Conhecida como a capital do basquete e dos calçados, a cidade de Franca, no interior paulista, destaca-se como polo de resistência cultural
Por Lúcia Nascimento
Fotos Matheus José Maria
Produção Adauto Perin e Indiara Duarte
Leia a edição de DEZEMBRO/24 da Revista E na íntegra
Com quantas histórias se faz uma cidade? Se os caminhos percorridos forem geográficos, Franca é a cidade do noroeste paulista situada entre os rios Pardo e Grande, uma região de colinas. Se os caminhos forem ambientais, a imagem é de uma região de Cerrado, que também preserva áreas de Mata Atlântica. Se a história narrada for a oficial, aquela que aparece nos livros didáticos, Franca pode ser lembrada como a região que recebeu uma população grande vinda do estado de Minas Gerais, no início do século 19. Esse grupo de pessoas se estabeleceu em terras, hoje francanas, para formar uma vila que, em novembro de 1824, foi emancipada com o nome de Vila Franca do Imperador.
A história pode ser contada também por um viés econômico, e nesse caso não daria para deixar de lado as plantações de café e, posteriormente, a indústria que transformou a cidade na capital nacional do calçado. Se a opção for uma narrativa gastronômica, não ficariam de fora o tradicional filé à JK e a salada Dakota. Ainda é possível descrever a cidade lembrando algumas de suas glórias, como o orgulho por ver seu time de basquete tantas vezes campeão, ou por ser o berço de um dos maiores artistas visuais brasileiros, Abdias Nascimento (1914-2011), que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2010 e que também foi deputado federal, senador e fundador do Teatro Experimental do Negro. Sempre há, no entanto, mais histórias a serem contadas.
“Há, em Franca, um protagonismo grande da população negra, mesmo diante de todos os racismos e da desigualdade social”, afirma Rosicler Lemos da Silva, doutora em serviço social e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), além de ter sido titular do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca (Comdecon). Para a pesquisadora, é fundamental olhar para esse protagonismo e conhecer uma história narrada por uma diversidade maior de pessoas, “aquelas que não estão nos livros ou que, quando aparecem, tantas vezes são lembradas apenas por terem sido escravizadas, e não como pessoas que também construíram a cidade, econômica e culturalmente”. Protagonistas que fazem de Franca, nos dias de hoje, um polo de resistência cultural.
Uma das vozes mais potentes da cidade é a do poeta Carlos de Assumpção, que hoje tem 97 anos. Nascido em Tietê, também no interior paulista, o poeta vive desde 1969 em Franca, onde escreveu grande parte de sua obra e cursou as faculdades de letras e direito na Unesp. Sua história com a poesia começou na infância, quando a mãe ensinava outras crianças a recitarem quadrinhas, que são poemas rimados de quatro versos, para animar as festividades da região. “Minha mãe tinha só o primário, mas lia muito e gostava de literatura. Ela ensaiava as quadrinhas em rodas com as crianças, e eu ficava assistindo. Achava aquilo bonito”, rememora Assumpção. Ele também se lembra de um poeta de Tietê, um repentista negro. “Ele parecia um Dom Quixote, e declamava poesia pelas ruas. Fazia crítica social, mas era analfabeto, não escrevia nada. Sei que esses dois fatos me entusiasmaram. Então, um dia, falei para minha mãe: vou ser poeta.” E, a partir daí, começou uma produção intensa, que alcança no poema “Protesto” um de seus pontos mais altos. Os versos iniciais anunciam: “Mesmo que voltem as costas / Às minhas palavras de fogo / Não pararei de gritar / Não pararei / Não pararei de gritar”. Para o poeta, o protesto é um modo de resistência e vice-versa.
É de um dos versos desse poema que vem o título da antologia Não pararei de gritar, publicada em 2020 pela editora Companhia das Letras. No posfácio, Alberto Pucheu, poeta e professor de teoria literária da faculdade de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escreve que, “ao sinalizar uma de nossas faltas fundadoras e revelar a exclusão como estratégia de domínio colonizador, a poesia de Carlos de Assumpção se apresenta como uma fundação tardia do Brasil”. Em seus versos, narrativas que sempre ficaram à margem ganham protagonismo. Situações de racismo são escancaradas, e é impossível não ver as tentativas de apagamento a que ainda é submetido o povo negro. “Muita gente diz que não existe racismo aqui, mas a escravidão brasileira foi terrível. Como nós somos atacados, vamos nos defender. De que forma? Adquirindo cultura”, sentencia o poeta.
