Ator, diretor e professor, Caio Blat mergulha em diferentes contextos sociais e histórias de vida ao longo de mais de 30 anos de carreira
Por Maria Júlia Lledó
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Não duvide se o livro Dias absurdos for publicado pelo ator, diretor e professor do Grupo Nós do Morro, Caio Blat. Mesmo que o tenha como um rascunho despretensioso e título pré-definido, o artista nascido na capital paulista poderia se aventurar no meio literário. Afinal, em mais de três décadas de carreira – 30 peças, 30 filmes e 30 novelas –, ele coleciona vivências tão surpreendentes quanto díspares. Passou meses na extinta Casa de Detenção de São Paulo para o filme Carandiru (2003) de Hector Babenco; conviveu com monges budistas no Nepal, para a novela Joia Rara (2013), da rede Globo; esteve com os povos indígenas do Xingu, nas gravações de Xingu (2012), de Cao Hamburger, entre muitos outros cenários.
Nascido em uma família de médicos e dentistas, Caio Blat cresceu no bairro do Ipiranga, zona Sul da cidade, e não pensava em ser ator como o primo Ricardo Blat. Até que, encorajado pela mãe, fez testes para comerciais e, logo, estreou na televisão, aos 10 anos. Seu primeiro papel foi na TV Cultura, uma participação na série Mundo da Lua, em 1992, ao lado dos veteranos Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Antônio Fagundes. Blat ainda cursou, por pouco tempo, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, mas deixou o curso para apostar todas as fichas nas artes. Sua formação foi construída, principalmente, pela troca com atores e diretores, como Fauzi Arap (1938-2013), Felipe Hirsch e Bia Lessa, com quem trabalhou no espetáculo Grande Sertão: Veredas (2017) e no filme O diabo na rua no meio do redemunho (2023), ambas leituras da obra-prima de Guimarães Rosa (1908-1967).
Caio Blat prepara-se para a realização de um projeto gestado há mais de 20 anos: a estreia da peça Os Irmãos Karamazov, obra de Dostoiévski, sob sua direção e adaptação. Neste Depoimento, o ator e diretor fala sobre seu mais recente trabalho no teatro, episódios da carreira, o mergulho nos personagens, entre outros temas.
Eu sempre admirei muito o Ricardo [Blat], ia a todas as peças quando ele estava em cartaz em São Paulo, acho que ele é um dos atores mais complexos do Brasil, um cara revolucionário. Mas a gente não tinha uma relação próxima. Ele morava no Rio e a gente em São Paulo. Eu cresci no Ipiranga e a minha família toda é de médicos e dentistas. A minha mãe tinha uma paciente cujo filho fazia propagandas, e ela falou: “Por que você não leva o Caio?”. Daí, minha mãe me levou para uma agência infantil, quando eu tinha oito ou nove anos. Eu não fazia a menor ideia do que estava fazendo ali. Realmente foi uma coisa que a minha mãe sacou. Fiz um teste, lembro que tinha umas 400, 500 crianças esperando. Fui sem nenhuma preparação, mas passei. Aí, comecei a fazer muitas propagandas. Hoje em dia, a profissão do ator mirim é super regulamentada, e na minha época não tinha nada disso.
Até hoje, a TV Cultura é um patrimônio e, naquela época [anos 1990], estava produzindo coisas lindas como Mundo da Lua (1991-1992), uma série com Antônio Fagundes, Gianfrancesco Guarnieri. Fiz uma participação na série, foi meu primeiro trabalho na televisão, devia ser 1992. Depois, fiquei na Cultura fazendo um programa educativo que se chamava O Professor (1992) – a gente ia na casa de um vizinho que era professor e, se a bicicleta estivesse quebrada, ele dava uma explicação sobre roldanas etc. Então, tive o privilégio de aprender como funciona o meio da televisão na TV Cultura, que era um ambiente acolhedor com as crianças, com a educação.
Em 1994, o SBT trouxe grandes atores e produziu uma coisa belíssima que foi a novela Éramos Seis, com Irene Ravache, Othon Bastos, Nathália Timberg, Jussara Freire… Enfim, era um elenco absurdo. Eu, ainda moleque, tive a experiência de fazer minha primeira novela e logo uma novela dirigida por Nilton Travesso e Henrique Martins. Tive uma escola muito privilegiada: convivi com essas pessoas na minha infância. Aprendi na prática a fazer coisas lindas. Dali, eu ia correndo para a aula depois. Eu tinha a carreira de ator como um grande aprendizado, um hobby. Por ser uma carreira que não dá segurança. Então, eu tinha essa cobrança dos meus pais: “Isso aí é só uma brincadeira”.
