Foto: Léu Britto
Entrevista Por Kiki Mazzuchelli
No início de 2020, Ana Prata e eu iniciamos uma conversa a respeito da exposição A vida das coisas, programada para acontecer no espaço das Oficinas do Sesc Pompeia em março daquele ano. Essa troca se estendeu até os primeiros meses da pandemia, momento em que já estavam em vigor as medidas sanitárias e em que a reabertura das instituições culturais ainda era uma grande incógnita. Dois anos mais tarde, a exposição finalmente se realiza naquele mesmo espaço para o qual foi concebida. Apesar do lapso temporal, que separa sua primeira concepção da realidade presente, é legítimo dizer que as principais ideias discutidas nessa entrevista ainda permanecem relevantes para o projeto atual.
O espaço das Oficinas do Sesc apresenta, sem dúvida, um desafio para artistas visuais acostumados a mostrar seu trabalho em museus e galerias. No caso de Ana Prata, artista que trabalha exclusivamente com pintura, a tarefa de ocupar o galpão das Oficinas fez com que considerasse não apenas as funções e usos desse espaço, bem como seu público, constituído largamente por frequentadores da instituição que são também artistas “amadores”, ou, ainda, “amantes das artes visuais e aplicadas”, numa variação da origem etimológica da palavra.
Além disso, há uma certa afinidade entre as abordagens de Lina Bo Bardi — arquiteta que assina o projeto do Sesc Pompeia — e de Ana Prata: o apreço pelo lúdico, visível nos detalhes arquitetônicos como as janelas em forma de caverna do centro esportivo, no “Rio São Francisco” que atravessa o espaço de convivência e nos pedregulhos incrustados nas calçadas no entorno do edifício e que encontram correspondências nas pinturas de Ana Prata tanto no que diz respeito à maneira de pintar, à paleta de cores quanto nos elementos pictóricos que ora aparecem como citações da arte erudita, ora se referem à uma visualidade mundana, ou até mesmo infantil.
A vida das coisas reúne um conjunto de pinturas em diferentes escalas, desde as monumentais “cortinas” translúcidas instaladas em algumas das janelas do Galpão até obras em pequeno formato apresentadas nas paredes de um ambiente de proporções domésticas especificamente construído para esse fim (a “casinha”). Em sua grande maioria, são trabalhos nos quais a artista explora o tradicional gênero da natureza-morta; porém, paradoxalmente, as pinturas de Ana Prata nada têm de morte ou paralisia.
Pelo contrário, são cheias de pulsão de vida; nelas os objetos inanimados se tornam formas plenas de vibração e movimento, em composições que nos arrebatam com sua explosão de desejo e — por que não? — alegria. Assim como Lina Bo Bardi readequou o antigo complexo industrial do Sesc Pompeia, transformando o espaço de trabalho em espaço de celebração do lazer, Ana Prata transforma o gênero da natureza morta na celebração da vida das coisas.
Eu gostaria de começar te pedindo para falar um pouco sobre a sua prática de maneira geral. Uma das características da sua pintura é não se ater a um determinado estilo ou tema. Eu diria que até mesmo, pelo contrário, ao longo dos últimos dez anos você vem explorando uma grande variedade de possibilidades formais e narrativas no campo da pintura.
Queria que você comentasse um pouco sobre o seu interesse em se voltar para temas e estilos distintos, travando um diálogo estreito com vocabulários consagrados e discussões fundamentais na história da pintura: por exemplo, a questão da abstração versus figuração, as referências aos gêneros tradicionais como o retrato e a paisagem, os diferentes tratamentos da superfície pictórica, entre muitos outros. Ao mesmo tempo, você utiliza esse vocabulário pictórico e essa tradição historiográfica de uma maneira quase punk, optando pela insubordinação às hierarquias de valor e a rejeição ao culto do virtuosismo técnico; fazendo tudo isso com uma grande dose de humor.