A vida aqui tem sentido / Aqui é que é meu lugar / Agora livre de abismo / Livre pássaro a voar / Aqui tenho vida plena / Com a bênção dos orixás
Aos 97 anos, o poeta Carlos de Assumpção celebra os versos escritos ao longo de 55 anos em Franca.
Apesar da potência de sua escrita, o trabalho do poeta ainda é pouco divulgado no mundo editorial, no meio jornalístico e nos espaços de crítica. Esse fato, no entanto, nunca foi suficiente para fazê-lo parar, mesmo tendo vivido períodos em que se distanciou dos versos. Professor primário nos anos de juventude, Carlos de Assumpção chegou a morar por alguns anos em São Paulo, mas nunca se deu muito bem com a capital. Foi assim que, no início dos anos 1960, mudou-se para uma cidade próxima de Franca, na barranca do Rio Grande. Contudo, ali, “não escrevi uma poesia sequer”, rememora. “Foi só em 1969, quando me mudei de vez para Franca, que a poesia despertou de novo.” O feito se deve a um desses encontros fortuitos da vida: “Encontrei um amigo que era muito exigente. Mostrei uma poesia e ele acabou comigo”. Foi quando o poeta, que nunca se deu por vencido, decidiu lapidar o poema: mudou o começo, repensou o final. Quando mostrou novamente seus escritos ao amigo, a reação foi completamente diferente, houve um maravilhamento. “Aí despertou tudo de novo”.
Se Franca foi a responsável pela continuidade da poesia de Carlos de Assumpção, foi também na cidade que ele idealizou o Sarau Protesto. Tudo começou com uma apresentação na Casa da Cultura e do Artista Francano, há cerca de dez anos. Assumpção e outros artistas da cidade convidaram um grupo de Ribeirão Preto para realizarem um sarau em que seriam declamadas poesias musicadas de Carlos de Assumpção e de outros artistas negros. Até aquele momento, as apresentações que faziam eram chamadas apenas de “sarau”, então o evento também marcou a escolha de um nome para o projeto: todos os participantes puderam votar na palavra que achassem mais interessante. “No começo, eu não queria que o sarau se chamasse ‘protesto’, mas fui vencido na votação. O povo brasileiro tem medo dessa palavra protesto, acham que é muito forte. Porém, é possível protestar por muitas coisas. Nós protestamos por dias melhores, por amizade, por amor, por fraternidade. Esse é o nosso protesto”, afirma Assumpção.
O Sarau reúne diversos artistas francanos, incluindo pessoas que foram alunas de Carlos de Assumpção quando ele ainda era professor primário, como o músico Don Antena, que teve aulas de caligrafia com o poeta, quando tinha cerca de dez anos. Depois da apresentação que marcou a nomeação do projeto, o grupo passou a se apresentar pelo menos uma vez por mês no espaço cultural, mas não só. “O poeta e os integrantes do sarau começaram a visitar várias escolas da cidade. Por meio de poemas, de música, de tambor, apresentam críticas sociais fortes, principalmente contra os racismos”, explica Rosicler Lemos da Silva, professora da Unesp. E não para por aí.
Nessa década de existência, o Sarau Protesto já foi apresentado em diversas instituições. “Nós já fizemos uma edição para os moradores de rua. Foi bem interessante, eles puseram a melhor roupa, vieram todos arrumados”, lembra Assumpção. Se Franca fosse uma poesia, ela certamente seria assinada pelo poeta. Talvez seus versos dissessem: “A vida aqui tem sentido / Aqui é que é meu lugar / Agora livre de abismo / Livre pássaro a voar / Aqui tenho vida plena / Com a bênção dos orixás”, como dizem alguns dos versos de seu poema “Raízes”.