Eu me sinto como um mensageiro, como uma ponte entre mundos distantes
No papel de Riobaldo em O diabo na rua no meio do redemunho (2023), de Bia Lessa, adaptação de Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa. Foto: Divulgação
Estava fazendo uma peça com o Vladimir Capella (1951-2015), grande diretor de peças infantis. Era O homem das galochas, no Sesc Consolação, baseada na vida e obra de Hans Christian Andersen (1805-1875). Uma grande produção, cenário do J.C. Serroni, uma das minhas primeiras peças de teatro, porque o pessoal da novela Éramos Seis me puxou para algumas produções. Comecei a fazer teatro na Praça Roosevelt e, depois, no Sesc Consolação. Conforme foi chegando o dia da estreia, vi que coincidia com o dia da Fuvest. Eu sempre quis estudar no Largo São Francisco pela história da faculdade, pelas pessoas que estudaram lá: os poetas Álvares de Azevedo (1831-1852) e Castro Alves (1847-1871), os atores Paulo Autran (1922-2007) e Zé Celso (1937-2023). Quando chegou o dia, nervosismo. Depois da prova, cheguei no teatro, o público já estava indo embora – tinham cancelado a peça. Entrei completamente desolado e o Vladimir Capella, sentado sozinho na plateia. Nunca vou esquecer esse dia. Morrendo de vergonha, me sentei ao lado dele e ele me falou: “Se algum dia você virar advogado, eu corto esse dedo fora”.
Eu tinha uma carreira que estava começando a se solidificar, uma peça em que eu era o protagonista, um musical importante, mas ainda tinha cobrança da minha família por uma carreira, por outro plano. Passei, então, o primeiro ano na faculdade. Foi uma delícia porque o Largo é incrível, tem muita tradição, tem a Academia de Letras, onde a gente lê poemas, mas logo no final do primeiro ano, [o diretor] Luiz Fernando Carvalho me convidou para filmar Lavoura Arcaica (2001). No ano seguinte, tranquei a matrícula e fui para o Rio, com 18 anos, e não voltei mais. Estou há 25 anos morando lá, fiquei 24 anos na Rede Globo, 30 novelas, séries, especiais, enfim muita coisa, uma história lá.
O filme Cama de Gato (2002) foi para o Festival de Cinema de Brasília, e lá eu conheci o Cláudio Assis, que me chamou para filmar na Zona da Mata, o Baixio das Bestas (2007), outro filme muito forte. Depois, Helvécio Ratton me chamou para fazer Batismo de Sangue (2006), que traz a história do Frei Betto, do envolvimento dos monges dominicanos com Marighella (1911-1969) e com a luta armada. Trabalhei também com Jorge Duran, em outro filme belíssimo, Proibido Proibir (2006). Minha carreira se dividiu em duas: ator de novela – personagens bonitinhos, mas sempre tentando cavar bons personagens – e, paralelamente, eu fazia muitos filmes radicais e autorais com grandes cineastas. Aí, comecei a ganhar prêmios no cinema. Acho que eu consegui ter uma carreira extremamente equilibrada, dividida entre TV, teatro e cinema.
Eu tinha uma amiga que conhecia o pessoal do Nós do Morro e pensei: “Quem sabe a gente não troca experiências?”. Perguntei se poderiam fazer um exercício de improvisação com os meus atores, Caco Ciocler e Daniel Oliveira [para a peça Êxtase, em 2001, estreia de Caio Blat na direção]. Me empolguei, aluguei uma casa no Vidigal [comunidade na zona Sul do Rio de Janeiro (RJ)], e falei: “Vamos ensaiar aqui, vamos morar aqui e aprender com esse pessoal daqui”. Comecei a trabalhar com o Nós no Morro, e a peça estreou lá no Casarão do grupo. Em 2005, fiz outra peça lá, só que com os atores do Nós do Morro e meus atores eram os convidados. Foi uma peça do Mário Bortolotto, A frente fria que a chuva traz, sobre garotos ricos que alugam uma laje na favela para tirar onda. A partir daí aconteceu uma coisa linda: virei parceiro do Nós do Morro. Lá eu comecei a dar aulas para as crianças, ia lá com todos os meus projetos e aprendia com eles. Me dá muito orgulho essa parceria de 24 anos, e ser professor – até o ano passado, estava com duas turmas. É um lugar emocionante, lindo, que dá sentido à nossa profissão.
O ator entra em lugares que são inacessíveis, vive dores que são de outras pessoas, a fim de reproduzir aquilo para outros públicos, às vezes em lugares que você nem imagina. Acho que o ator serve como ponte entre esses lugares e histórias que são inacessíveis, mas também lugares do passado. Então, vai a esses lugares muitas vezes tristes, horríveis, coleta histórias, resgata a história daqueles personagens e leva para festivais de cinema, para diferentes públicos, para outras gerações. É muito legal essa ponte. Sempre que eu vejo o absurdo do lugar onde eu fui filmar e o lugar onde eu fui mostrar o filme, me sinto como um mensageiro, como uma ponte entre mundos distantes.
Eu acabei de sair da Globo, no ano passado (2023), um lugar onde eu cresci muito, onde aprendi muito. Sempre corria para fora para fazer peças e filmes bacanas. Mas agora que eu parei, vou fazer os meus projetos. Volto a dirigir uma peça que eu adaptei, e com a qual sonho há mais de 20 anos, que é um romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (1880). Freud (1856-1939) dizia que esse é o maior livro já escrito. Claro, ele puxa a sardinha para o assunto dele: filhos querendo matar o pai, o complexo de Édipo, está tudo ali. Esse é um livro que estou estudando e adaptando desde que morava em São Paulo e, finalmente, vou conseguir produzir, realizar e dirigir – fazia muitos anos que não dirigia no teatro. Também vou dirigir meu segundo filme, que será sobre a vida da Cacilda Becker (1921-1969), a maior atriz do nosso teatro.
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