Ana Prata: A variedade formal e narrativa chama atenção no meu trabalho, mas é algo sobre o qual não tenho tanto controle. Porque eu busco ter uma experiência prazerosa com a minha prática, essa é uma motivação, e é por isso que a gente não desiste nunca. Mesmo que o trabalho de uma artista seja também cheio de angústias, ele traz uma satisfação muito grande e de formas variadas. Quando eu era criança, eu desenhava e pintava para me divertir, passar o tempo, brincar sozinha. Claro que tudo isso mudou, mas alguma coisa em comum com aquele estado ainda permanece na prática, ainda é uma maneira de fugir da monotonia, da morte.
Então retomando a pergunta, eu vario porque quando me repito não sinto tanto prazer, por isso sigo inventando novas maneiras, tendo novas ideias no meu jeito de trabalhar. Meu trabalho tem núcleos e famílias, trabalhos que se assemelham, e têm maneiras de pintar muito variadas, mas que ainda assim se repetem; [são meu] alfabeto pictórico, por assim dizer. No começo eu acreditava que iria encontrar um caminho e ficaria nele obcecada, como fazem muitos artistas que eu admiro (principalmente na pintura), mas isso não aconteceu. E talvez daqui a dez anos eu comece a fazer algo e fique repetindo até morrer, não descarto essa possibilidade. Mas, por hora, não me sinto assim. De fato, eu não tenho medo de sair copiando coisas que gosto, e acabo “citando” muitos artistas, principalmente os modernos, e isso é algo que às vezes me acontece de forma inconsciente.
Quando comecei a pintar, eu tinha neuroses do tipo: “isso não pode, isso é brega, isso é errado”, e depois eu percebia que tinha me equivocado sobre o que era “certo”. Então fui ganhando confiança com a prática e fazendo o que eu queria mesmo. Ainda tenho muito para conquistar neste sentido, acho que com o passar do tempo a gente vai ficando mais e mais maluca, sem medo, e isso é muito bom. Espero que siga assim. Os jovens mais geniais são aqueles que sacam isso muito novos, fazem o que querem com vontade mesmo, mas isso é uma conquista dura para a maioria das pessoas. No momento, estou trabalhando para essa exposição no Sesc e estou gostando muito de pensar a pintura nesse espaço que é tão distinto do cubo branco.
Acabei de fazer a primeira cortina e foi legal ter que inventar um jeito de pintar que ficasse legal com a luz entrando por trás. Esses desafios sãoestimulantes. As pinturas estão sempre abordando o mesmo assunto, mas com tratamentos pictóricos variados. Gostaria de fazer uma pequena reflexão sobre a questão do tema e como nós organizamos e categorizamos as coisas (especialmente os ocidentais), como nós separamos as coisas, em última instância. No fundo, toda pintura é um pano sujo de tinta.
A diferença entre figuração e abstração pode ser gigante e nenhuma ao mesmo tempo, como naquelas falas de um sábio chinês que dão um tilt [embaralham] na nossa cabeça, mas é verdade. Eu adoro quando as pessoas mencionam um caráter meio punk no meu trabalho. Eu tive uma banda punk feminista quando eu era adolescente, hoje eu tenho muito orgulho dela, mas na verdade nunca pensei nisso ao pintar. Eu acho o punk super sedutor, é algo que tem muita energia, antissistema, só tenho elogios e fico super honrada com essa comparação. Mas acho que essa associação no meu trabalho está ligada a uma certa espontaneidade, uma certa franqueza no meu modo de fazer. Acho que minha pintura expressa uma certa urgência.
O humor também é algo que prezo, eu gosto muito de como a psicanálise aborda o humor: uma espécie de sabedoria, ou até mesmo de cura. Eu espero não me levar tão a sério, pois já fui séria demais. Não vale a pena! Ano passado eu expus alguns desenhos no Espaço das Artes da Universidade de São Paulo (EDA-USP) e o [Carlos] Fajardo,1 que foi meu professor e quem admiro muito — aliás um sujeito muito bem-humorado! —, me disse que meu trabalho tinha humor. Eu respondi que me esforçava para não me levar tão a sério e ele disse: “humor não é para quem quer, é para quem tem. Me senti sortuda.
