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Por Tássio Ferreira*
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Nzambi Mpungu, deus supremo para os Bantu[1], nos privilegiou com a capacidade de perceber o mundo por vários sentidos, integrando o nosso corpo no relacionamento com o sagrado. Nessa caminhada de entender o mundo pelo meu corpo, no exercício constante de ser Taata dya Nkisi (sacerdo afro), me deparo com as crianças e sua formação no Terreiro Unzó ia Kisimbi ria Maza Nzambi (Terreiro de matriz Congo-Angola, Simões Filho-Ba). A criança no Terreiro tem a possibilidade de simular a vida, neste caso, atravessando experiências daquilo que poderá ser a sua sina, o seu odu (do iorubá, destino), ou seja, o traçado previsto para sua existência no mundo. Isso acontece na brincadeira de dar santo, de fingir ser divindades, experimentando corporeidades, estados de presença; na possibilidade de nutrir seu corpo no rolar da terra, nos pés descalços ou nas brincadeiras com o barro; no mergulho das águas do lukaya (rio), atravessando-se pela dinâmica das águas; na compreensão do jogo de limpeza energética proporcionada pelo fogo, observando a comida sendo preparada no fogão de lenha, ou no carvão queimando no incensador; ou ainda ajudando a fazer bandeirolas para enfeitar o barracão, percebendo o vento interferindo nos corpos e no espaço. A criança convive com diversas pessoas, de diferentes idades e referenciais civilizacionais, cujo processo de vivência nos muros do Terreiro contribuem constantemente nos aconselhamentos ou auxílios em simples gestos, como o de comer, pentear os cabelos, ou de cuidar de um ferimento de uma queda simples jogando bola.
Para os Bantu o nzailu (conhecimento) – neste caso aplicado no âmbito dos Terreiros de Candomblé – se estrutura na encruzilhada das experiências vivas, aquelas em que a presença é condição. O filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau diz que nosso corpo é biblioteca e tem a capacidade de armazenar em prateleiras os conhecimentos experienciados. Quando a criança ouve um/a mais velho/a rezando, por exemplo, ela se nutre tanto de nguunzu (de força sagrada evocada no rito) quando ela testemunha a ancestralidade, quanto da filosofia, da musicalidade, da corporeidade que o ato implica, da história viva do seus ancestrais invocada, do exercício da língua africana e de tantas outras perspectivas.
A mim cabe a orientação neste processo, a mediação de conteúdos que por vezes não farão sentido naquele momento para aquela criança. Daí a gente pode conceituar a ideia de Em-Sinar, como propõe a professora e Egbomi Vanda Machado. E com o ato de contribuir com a pessoa no encontro de sua sina, de seu caminho no mundo, temos as ensinagens negrodiaspóricas. Um conjunto de experiências articuladas sob um lastro ancestral pelo coletivo, mas que reserva as singularidades de cada corpo.
Comemoramos neste no ano de 2023 os vinte anos da promulgação da Lei 10.639/03 que regulamenta o ensino da cultura africana e negrodiaspórica em todos os níveis de ensino na educação brasileira. Muitas conquistas são celebradas, mas a luta contra o racismo ainda é uma realidade lacerante. É urgente que as nossas Escolas despachem os carregos coloniais que ainda as alicerçam, proporcionando para os/as estudantes uma educação sob a perspectiva da encruzilhada, evocando conceitualmente a professora Leda Maria Martins. Neste caso, o/a estudante sempre estará no centro de sua encruza, de posse das rédeas de seu corpo e de sua existência, contudo com a possibilidade do encontro de experiências que cada ciclo de ensino irá proporcionar em suas singularidades. A Escola ainda insiste num pacote fechado de conhecimentos que não dialoga com a realidade das crianças negrodescentes, contribuindo fortemente para a desculturação, silenciamento e invisibilização da trajetória.
As ensinagens negrodiaspóricas que sopro para o centro desta reflexão protagonizam os saberes tradicionais africanos em diálogo com a realidade diaspórica contemporânea, assegurando autonomia da pessoa, integrando todas as partes do conhecimento no conglomerado de experiências através da circularidade dançada por ciclos sucessivos para além dos eixos coloniais.
Finalizo e danço com o adjá em mãos para outras experiências de ensinagens negras que inspiram esta caminhada. Procurem saber das Pedagogingas de Allan da Rosa, da Pretagogia de Sandra Petit, do Negrificar de Camila Bonifácio, da Pedagogia de Terreiro de Maria Balbina dos Santos (Mam’etu Kafurengá), do MusiCenAfro de João Victor Soares e de tantos feitiços de ensinâncias que circulam e encorajam a luta por uma educação antirracista.
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* Tássio Ferreira é soteropolitano, multiartista da Cena, filho de Kisimbi, antirracista e antifacista, professor adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA), líder do grupo de pesquisa Aldeia – Núcleo de Pesquisas Afro-brasileiras em Artes, Ensinagens e Tradições na Diáspora (UFSB/CNPq), Taata dya Nkisi responsável pelo Terreiro Unzó ia Kisimbi ria Maza Nzambi (Simões Filho-Ba)
[1] Grupo étnico africano composto por diversas comunidades e línguas distintas que se justapõe por alinhamentos filosóficos e práticas culturais comuns.
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