”, diz. Além disso, outro fator fez diferença: “Eu não gosto de trabalhar para os outros, confesso. Prefiro ser a minha própria chefe”.
Assim, em casa, sem uma fonte de renda, Rénée se inscreveu em diversos cursos para desenvolver habilidades manuais. “Foi assim que eu comecei a trabalhar por mim mesmo, com uma série de trabalhos artesanais que aprendi nessa época”, explica, destacando as bonecas já como suas principais criações, “na época, só as tradicionais, simples, e sempre brancas”.
Durante esse período, a guianense começou a atentar para a falta de brinquedos que tivessem a pele negra representada pela malha preta. “Com o tempo, me dei conta: por que não fazer algo que possa promover a minha cultura, algo diferente das coisas que todo mundo está fazendo?”, reflete. A percepção de que as vitrines não exibiam bonecas negras, bem como uma história que escutou em uma feira de artesanato manauara, a levaram a uma nova guinada. Dentre as expositoras, havia uma mulher vendendo pequenas bonecas feitas a partir de uma mesma tira de tecido, amarradas repetidas vezes para formar cabeça, tronco e membros, adornadas com outras tiras de tecido representando as roupas.
A boneca que chamou a atenção de Rénée no evento, hoje uma de suas peças principais, era mais conhecida do que ela poderia supor. Chamadas de Abayomis, elas eram originalmente feitas por mulheres negras que vinham da África para serem vendidas como escravas na América – durante o trajeto, a fim de acalmar seus filhos e filhas, essas mulheres rasgavam pedaços de suas roupas e confeccionavam os pequenos objetos para distrair as crianças dos horrores que presenciavam. “Comecei a ir atrás disso, e aí descobri que eram muito populares. Quanto mais eu pesquisava, mais eu percebia que elas eram um símbolo de resistência”, afirma a artesã, que aprendeu o passo a passo com a colega da feira de artesanato de Manaus. Daí em diante, passou a só fazer bonecas negras, de todo tipo, “para que as crianças tivessem consciência de que as bonecas não são apenas brancas, para que se sintam confiantes com sua identidade, e assim educar sobre a nossa cultura”.
Assim como as outras peças confeccionadas por Rénée Lontja (acessórios, vestimentas, peças de decoração), as Abayomis também são feitas com tecidos genuínos de origem africana. Questionada sobre como recebe a matéria-prima, ela explica que durante as feiras fez muitos contatos com imigrantes da África, sobretudo na região central de São Paulo: “Eu apoio meus irmãos, e eles me apoiam”.
Autônoma, Rénée mora com o marido no extremo da zona leste da capital paulista, e é dentro de casa que confecciona suas peças. Durante a semana, tenta frequentar feiras ou exposições que ajudem a divulgar o trabalho e a cultura africana, e aos finais de semana costuma sair para expor e comercializar bonecas e produtos. Um de seus pontos fixos é a Avenida Paulista, para onde vai aos domingos na companhia de Lambert. “Eu não tenho equipe e nem loja. Ter essa estrutura é um dos meus sonhos”, revela a artesã.
Em seu mundo ideal, ela teria uma locação física onde as pessoas poderiam conhecer as bonecas e outras criações, e assim expandir os laços comerciais que seu artesanato poderia alcançar. Enquanto isso não é viável, a ex-administradora de restaurantes, hoje artista, divide seu tempo não só entre as feiras e a produção de seus trabalhos manuais, como também entre oficinas que ministra para ensinar pessoas interessadas em aprender como fabricar Abayomis e outras bonecas.
Lambert deixou para trás seu país por conta de conflitos que tornaram sua vida lá inviável. Já Rénée, que veio para viver uma história de amor, hoje reconhece que trocar a Guiana pelo Brasil, e um restaurante pelo artesanato, foi uma forma de valorizar a sua própria cultura. “Aqui eu vejo que as pessoas estão interessadas no que faço, e também em quais significados eu me apoio para produzir os trabalhos”, afirma. “Me sinto encorajada a continuar fazendo o que faço. Em São Paulo, principalmente, existe muito trabalho artístico, criativo. Tem gente que pega materiais inusitados e transforma em peças muito bonitas, e toda essa criatividade me fascina”, destaca.
Rénée Lontja diz que sempre foi criativa, e que os trabalhos manuais sempre a atraíram, embora não fosse algo que ela fizesse de fato até a mudança para Manaus colocar o artesanato em seu caminho. Segundo ela explica, a palavra Abayomi significa “encontro precioso” na língua iorubá. “Durante o período em que as mulheres escravizadas estavam vindo para o novo mundo, sem saber exatamente o que iria acontecer, essa boneca era um símbolo de força. Quando você dá ela a alguém, é felicidade que você está passando adiante”, afirma.
Como diz a artesã, que só veio a conhecer essa história depois de precisar se reencontrar com a própria cultura, sempre há uma pequena história por trás de todas as coisas.
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