No caso da exposição do Sesc Pompeia, a escolha do gênero da natureza-morta parece ser pautada, na mesma medida, por uma certa identificação de caráter pessoal (você mencionou o prazer que tinha, quando criança, de desenhar florzinhas, algo comum entre grande parte das meninas) e por escolhas conscientes que surgiram como respostas ao contexto das oficinas do Sesc e ao público variado que frequenta a instituição por diferentes motivos, não necessariamente as artes visuais. Ao abraçar esse gênero neste projeto, você o situa no âmbito de uma linguagem pictórica universal, que pertence à uma tradição tanto erudita quanto popular da pintura e que, portanto, seria capaz de ampliar as possibilidades de identificação do público com as obras.
Ao mesmo tempo, você busca provocar uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, relacionando-o a uma ideia de “feminino”. Mas você o faz a fim de explorar as possibilidades desse gênero para além de seu sentido supostamente derrogatório, buscando outros significados no gosto das meninas por desenhar florzinhas e das idosas pelas imagens decorativas das naturezas-mortas. Queria que você falasse um pouco mais sobre essas ideias que informam o projeto e o que significa reivindicar esses estilos e formas hoje no âmbito de um discurso feminista, ou “do feminino”.
Ana Prata: Essa é uma pergunta importante, pois trata-se de uma questão que não tem um único centro, mas diversos. São pensamentos que caminham para inúmeras direções que nem sempre se encontram. Eu escolhi fazer naturezas-mortas antes de ser chamada para a exposição do Sesc. Eu estava intrigada com o Cubismo, com essas pinturas estranhamente feias e sedutoras. Tive vontade de fazer natureza-morta, não por causa do Cubismo exatamente, mas porque eu havia feito poucas pinturas neste gênero, que oferece possibilidades tão variadas. Eu acho que essa ideia de gênero na pintura, hoje em dia, serve como desculpa para a gente pintar. A natureza-morta só diz algo a partir do momento em que está feita, a partir de como foi feita.
Acho essa uma importante reflexão, porque as pessoas em geral se atêm muito a um tema e confiam nele como uma espécie de bengala. Às vezes existe uma certa preguiça mesmo de olhar, e então o tema já é suficiente para explicar tudo. Acontece que numa pintura, por exemplo, o gesto, a cor, o estilo, a harmonia, a feiura, a fatura, o erro, o desleixo, o esmero, tudo isso diz tanto que o tema é mais um aspecto. O assunto da pintura pode ser diferente do seu aparente tema. Acho muitointeressante buscarmos entender, ou sentir, o assunto que se faz presente numa obra, às vezes de forma menos explícita, pois só assim poderemos nos relacionar de maneira mais crítica com ela. Todos temos condições de acessar esse assunto. As palavras nos enganam mais.
Para citar um exemplo, eu poderia falar do [Giorgio] Morandi,2 em cuja obra o tema, que ele repetiu a vida toda, é muito evidente: são naturezas-mortas que representam pequenas cerâmicas que ele colecionava, organizadas por ele de forma peculiar no espaço da pintura. O espaço da pintura sem dúvida foi um assunto caro ao artista, o que é cheio e vazio, o que é o “entre. As cores em Morandi também são muito elaboradas, ele cria relações tonais muito delicadas; essa é outra questão que ele tratou como um mestre. Mas, para mim, o Morandi trata também do tempo. Ele dilata o tempo; é como se uma fração de segundo valesse toda uma vida, ele transforma mesmo a nossa noção de tempo no espaço de um único suspiro uma coisa meio sagrada se expressa. Porque é muito espírito naquela matéria. Quando visitei o Museu Morandi em Bolonha anos atrás, fui tomada por uma emoção muito grande. É uma delicadeza com que esse espírito se assenta ali, a delicadeza de uma poeira, que é super emocionante.