Franca foi também a cidade escolhida pela artista e artesã Eveline de Souza. Nascida no Rio de Janeiro, ela chegou a Franca em 2015, quando o filho foi convidado a jogar num time de basquete local. Com o passar dos anos, o filho competiu em outros times, mudou de estado, mas Eveline de Souza permaneceu na cidade. “Fui acolhida em Franca por uma família cujo filho também jogava basquete. Além de ser recebida pelo Comdecon, o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca. Eles formaram uma rede de apoio para mim. Tudo isso foi muito importante”, afirma. Hoje, é reconhecida na cidade por suas bonecas Abayomi, símbolo de resistência e ancestralidade.
“As Abayomis entraram na minha vida na década de 1980. Eu era professora da rede estadual do Rio de Janeiro, e os professores recebiam treinamento para trabalhar com os alunos em oficinas de baixo custo. Em uma dessas oficinas, aprendi a fazer as Abayomis”, lembra. As bonecas pretas são feitas de pano e a artesã lembra que elas foram criadas originalmente pela Lena Martins [artista maranhense nascida em 1950], com quem aprendeu a moldá-las. Nas últimas décadas, as Abayomis passaram a ser associadas a uma lenda que remonta à história das mulheres negras escravizadas, mães que arrancavam retalhos de suas roupas para criar bonecas que seriam um acalanto para os filhos. Mas não há registros históricos sobre esse fato. “As bonecas Abayomi não são africanas, são brasileiras”, acredita a artesã. “Junto com as Abayomis que produzo, eu coloco uma cartinha, explicando que meu trabalho é uma releitura da criação da Lena, e que a história das bonecas feitas pelas mulheres que vinham escravizadas da África é uma lenda”.
Se a lenda se apropria da criação artesanal de uma boneca que nasceu livre e a substitui pelo relato de uma boneca dos tempos da escravidão, o trabalho de Eveline de Souza caminha no sentido contrário. Para ela, a cultura preta propicia o pertencimento e ajuda na criação de uma identidade cultural na cidade. Afinal, promove a diversidade e a aceitação, desenvolve a resistência e a resiliência, e ajuda a combater desigualdades. Sem contar seu papel para a economia local. “Franca é uma cidade com alto potencial econômico, que pode oferecer oportunidades. E nosso trabalho atua na economia criativa, o que impulsiona a economia local. Assim, promove o fortalecimento da comunidade pelas trocas de experiências e saberes.”
Como o poeta Carlos de Assumpção, a artesã também acredita que a educação é instrumento-chave para a promoção de mudanças na sociedade. Por isso, seu trabalho envolve a realização de oficinas em escolas, nas universidades francanas e em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), onde ensina mais pessoas a produzirem suas próprias Abayomis, fomentando o reconhecimento de suas próprias histórias.
O trabalho artístico da bordadeira, contadora de histórias e artista visual Isa do Rosário também tem relação profunda com a cidade de Franca. Há cerca de 12 anos, representantes do movimento negro convidaram a artista para fazer contações de histórias afro-brasileiras na Casa da Cultura e do Artista Francano. A aproximação foi crescendo e, durante a pandemia de Covid-19, Rosário se mudou definitivamente para a cidade.
Eu não bordo sozinha, bordo com os Orixás, são eles que me guiam. Eles me dizem o que fazer, os desenhos são das vozes que eu ouço.
Moradora de Franca, Isa do Rosário foi convidada a expor suas obras na Bienal de Arte Contemporânea de Liverpool, no Reino Unido, em 2023.
Nascida em Batatais, no interior paulista, e bisneta de um angolano que veio escravizado para o Brasil, a artista recebe influências de toda a sua ancestralidade para a realização de seu trabalho. “Eu fui iniciada no bordado com cinco anos. Minha avó fazia tapetes, colchas, e eu cortava os retalhos para ela. Minha mãe falava para eu fazer igual. No começo, eu não queria saber, mas depois fui gostando. Na pandemia, voltei definitivamente para o bordado”, diz. Suas criações mesclam materiais, pinturas em carvão, montagens com bordado e muitos tons de verde e azul. Há também estrelas, uma ressignificação daquele dito que nos lembra que nossos mortos viraram corpos celestes.