O tema como eu o desenvolvi – as frutas, flores e jarros –, tinha alguma coisa a ver com um certo desejo de vislumbrar um outro mundo, uma realidade menos calamitosa, uma existência prazerosa, alegre talvez. Quando comecei, tanto nas pinturas à óleo, como nos guaches (que eu estava explorando pela primeira vez), um fenômeno estranho me ocorreu. Tive uma memória de infância, como uma sensação de já ter feito aquilo. As figuras que eu organizava no espaço pictórico e o modo como eu o fazia me lembravam as brincadeiras de casinha, o modo como eu organizava os brinquedinhos arrumando a casa para decorar meu pseudoambiente doméstico, a comidinha que eu fazia para os “convidados” e a boneca comerem.
Foi muito estranho acessar essa memória, porque imediatamente tive sentimentos ambíguos. Por um lado, senti afeto, pois aquilo eraum prazer infantil que eu tive. Por outro lado, como adulta, sei que essas brincadeiras pautadas pela divisão de gênero são uma maneira de reproduzir um modelo patriarcal. É uma espécie de treino, que prepara as mulheres para assumirem os trabalhos domésticos sozinhas, enquanto os homens se veem livres dessa responsabilidade, podendo experimentar muito mais o mundo fora de casa. Isso para dizer o mínimo e não me estender na resposta. O que acontece é que a brincadeira não é o único fator determinante na vida de uma menina.
Eu tive acesso a outras formas de liberdade, mas nem todas as mulheres o têm, e não o tinham 50 anos atrás com toda certeza. Portanto, me dei conta de que eu pintar coisinhas bonitinhas que lembram paninhos de prato, mesmo que fora do meu controle, é diferente de quando um homem da minha idade o faz, no caso dele isso poderia ser interpretado como um gesto de abertura e liberdade, enquanto no meu, poderia ser um gesto quase conservador. Isso se reduzirmos a arte a um único aspecto, o que representaria uma enorme perda de sentidos. Pois não quero abrir mão do afeto e do prazer que isso pode me trazer.
Quando fui convidada para expor no Galpão das Oficinas, pareceu-me perfeito o galpão industrial em contraste com as pinturas coloridas, domésticas, um pouco açucaradas, no sentido mais clichê, e procurei até pesar a mão nesse sentido. Eu acho que a Lina3 lidava muito bem com esses contrastes, dentro de uma tradição moderna, com o uso de linhas retas e pautada pela racionalidade, com o interesse na produção de materiais em escala industrial aliados a muitos aspectos líricos, muito espaço para a imaginação; eu diria até mesmo que vejo a arquitetura da Lina como bastante alegre. Elementos aparentemente antagônicos convivem bem em seus projetos.
O Sesc Pompeia, por exemplo, mantém sua cara de fábrica, ao mesmo tempo em que é claramente um espaço de lazer e convivência super agradável, onde crianças e adultos se divertem. Tem aquelas janelas do bloco esportivo que parecem bocas de grutas; ao mesmo tempo possuem o caráter formal de uma abstração moderna clássica, me lembram [Jean] Arp.4 Tem também a questão da escala. Já que o prédio é monumental, eu queria lidar com ele de maneira desproporcional, queria que os tamanhos dos trabalhos parecessem desproporcionais. Além disso, decidi fazer apenas duas cortinas para aquele monte de janelas, porque só duas não servem para nada, e acho bonita essa falta de serventia.
Outra questão que me interessa são as oficinas de pintura. Eu já dei aula em cursos livres e gratuitos de pintura em algumas ocasiões, em outras instituições. Sinceramente nunca frequentei as oficinas do Sesc, mas muitas das oficinas de pintura que participei atraíam um público sobretudo feminino, de mulheres e senhoras buscando um passatempo, elas vêm fazer pinturas para decorar suas casas. Enfim, a pintura também é um gosto popular. A natureza-morta e a paisagem são os gêneros preferidos por esse público. Isso reforça inclusive o estereótipo da brincadeira de casinha que eu mencionei. Pensando nessas mulheres, me pergunto como elas irão sentir as minhas naturezas-mortas, se seriam estranhas ou não.
Por fim, como artista, talvez eu devesse ter todas as respostas. Espera-se que o artista tenha um testemunho sobre a verdade, alguma verdade, a resposta certa sobre seu trabalho. Mas eu quero devolver essas questões. Será que isso importa e está claro no meu trabalho? Eu não sei. Existe ainda uma outra camada, que para mim é talvez a mais cara: a própria pintura. Voltando ao pano sujo de tinta, cabe a pergunta: sujo como? Isso me interessa muito, o prazer de olhar para esses objetos e captar sua linguagem, mesmo que não tenhamos certeza absoluta do que está sendo dito. Em uma pintura, cada mancha foi decidida, é deliberada; mesmo quando é fruto do acaso decidiu-se que ela ficaria ali, daquele jeito. E eu amo tantas naturezas-mortas que foram feitas por tantos homens na história da arte (e por algumas incríveis mulheres, em número infinitamente menor, que chegaram à nós).
Eu gostaria de expandir um pouco dois pontos que você abordou na sua resposta anterior. Em primeiro lugar, a ideia de gênero na pintura como uma desculpa para pintar. Você mencionou que as naturezas-mortas cubistas inspiraram (ou instigaram) essa nova série. Acredito que é legítimo dizer que a pintura, dentre todas as outras formas da arte, é aquela que carrega um peso histórico maior. O caso da natureza-morta, em particular, é muito curioso: um gênero encontrado na antiguidade (nos afrescos romanos e egípcios, por exemplo) e que praticamente desaparece por muitos séculos após a queda do Império Romano, quando a arte ocidental assume uma função educativa de instruir as populações largamente analfabetas sobre o cristianismo, tornando-se uma espécie de “bíblia visual.
Nesse contexto, onde se valorizava o divino, a representação de objetos mundanos não tinha vez. Aos poucos, e principalmente com o advento da pintura a óleo no século XV — o que permitiu um detalhamento maior dos elementos pictóricos —, os artistas começaram a produzir obras nas quais figuravam elementos da natureza ou objetos carregados de valor simbólico que serviam para complementar a cena principal, sempre centrada nas figuras humanas. Um dos inúmeros exemplos disso é o vaso de lírios que aparece frequentemente nas cenas de Anunciação, denotando a inocência sexual da Virgem. É importante salientar que o simbolismo dessas imagens era amplamente reconhecido e decodificado, ou seja, era “lido” com facilidade pelo grande público.
A pintura de natureza-morta em seu sentido pleno reaparece apenas no final do século XVI com a famosa Cesta de frutas (1595), de Caravaggio,5 e atinge seu ápice com as pinturas holandesas do século XVII. A Holanda havia realizado recentemente a reforma protestante e passava por um enorme boom econômico devido ao comércio marítimo, o que gerou uma classe de comerciantes abastados que compravam arte para decorar suas casas. A emergência de uma pintura absolutamente secular que retratava as possessões materiais dessa classe é o reflexo de uma arte que já não era mais comissionada diretamente pela monarquia ou pelo clero, mas que agora atendia às demandas de colecionadores privados.
No século XVIII, a academia francesa estabelece uma classificação muito rígida dos gêneros de pintura em ordem de importância, sendo que a natureza-morta é considerada o mais baixo deles. Paradoxalmente, apesar de seu status inferior, a naturezamorta permitiu que algumas mulheres que trabalhavam neste gênero — como Anne Vallayer-Coster6 — pudessem ingressar na academia francesa, já que para pintar frutas e objetos não era necessário observar um homem nu. Tudo isso para chegarmos ao ponto em que me parece que a natureza-morta se torna aquilo que você descreve como a “desculpa para pintar”, ou seja, em que as narrativas evocadas pelo tema são colocadas num segundo plano para dar lugar ao experimentalismo da quebra das convenções pictóricas tradicionais.