Apesar de já ter exposto em centros culturais e escolas por todo o estado de São Paulo, o reconhecimento de sua arte veio com um convite para expor na Bienal de Arte Contemporânea de Liverpool, no Reino Unido, ano passado. Um dos trabalhos expostos recebe o título de Dança com a Morte no Atlântico. Nele, a artista representa a vida e a morte: um memorial para todos os que perderam suas vidas durante o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Ela também expôs sua coleção Orixás, obras têxteis guiadas por conversas espirituais da artista. “Eu não bordo sozinha, bordo com os Orixás, são eles que me guiam”, afirma. “Eles me dizem o que fazer, os desenhos são das vozes que eu ouço.”
Se a arte é uma das possibilidades mais interessantes para conhecer a cultura de um lugar, uni-la a passeios pelas ruas é um modo inovador de visitar a cidade. No primeiro passeio literário idealizado por José Lourenço Alves, que também foi presidente da Academia Francana de Letras (AFL) entre 2021 e 2023, o tema foi a obra e a vida da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que na década de 1920 morou em Franca. “Os passeios literários passam por alguns locais da cidade contando a história, mas não só aquela narrada por quem nos colonizou: eles contam, também, a história da população preta e periférica”, explica Rosicler Lemos da Silva, professora da Unesp.
Cada uma das mais de 20 edições do evento abordou obras de diferentes artistas, valorizando a cultura da cidade. “No começo, a gente procurou artistas francanas para declamar textos da Carolina Maria de Jesus”, lembra Alves. A iniciativa deu tão certo que as artistas passaram a se intitular As Carolinas e a realizar apresentações independentes dos passeios literários.
“É interessante andar pelas ruas sabendo onde está pisando. Muitos francanos acabam descobrindo fatos que desconheciam”, afirma o idealizador. Afinal, apesar de seu viés literário, os passeios também exploram a arquitetura, o espaço, a história e as raízes migratórias da região. São retomadas importantes de todos os capítulos que compõem a história da cidade. Os passeios, assim, permitem o resgate de raízes que muitas vezes não são consideradas por uma narrativa oficial. “Esse é o ponto forte do trabalho e é, também, o que inspira outros artistas”, finaliza.
A partir de 28 de novembro, o Sesc abre as portas na cidade, com uma programação diversa voltada para todos os públicos
A partir de uma arquitetura que privilegia os encontros, o Sesc Franca contará com os principais programas do Sesc São Paulo e terá capacidade para atender até 2,5 mil pessoas por dia. Na infraestrutura dessa que é a maior unidade do Sesc no interior paulista: piscinas, teatro (um dos maiores palcos do Sesc no Estado), quadras de areia, de campo, de grama e sintética, além de ginásio e sala de ginástica funcional. A unidade contará ainda com biblioteca, espaços expositivos; Espaço de Brincar, para bebês e crianças de até seis anos; e o Espaço de Tecnologias e Artes, que une laboratório e ateliê em atividades para públicos de todas as idades.
“Ao entregar sua nova unidade na cidade de Franca, o Sesc reafirma o compromisso com a sociedade em promover o desenvolvimento integral dos indivíduos, tendo a educação como eixo transversal e permanente. A iniciativa apoia-se nas experiências acumuladas pela instituição ao longo de seus 78 anos, voltadas à sua missão de buscar a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, seus familiares e da comunidade em geral. São esforços que se efetivam numa ampla programação com apresentações, cursos, encontros, vivências, entre outras propostas voltadas, essencialmente, ao exercício da cidadania”, afirma Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo.
A programação de abertura, que acontece de 28 de novembro a 1º de dezembro, tem como destaque a exposição O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, que apresenta um panorama de obras e a trajetória do escritor, ator, dramaturgo, artista visual, político Abdias Nascimento. Além disso, a unidade receberá espetáculos musicais e cênicos e uma série de instalações e vivências que trazem para dentro do Sesc elementos do Cerrado, bioma predominante na região.
FRANCA
Inauguração: Dia 28/11, a partir das 10h. Grátis.
Av. Doutor Ismael Alonso Y. Alonso, 3071. Jardim Piratininga II, Franca – SP
A EDIÇÃO DE DEZEMBRO DE 2024 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de DEZEMBRO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.