Chegamos então à natureza-morta moderna com [Paul] Cèzanne,7 que famosamente declarou que iria “surpreender Paris com uma maçã” — ou seja, pintar algo completamente banal de maneira absolutamente inovadora. Hoje, na primeira metade do século XXI, vocês pintores têm que lidar com toda a carga histórica da pintura clássica e moderna, esta última não mais vinculada à ideia de representação “fiel” de uma realidade. Mas, além disso, com toda a pintura que veio depois: o Expressionismo Abstrato, a Arte Pop, o Minimalismo, a Transvanguarda, e por aí vai Então, quando você fala sobre essa “desculpa para pintar”, eu entendo isso como uma espécie de prática de meditação e experimentação sobre a própria pintura por meio do estabelecimento de uma série de diálogos e correspondências com todas essas “histórias da arte”. Isso às vezes fica mais aparente no seu trabalho, como no caso de “citações visuais” que são mais ou menos reconhecíveis em algumas pinturas. Mas, ao mesmo tempo, me pareceque há também uma vontade de trazer aquilo que ficou de fora dessa história da arte “oficial” na falta de um termo mais adequado — no sentido de uma atitude irreverente e rebelde de incorporar estilos e formas que pertencem a um universo artístico marginal, como a pintura “naïf” dos “artistas de domingo”, por exemplo.
O segundo ponto que gostaria de expandir é quando você diz que “se um homem pintasse coisas bonitinhas isso seria interpretado como um gesto de abertura e liberdade”, mas quando você o faz seria “quase conservado”. Eu diria que, de modo bastante superficial, talvez sim. Porém, ao mesmo tempo acredito que há uma “verdade” na sua escolha por repetir um gesto associado à sua experiência de infância que é muito mais autêntico do que se fosse feito por um homem da sua idade (que nunca desenhou “coisas bonitinhas”). Ou seja, acho que no exemplo masculino, o uso dessa linguagem pictórica específica opera, de certa forma, no antigo registro da “representação”. Em outras palavras, seria um modo de representação do “feminino” que termina por apenas reafirmar uma ideia pré-concebida e portanto limitada — do que é ser mulher.
No seu caso, pelo contrário, vejo um interesse naquilo que poderíamos chamar de “devir feminino”, numa especulação acerca do que é ser mulher como algo em fluxo, como aquilo que pode ser muitas coisas ao mesmo tempo e não pertence necessariamente a uma categoria fixa. E é justamente essa ambiguidade que considero instigante no trabalho, porque tem horas que parece sugerir uma coisa, em outros momentos traz outras coisas. Em última instância, pode ser muitas coisas ao mesmo tempo: erudito e popular, doce e abjeto, familiar e estranho, “bonitinho” e agressivo.
Ana Prata: Que boa essa pergunta. De fato, tem muitas coisas colocadas nela. Gostei que você fez de alguma forma um resumo ou um recorte do gênero natureza-morta dentro de uma tradição da história da arte oficial, porque isso me leva a pensar qual é o meu papel nisso tudo e, na verdade, se tenho um papel. Lidar com pintura e com arte de modo geral tem sempre essarelação com a história posta, e isso tem um aspecto positivo, que seria um diálogo, um aprendizado contínuo, uma fonte mesmo de recursos e saberes. Por outro lado, isso pode se tornar pesado e às vezes chego a pensar que preferia não ter nada a ver com isso. São dois aspectos.
Este último, que é querer se ver livre deste peso, é muito instigante, porque me faz pensar que talvez seja sobre esse desconhecido que estamos aqui refletindo. Quando eu digo que um gênero é só uma desculpa para pintar, lendo minhas palavras nas suas, me parece um pouco leviano da minha parte. Porque quando eu escolho esse tema eu penso nele, eu experimento através dele e eu ressignifico muitas coisas para mim. Como essa ideia que eu coloquei e que você traduziu muito bem quando chamou de um “devir feminino”. Eu gosto muito desse verbo e acredito que ele expressa muito bem o fazer artístico de um modo geral, quando o artista se coloca como um ser aberto a traçar caminhos, numa experiência de estar viva, que pressupõe a ausência do controle de qualquer coisa que não seja o presente, onde de fato operamos. Nesse sentido, eu acho que a naturezamorta me abriu passagens para o devir feminino, devir criança, devir matissiano,8 devir ingênua, devir dona de casa, devir boba, devir louca, devir doce, devir estranha, devir avó, devir além do que esperam de mim. Obrigada por colocar as coisas neste ponto.
Por fim, eu gostaria de levantar uma questão. Esta terceira pergunta é nossa primeira em quarentena, e aparentemente o mundo mudou de forma radical. E eu acho que a natureza-morta ganha outros significados, a despeito da minha vontade inclusive, das minhas ideias originais. E eu gosto de como as coisas têm uma espécie de vida própria em seus significados.
Por termos iniciado essa conversa há cerca de um mês antes de começarmos a sentir os efeitos da pandemia e continuado nosso diálogo em meio a tantas mudanças, fiquei pensando muito no significado da natureza-morta na história da pintura ocidental. A princípio, pode parecer um assunto totalmente irrelevante e supérfluo no atual contexto. Mas, ainda assim, sobretudo no caso das vanitas9 — nas quais os diferentes objetos retratados nos fazem lembrar da nossa mortalidade e do caráter frívolo da acumulação de riquezas materiais frente à inevitabilidade da morte, são pinturas que refletem muitas das ansiedades atuais em relação à condição humana e aos questionamentos do modo como as civilizações ocidentais têm se organizado pelo menos desde o século XVII, quando surgem as primeiras vanitas.
Outro aspecto, de ordem mais banal, é que estamos todos vivendo em quarentena por um período indefinido. Podem ser semanas ou meses, assim como pode ser que daqui em diante tenhamos de alternar períodos de quarentena com “vida normal”. De qualquer forma, estamos todos em casa convivendo em tempo integral com nossos cestos de frutas, vasos e quaisquer outras possessões materiais que acumulamos ao longo dos anos. Acredito que é cedo demais para fazer qualquer tipo de previsão quanto ao impacto disso tanto na arte quanto na sociedade.
No que diz respeito ao modo como nossas sociedades estão organizadas, será que iremos, de fato, passar a valorizar os profissionais mal remunerados que são fundamentais para o pleno funcionamento da vida coletiva — desde os lixeiros, motoristas de ônibus, entregadores, enfermeiros etc. —, exigindo que tenham a garantia de melhores condições trabalhistas? Iremos repensar os danos ambientais causados pela produção industrial de bens semidescarnáveis e supérfluos? Passaremos a trabalhar mais remotamente e de maneira mais eficiente, minimizando o impacto no trânsito e na poluição, evitando o estresse de ter de se deslocar diariamente e dedicando mais tempo às relações humanas e às atividades que nos dão prazer?
Acho improvável, ainda que temporariamente tenhamos sido forçados a nos adaptara um paradigma inédito. No que diz respeito ao fato de estarmos, na prática, confinados às nossas próprias casas, já vejo alguns artistas produzindo trabalhos cujo foco é a paisagem doméstica e que poderiam ser caracterizados como naturezas-mortas do século XXI. Por outro lado, talvez seja apenas o meu algoritmo — veremos nos próximos meses ou anos se houve de fato algum impacto na produção artística. No seu caso, você identifica alguma mudança no significado das obras que produziu para exposição do Sesc após o início da pandemia? Muitos artistas com quem conversei recentemente se dizem incapazes de produzir num momento em que ainda não sabemos a extensão da crise, especialmente porque o formato por excelência com que trabalhamos no meio artístico é o da exposição, o que implica na experiência coletiva e no encontro físico das pessoas com o trabalho, e tudo isso está suspenso indefinidamente.
Ana Prata: De fato, ainda é cedo para tirar qualquer conclusão, como você bem colocou. Sinto que somos muito afoitos por respostas de um modo geral, tanto no aspecto prático e pessoal de nossas vidas, como na maneira como lidamos com questões mais profundas e sociais. A gente precisa saber esperar. Em todo caso, eu, assim como você, não acho tão provável que o mundo melhore nossas relações humanas e nossas relações com o meio ambiente, tendo a concordar com você. Mas claro essa possibilidade está posta.
Acho que vivemos sob a égide do capitalismo, vivemos num mundo de desigualdade brutal, de mecanismos poderosos e engrenagens funcionando para manter esse sistema. Isso é monstruoso. Como diria Mano Brown10, “Deus é uma nota de cem”. Se a gente deixar os “economistas” reconstruírem o futuro estamos mesmo fudidos. Mas eu gostaria que a gente saísse ao menos um pouco melhor dessa crise. Por outro lado, acho que o futuro é imprevisível, às vezes as coisas que não imaginávamos acontecem, e talvez essas sejam as maiores transformações. Como a internet, por exemplo, que ninguém previu e mudou radicalmente as nossas relações.
O que seria uma pandemia sem internet? Sobre os trabalhos da exposição, eu vejo sim uma mudança nos seus significados, ainda que eu ache que as reflexões anteriores à pandemia ainda se mantêm fortes para mim. Não foram descartadas, mas novos significados se somam. No fundo, uma coisa que me interessa na arte é sua autonomia em relação às intenções do artista. Como significados que nem sequer eram percebidos no momento em que uma obra é feita e passam a ser extremamente relevantes depois de alguns anos – desde as relações sociais de uma época que a obra acaba explicitando até questões mais subjetivas –; enquanto que algumas intenções e significados se perdem para sempre também. Uma obra pode virar uma espécie de enigma.
Eu tive a ideia de construir uma casinha dentro do Sesc, onde ficariam expostos os guaches, no que seria uma miniexposição dentro da exposição. A proposta é criar uma outra escala de coisas dentro do galpão e os guaches também incluem figuras em escalas pequenas e de alguma forma estranhas. No fim das contas, trata-se de uma espécie de casulo para coisas menores e mais delicadas. Pensei em mostrar também alguns desenhos e guaches que tenho feito no período de quarentena, pois a “casinha seria adequada para eles. Portanto, a casinha pode ganhar um novo significado na exposição, mas ainda não tenho claro se vou fazer isso.
Muitos dos trabalhos que apresentarei não são necessariamente naturezas-mortas. Às vezes são apenas figuras, frutas e flores, como uma espécie de estampa, ou apenas símbolos; existe essa diferença. Mas há sempre frutas, flores e jarras. Esses três elementos me remetem sempre aos prazeres sensoriais: às vezes imagino que têm vinho dentro das jarras, ou que as jarras são bem pequenas e guardam perfumes ou óleos, como aqueles minipotes egípcios que os arqueólogos dizem ter pertencido a uma prática cosmética.
São prazeres mundanos, prazeres caros aos seres humanos há milênios. A última exposição que eu fiz no México, no início deste ano, se chamava Ofrenda, e muitos dos trabalhos que produzi recentemente se parecem com arranjos de oferenda também. Meu interesse não é tanto pelos deuses e deusas para os quais elas se destinam, mas pelo aspecto material: a harmonia, beleza, alegria, amor, desejo, queestas organizações de coisas buscam manifestar através de sua aparência sensível. Há milênios o ser humano faz esses arranjos. Acho que a exposição do Sesc está também carregada desses sentidos. Mas ali o galpão traz outro elemento contrastante que empurra esses aspectos para um certo extremo, exacerba uma certa fofura, infantilidade, colorido etc.
Fiz essa amarração aqui sobre os sentidos da exposição pré-pandemia e agora quero retomar sua pergunta. Todos esses sentidos que conversamos aqui não deixam de ser relevantes por razões dessa mudança radical que estamos passando. Isso poderia ter acontecido, mas não acho que neste caso aconteça. Por outro lado, vamos perceber as coisas de um outro jeito após esse tempo confinados, disso não tenho dúvidas. Imaginar um Sesc aberto hoje parece um sonho. E foi uma coincidência ter escolhido um tema com essa qualidade de interior (em todos os sentidos) neste momento que estamos passando.
Acho que o Brasil já vem vivendo desgraçadamente antes do vírus e, de certa forma, esses trabalhos eram uma tentativa de reagir. Não diretamente, é claro, mas acho que a arte sempre reage ao mundo, porque o mundo é tudo o que existe. As vanitas nos lembram da impermanência das coisas, que a morte nos espreita, que estamos vivos e estamos sujeitos ao tempo, às doenças, à decrepitude. Em última instância, que somos de carne e osso e morremos; são lições importantes. Meu trabalho tem menos sobriedade, e talvez um caráter mais celebrativo de modo geral, o que não deixa de ser também um modo de encarar a vida e encarar a morte.
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